A humanidade perdeu

Ao premiar José Saramago com o Nobel da Literatura, em 1998, o mundo, representado pela academia sueca, reconheceu-se como desumano
O português José Saramago, vencedor do Nobel de Literatura em 1998
01/01/2001

Ao premiar José Saramago com o Nobel da Literatura, em 1998, o mundo, representado pela academia sueca, reconheceu-se como desumano. A vitória do autor português comprovou a derrota do ser humano em construir um mundo justo, estampada há tempos em seus livros. O cheque de quase um milhão de dólares foi um reconhecimento merecido à obra de Saramago, um dos maiores estilista contemporâneos. Mas muito mais que escritor, Saramago é um comunista radical que empenha-se em apontar falhas no capitalismo que tanto o bajula.

Talvez, se soubesse o que estava ainda por vir, a academia teria pensado político-corretamente antes de premiar o polêmico Saramago, que já havia feito Jesus casar-se com uma prostituta em 1991 (O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Companhia das Letras). Mais radical do que nunca, ele lançou, em novembro, A Caverna (Companhia das Letras, 352 págs.), uma obra que contextualiza a caverna criada por Platão em A República.

A história do oleiro Cipriano Algor e sua pequena família (filha, genro e cachorro) é uma das maiores cutucadas de Saramago no sistema capitalista. O drama  de Cipriano, que depois de anos a fio produzindo seus produtos de barro para o Centro é dispensado com duas frases, poderia ser o de qualquer cidadão contemporâneo. Cipriano poderia ser o seu Arnaldo, tintureiro, 64 anos, 44 deles dedicados à lavanderia que o mandou para casa com aposentadoria de R$ 270,00 por mês. Assim como Arnaldo, José, João ou outro trabalhador qualquer, Cipriano é o mártir que Saramago escolheu para contrapor à modernidade elitista. Enquanto no Centro há aqueles que a tudo têm acesso, fora dele circula a maioria cuja passagem pela Terra tem um único fim, o trabalho mal-remunerado e a expectativa de perdê-lo e mais nada saber ou poder fazer.

O enredo de A Caverna não é novidade para ninguém e a comparação com a caverna de Platão é meramente simbólica, tanto assim que, a pequena família leva 305 páginas para chegar à caverna e pouco mais do que 30 para sair dela.

O que impressiona neste novo livro de Saramago, como sempre de frases longas e perfeitamente construídas, é a intensidade da relação intra-familiar. O livro é focado no lar doce lar, uma das poucas alternativas para aqueles que vivem à margem da sociedade. O próprio autor tem comentado que A Caverna é uma obra de sentimentos simples. Simples, mas muito fortes. Os diálogos respeitosos de filha e genro com Cipriano, a afabilidade entre o casal e, surpreendentemente, o cachorro Achado como aglutinador de todos estes sentimentos.

Saramago, que refuta o rótulo de pessimista, dá-nos esperanças numa página, mas a tira noutra. A harmonia na pequena família é contagiante, mas tem seu preço. O genro Marçal dedica-se ao sogro e à esposa, mas para isso tem que abdicar dos próprios pais, que se revoltam por não serem eles a ir morar com o filho no Centro.

Em uma das passagens mais marcantes, a da revelação do amor entre Cipriano e Isaura Madruga, a troca de emoções entre o casal é friamente encerrada com a realidade. O velho Cipriano renuncia ao amor porque é um velho sem trabalho que se recusa a viver às custas da mão-de-obra da possível futura mulher.

Estes paradoxos são constantes na obra de Saramago. Para ficar apenas com a trilogia involuntária encerrada com A Caverna, voltemos ao segundo livro dela, Todos os Nomes, de 1997. Nela, o cartorário José, que vive e trabalha na Conservatória Geral do Registro Civil, passa os dias entre as certidões de todos os vivos e mortos da cidade. À noite, sai inutilmente em busca de alguém, mas o único nome que surge do começo ao fim do livro é o seu próprio, numa feliz constatação da solidão humana.

Com a primeira e melhor obra da trilogia, Ensaio Sobre a Cegueira, na qual os habitantes de um lugar vão aos poucos perdendo a visão, Saramago quis mostrar que a razão é a cega. É um dos livros mais chocantes da literatura mundial de todos os tempos, do qual uma única frase já valeria a Saramago o Nobel: “Deitados em seus catres, os cegos esperavam que o sono tivesse pena de seu sofrimento”.

Ensaio… foi e será para sempre o melhor livro de Saramago. É natural que desde então os novos lançamentos recebam críticas, exageradas se não fosse permitida a comparação. Em A Caverna, o autor camufla uma resposta aos críticos: “há quem leve a vida inteira a ler sem nunca ter conseguido ir mais além da leitura, não percebem que as palavras são apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se estão ali é para que possamos chegar à outra margem, a outra margem é que importa”.

Até parece que Saramago previu que A Caverna seria sua obra mais criticada (negativamente), talvez pelo fato de ser a primeira após o Nobel. Diz ele na página 256: “se te espetam uma faca na barriga, ao menos que tenham a decência moral de te mostrarem uma cara que seja conforme com a acção assassina, que ressumbre ódio e ferocidade, mas, por amor de Deus, que não te sorriam enquanto te estiverem a rasgar as tripas, que não te dêem esperanças falsas, dizendo: não se preocupe, com meia dúzia de pontos ficará fino como antes”.

Saramago continua fino e pontiagudo como sempre. O homem que fez Jesus tirar uma meretriz da zona disse que somos cegos e solitários, comunica-nos agora que estamos numa caverna sem saída.

O filho do seu Arnaldo, da lavandeira, por exemplo, estudou para não ser escravo. Sai do escritório e vai resolver assuntos de trabalho em Forquilhinha, nos confins catarinenses. De lá, despacha pelo celular. Quanto retorna, o computador tem 30 e-mails esperando solução. Ilude-se com o salário razoável, mas trabalha três vezes mais do que o pai. Não passa de um escravo tecnológico.

O português radical tinha razão e o Nobel confirmou isso. A humanidade perdeu, de goleada. Três a zero para Saramago e sua trilogia involuntária (?).

Paulo Krauss

É jornalista.

Rascunho