Mais de 600 páginas. O século é o 13. O cenário, ou melhor, os cenários são mosteiros, florestas remotas no tempo, habitadas por figuras (homens e animais) que a época, mítica, evoca (com um realismo invejável, com um humor e psicologias convincentes). Você imagina estar diante daqueles catataus escritos por medievalistas europeus ou por um norte-americano que, para variar, fez muito bem o dever de casa: conquistar o público pela hipnose de um gênero literário insuperável — a saga épica com pano de fundo constituído de um mundo que recém se revelava para todos, mágico em cada detalhe porque ainda ignorado. (Estávamos longe do Iluminismo.) Pois A longa história, de Reinaldo Santos Neves, é uma glosa de toda uma literatura — e suas inumeráveis variantes —, literatura que com O senhor dos anéis, de J. R. R. Tolkien, de 1954 (é, pessoal, o livrão já completou 53 anos de existência e êxito), fatiou a modernidade nas letras. É popular sem ser popularesco. Como, trinta anos depois, Umberto Eco mostraria que era possível fazer, em O nome da rosa.
Espere aí, volte o filme, editor: Reinaldo Santos Neves? Sim. Bem-nascido em 1946, em Vitória, no Espírito Santo. Capixaba, vejam só. O espírito santo baixou no homem e ele foi a alturas que nosso beletrismo de apartamento classe média não vai. Nariz erguido, não topamos (na verdade, nos faltam fôlego e cultura) contar sagas intermináveis. Exceção, claro, às narrativas embebidas na História nacional, tipo Canudos, Revolução Farroupilha, Guerra do Contestado. Crônica ficcional de conflitos beligerantes e oficializados por papéis carimbados e museus localizáveis ali na esquina. Um pouco de pesquisa, um tanto de paciência — e deu! Porém, encarar o mundo, sobretudo o Primeiro Mundo, distante geográfica e temporalmente, não com o servilismo de quem os imita em sua imaginação e memória, mas com a audácia (em A longa história, eficácia) de um epígono que soube costurar material reciclado, ah, isso é muito raro. É uma aventura literária e editorial isolada nos trópicos.
Reinaldo Santos Neves é o autor dessa aventura. E autor a ser imediatamente examinado, como seu livro deve ser examinado. Sem demora e com atenção de microscopista. Não só pelos leitores em geral, sumidos quando se trata de ficção feita hoje no Brasil, mas também pelos críticos, que salivam diante do nonsense, dos enigmas de carteirinha, ou dos regionalismos revigorados por uma batida mais nervosa (contribuição da doença urbana), e viram as costas quando o projeto narrativo de alguém pretende — onde já se viu!? — contar histórias, dezenas delas, interligadas por uma única e longa história, espinha dorsal a costurar os incidentes de uma missão quase impossível.
Pois é, a crítica terá trabalho dobrado: abrir as 600 páginas, virar uma a uma, e fechar o volume com uma constatação — numa das capitais mais serenas do País, viceja uma literatura infernal, madura, humilhante. Dúvidas? Consulte, para começar, a bibliografia no final do volume. Pois é, até de bibliografia este romance precisou (e merecia). 101 fontes, entre livros e sites, em vários idiomas (inclusive latim, do qual vários trechos se nutrem), textos datados do século 19, de 1926, e por aí vai. Pesquisa. Método. Assim se faz ficção de Primeiro Mundo. Em Vitória, Espírito Santo. O leitor, impaciente, preconceituoso por natureza (a natureza de buscar o fácil), vai aderir rapidamente. A edição está à altura do conteúdo. Entretanto, os cadernos “culturais” (a cultura do mercado ou a cultura de uma tendência, seja acadêmica, seja a dos “transgressores”), desconfio, vão dedicar-se ao que já lhes é familiar é sempre acaba como pauta. Estilos, autores e formas não resumíveis em três linhas, mas certamente jamais um capixaba, ah, isso não.
Da obra de Reinaldo, que, há 30 anos, já vinha preparando essa A longa história, cuidam os conhecidos da Universidade onde ele leciona. Cuida a imprensa local. E chamam a isso — fora dali — provincianismo. Se não cuidam, quem vai cuidar? É em São Paulo que se faz a grande literatura? No Rio? Ora, pode ser em Belo Horizonte ou em Divinópolis; em Curitiba, Londrina ou Ponta Grossa; em Porto Alegre, Passo Fundo ou Caixas do Sul. Em Belém. Em Salvador. Em João Pessoa. O reino é vasto e a palavra possui um alcance ilimitado se não a alugamos para o poder central (a wall street literary). Na prainha ou no mato — ou no calçadão, claro —, a arte verbal que não dispensa a obsessão como estratégia e trabalho pode perfeitamente atingir um nível estético difícil de ser alcançado. No caso de Reinaldo, na prainha.
Uma história em busca de histórias
Resumamos. Uma senhora idosa, dessas que passaram não apenas por décadas em demasia mas por fatos em demasia — e memoráveis —, pede a um tímido e jovem copista que lhe traga a mais longa história conhecida, de posse de um igualmente idoso senhor, Phostumus de Broz, distante dali milhares de quilômetros, na Hungria, enterrado num silêncio digno de seu prenome, que significa o que é póstumo, o que resta depois da morte. O silêncio?
A missão não envolve apenas o jovem designado para a tarefa, Grim de Grimsby, digno da mais elevada confiança, mas um séqüito que se dispersa pelo caminho, ganha novos adeptos, revela traidores, enfrenta fenômenos mais assombrosos quanto mais reais se revelam. Os três enforcados do caminho, por exemplo, logo no início do percurso. Um percurso digno do de um Dom Quixote. Sem o humor deste, sem o humor cervantino, mas com um humor disfarçado pela dedicação febril da beatitude. Cercado de desejo e desafio por todos os lados, o protagonista, Grim, supõe, devastado pela tortura da carne, que enfrenta durante imensa e inquietante parte do livro, estar diante da devassidão entre colegas do mesmo sexo. Tarde ele descobre que não é bem assim. Mas é já tarde demais.
Envolvido, resiste com uma valentia a que leitor algum terá testemunhado. E após algumas revelações que mudam os papéis dos envolvidos, Grim não muda seu rumo e, assim, muito menos sua missão. Segue inamovível em busca da cópia de uma história que o ameaça não só com sua extensão — os prazos, capítulo a capítulo, vão se esgotando; ele luta contra o tempo de vida de quem o contratou; contra o que resta de saúde em quem possui a história a ser resgatada e trazida até a Condessa de Kemp, que não deseja fechar seus olhos para sempre antes de conhecer a tão almejada narrativa. Luta, esse Grim admirável, quase um santo se de santo se tratasse, contra os contratempos do caminho. Mais que elementares obstáculos, acontecimentos que o levam a protelar o seguimento da viagem. A começar, pelo grupo que formou e que se modifica com o passar da história, a sua, que Reinaldo Santos Neves nos conta com uma parcimônia de monge beneditino, com uma agilidade que Umberto Eco não teve em O nome da rosa e com uma essencialidade de elementos (apenas aqueles que constituem a fluência da enormíssima aventura, da missão praticamente impossível), essencialidade que J. R. R. Tolkien largou de mão, caindo no excesso, na sobra, fazendo de sua extraordinária capacidade de fabulação um vício a nos exigir paciência em respeito a seu fôlego.
Reinaldo não precisa de paciência. Não da do leitor. Da sua foi necessário, sim, saber esperar, saber pesquisar, saber construir uma trama feita de dezenas de tramas e conduzi-las, a todas, a uma única trama: a de que uma história bem contada é o caminho mais exuberante na existência de um homem. O caminho que lhe permite ver. Sem o quê, só há estrada à frente e margem aos lados. Um caminho inalterado, sempre avançando — para o nada. A longa história é, também, um livro borgeano. É uma odisséia em busca da literatura.
Metalinguagem? Não, podem tranqüilizar-se. Na busca pelo relato infinito e perfeito, busca constituída ela mesma de outros tantos relatos numa infinidade perfeitamente entrelaçada de situações a conduzirem o desfecho do prêmio maior, não existem digressões nem discursos atravessando a odisséia medieval que o brasileiro, tão meticulosamente, erigiu.
Pesando na mão, o catatau parece prometer o pior: gordura verbal, sobras, aborrecimento durante a leitura. Nada disso acontece. Acontecem tantas coisas na tenaz concentração de Grim, na sua vocacionada natureza de temente a Deus e fiel escudeiro do reino que representa, que a síntese, essa palavra aparentemente impossível num monumento narrativo de tal dimensão, se faz presente com constância. Reinaldo Santos Neves é um escritor aliviado da sobrecarga estética e referencial e, leve, obtém êxito para realizar a viagem demorada (mas nada cansativa para quem a acompanha) à procura da ficção sonhada.
Seu romance, sob diversas óticas (essa discussão recém começa), está muitos pontos acima da literatura brasileira contemporânea. Razão pela qual, infelizmente, poderá não ser notado com a merecida atenção que lhe devem os críticos de plantão ou os leitores onívoros. A excelência muitas vezes é um entrave. Principalmente se se trata de um santo de casa fazendo milagre com velas alheias.
A longa história lança mão de uma tradição que só chegou até nós através de traduções (sem contar um certo tom bíblico, intencional). E não encontrou seguidores. Então que Reinaldo Santos Neves encontre, não digo seguidores, que aqui não se trata de culto (deus nos livre disso), mas de pares a debater e aprender com ele que se o Brasil tem 507 anos, a literatura, sobretudo aquela que ele foi buscar como fonte, tem mais do dobro dessa idade.