A humanidade vai à corte

Com humor e ironia, crônicas de Rui Cardoso Martins apresentam as mazelas humanas diante da lei
Rui Cardoso Martins, autor de “Levante-se o réu”
29/10/2018

Quando ouvimos falar de processo judicial, muito provavelmente o que virá à mente de primeira é a imagem de algo complexo, intrincado e de linguagem mais inacessível que o aramaico ou idioma equivalente. Imaginar como algo interessante de se ler? Nem pensar! E a depender dos discursos de nossos juristas e magistrados, invariavelmente blindados por palavras e sentenças que mais parecem ter saído do século 12, nós, pobres mortais, morreremos à míngua em busca de compreender uma palavra ou vírgula.

Felizmente, algum esforço vem sendo feito na tentativa de desmistificar o tal do “juridiquês” e trabalhos muito bons têm sido publicados por juristas e interessados, com linguagem acessível e sem pompas de superioridade. Para citar dois exemplos deste escasso fenômeno, até porque seria bem difícil achar outros, lembro os títulos Perante os juízes romanos, de Detlef Liebs, professor da Universidade de Friburgo/Alemanha, e Como os advogados salvaram o mundo, de José Roberto de Castro Neves.

Mesmo que não tenha sido escrito e publicado com esse intuito, Levante-se o réu, do escritor e jornalista português Rui Cardoso Martins, é uma deliciosa amostra de como os casos que figuram nos anais jurídicos podem render histórias tão ou até mais inacreditáveis que as da ficção. Religiosamente, durante 17 anos, ele dava o ar da graça nas sessões públicas de tribunal no Palácio da Justiça de Lisboa. Não era réu, não era testemunha nem jurado. Era simplesmente um curioso, um abelhudo que saía de cada sessão com histórias para contar aos leitores da coluna que assinava semanalmente no jornal português Público. Para o livro, 100 crônicas foram selecionadas para contar o que se passa “sob as arcadas da casa de Justiça” e seus corredores que recendem uma estranha mistura de culpa, ressentimento e insensatez, acompanhada de uma boa dose de clima de fofoca e delação.

A prosa de Rui Cardoso Martins tem humor e ritmo. Econômica na medida certa e bastante dinâmica, ela se desenvolve por diferentes caminhos. Ora vai crescendo, como uma música que vai chegando ao refrão, ora já inicia com o pé na porta, mostrando a que veio. Seu texto é um verdadeiro campo minado: não se passa um parágrafo sem que os olhos esbarrem num gracejo, cutucão ou trocadilho. Mas sempre com inteligência afiada na pedra da ironia — fruto do trabalho de um troçador nato. Logo no primeiro relato, durante a troca de maldosas sugestões sobre a procedência da paternidade dos filhos das partes queixantes e acusadas, vem a análise certeira do autor: “Há muitos perigos à nascença na velha Lisboa. Mas o povo está vigilante”.

Corre à boca pequena que Martins faz crônica de tribunal e dizem ainda que este é um subgênero ligado à crônica social, com precedentes que nunca são devidamente apresentados. Mesmo com um estilo único de produzir crônicas, com nomes respeitados no mundo inteiro, o Brasil não tem tradição nas chamadas crônicas de tribunais. Na nossa frente, e na frente de todos os outros, estão os portugueses. Reza a lenda que o primeiro livro do tipo na terra de Cabral foi A nota alegre dos tribunais, escrito por um tal Alfredo Carlos Pinto e lançado no ano de 1982. Outras publicações mais atuais que fazem jus à tradição são Um juiz no alto do parque, de Manuel Geraldo, e Sacanas com lei, das jornalistas Rosa Ramos e Sílvia Caneco. O estilo tem atenção em jornais como Público, I e Jornal de Notícias.

É certo que por aqui histórias não faltam, muito menos tribunais. O problema é que nossos cronistas fogem dos corredores da corte como o diabo foge da cruz. De lá se aproximam apenas quando fisgam peixe grande ou tubarões. Não se interessam pelo banal, pelo drama corriqueiro que reveste a vida das camadas sociais mais baixas; ignoram que a possibilidade de descobrir um verdadeiro rol de nascentes que desaguam em histórias e personagens tão ou mais interessantes que aqueles que estrelam as colunas dos grandes jornais e revistas. De fato, pouquíssima coisa nos chega desses recintos e quando aparece algo próximo disso, quase sempre falta profundidade e também humanidade nas abordagens. É uma lacuna do nosso jornalismo e da nossa literatura como um todo.

Nuances
Alguns acontecimentos que Martins presenciou como espectador curioso nas sessões públicas beiram o surreal, como o caso do Temível homem da catana, que foi pego a perambular pelas ruas do Cais do Sodré, bairro de Lisboa, empunhando uma lâmina de meio metro de comprimento. O parágrafo inicial já prende a atenção na cela da curiosidade por conta da forte carga literária:

À hora do almoço de um dia de Outubro, quando o sol ainda se equilibrava por cima do Cais de Sodré, mas já se sentia bastante fraco e pálido, e talvez mesmo a escorregar para o horizonte da barra do Tejo, deu-se um episódio.

Mesma carga que acompanha outros ótimos grandes momentos, como este em O Velho que roubava água, sobre um senhor que atirou duas vezes no amigo que o impediu de roubar água:

A orelha do senhor Rodrigues é dura e ensebada como bom couro de vitela, é uma orelha que nasceu em 1971. Nasceu em ano de revolução, guerra e Nossa Senhora, é um legítimo lóbulo do século XX.

O réu era portador de moderada surdez e sua dificuldade em ouvir o que tentavam lhe dizer obrigava a digníssima juíza a quase berrar no recinto, gerando uma cena tão comicamente inusitada que até esquecemos que estamos diante de um possível caso de tentativa de homicídio.

Até mesmo quando não esteve presente para ouvir, tomar nota e relatar, Rui Cardoso Martins conseguia pintar o quadro e montar o quebra-cabeça da justiça com a ajuda dos funcionários do tribunal. Foi assim que surgiu o Meio retrato de Ricardina. Um retrato meio borrado, mas ainda assim cheio de vida de uma excêntrica senhora que, depois de uma corrida, resolveu pagar o taxista com um montante de moedas velhas e sem validade. Ou quando roubaram o bar do tribunal em O crime dois-em-um, que narra o ousado roubo ao bar do palácio da justiça. O autor aproveita o insólito caso para falar sobre algumas lacunas do novo Código do Processo Penal português — código que a essa altura, já não é tão novo assim.

Em sua narrativa, as sentenças não importam tanto quanto os estados de espírito, os contextos e os gestos. O foco não está no escândalo, no macro. Há justiça e também há injustiça, histórias de sofrimentos remediados e de outros sem resolução. A miserabilidade humana está estampada nos rostos que se iluminam ou se apagam diante de promotores, advogados e juízes. Réus, testemunhas, vítimas e acusados são os que carregam mais visivelmente as marcas do gênero humano. São eles que choram, se arrependem, se alheiam ou se acovardam.

Ainda que alguns desfechos possam não agradar a algumas pessoas, é importante lembrar da realidade que permeia as histórias e que cada uma delas foi dependente do nível de lubrificação das engrenagens da lei para mudarem ou não de direção. Durante quase duas décadas, a comédia humana mostrou algumas de suas facetas para Rui Cardoso Martins, que se dedicou a registrar um bom montante delas.

Por todas as nuances e matizes e por trabalhar um gênero praticamente desconhecido do leitor brasileiro, Levante-se o réu merece leitura atenciosa, pois traz bem mais que apenas um retrato da sociedade portuguesa. É um raio X de parte da condição humana diante dos auspícios da lei.

Levante-se o réu
Rui Cardoso Martins
Tinta da China
368 págs.
Rui Cardoso Martins
Nasceu em 1967, na cidade de Portalegre, em Portugal. É jornalista e escritor. Autor de E se eu gostasse muito de morrer (2006), Deixem passar o homem invisível (2009), Se fosse fácil era para os outros (2012) e O osso da borboleta (2014).
Jocê Rodrigues

É jornalista, escritor e editor.

Rascunho