A hora e a vez do ensaio

“Não incentivem o romance”, de Alfonso Berardinelli, é marcado pelo ecletismo, versatilidade e vasta proliferação temática
Alfonso Berardinelli, autor de “Não incentivem o romance”
01/05/2009

Alfonso Berardinelli é considerado um dos mais argutos e polêmicos críticos literários italianos da atualidade. Em grande parte de suas obras, discorre sobre os mais variados temas, procurando desvendar os rumos que a poesia, a prosa e, em especial, o romance vêm assumindo no cenário contemporâneo. Insere-se, assim, na mesma linha de reflexão de outros tantos intelectuais que buscam interpretar o redimensionamento de certas manifestações literárias e artísticas, nestes chamados tempos pós- modernos, tais como Carlos Fuentes, Franco Moretti, Elias Canetti, Susan Sontag, só para citar alguns.

Assim sendo, o ecletismo, a versatilidade e a vasta proliferação temática dão a tônica neste Não incentivem o romance e outros ensaios. De fato, nas oito intervenções que compõem o livro, veremos analisados, com um notável poder de síntese, respectivamente: a poesia, a narrativa e a ensaística italianas do pós-guerra; as possibilidades de afirmação de uma “teoria literária nacional”; um panorama dos clássicos do romance europeu; a função da personagem na narrativa do século 20; os best-sellers pós-modernos e o último estudo, que é o que dá título ao livro, tratando da crise do romance no século 20.

Mas o que parece ser reiterado, de maneira veemente, em cada um desses consistentes capítulos é a ênfase, dada pelo autor, ao gradual processo de disseminação do ensaio entre os demais gêneros literários. É o que já afirmara, anteriormente, em La forma del saggio: definizione e attualità di um genere letterario (2003):

Como em todas as épocas de crise e de mistura dos gêneros literários maiores, isto é, dos mais tradicionais e mais consolidados, em relação ao público (tragédia, comédia, romance, novela, poesia lírica, satírica, etc.), em nosso século, a forma ensaística se insinua e se difunde mais incontrolavelmente do que nunca.

Sustentando essa tese, Berardinelli nos faz atentar ao fato de que, nos mais diferentes autores a que se predispõe analisar, sejam poetas, romancistas, críticos, há que se constatar uma nítida tendência à incorporação do ensaio, como viva forma de expressão de alta qualidade. Nesse sentido, talvez seja possível afirmar, por exemplo, que, em dois grandes narradores como Proust e Kafka, haja uma ficção essencialmente contaminada pela ensaística. No primeiro, esse traço se manifestaria pela divagação e aprofundamento estilístico. No segundo, por meio da recorrência aos aforismos, uma espécie de síntese do pensamento em uma só frase.

Tal tendência seria verificável, também, em relação a grandes poetas, em cujas obras haveria um apelo a reflexões nitidamente filosóficas, em forma de ensaio. É o que acontece, sobretudo, nos primeiros versos de Quatro quartetos, de T. S. Eliot, em que, segundo o crítico, estamos diante de uma obra filosófica, mais que poética. A mesma ocorrência pode ser constatada, com facilidade, no poeta espanhol Antonio Machado e no inglês William H. Auden.

Nessa espécie de amplo inventário, no elenco dos chamados romancistas-ensaistas, destacar-se-iam G. Orwell, com Lutando na Espanha: homenagem à Catalunha (ensaio narrativo sobre a guerra civil espanhola, em 1936-37), Thomas Mann, Robert Musil e até mesmo Italo Svevo, se admitirmos que A consciência de Zeno pode ser considerado como um ensaio autobiográfico, psicanalítico em que se contam fatos e situações, com a finalidade de elucidá-los, explicá-los.

Nos últimos decênios, teríamos ainda a constatar uma gama significativa de autores, de Pasolini a Calvino, de Enzensberger a Naipaul, a Tom Woolf, todos, cada qual a seu modo, reafirmando-se como ensaístas.

Pasolini e Calvino
No cenário da literatura italiana, os dois casos mais evidentes desta inclinação ao ensaio seriam as obras de Pier Paolo Pasolini e Italo Calvino. Para Berardinelli, é preciso perceber que a força de Pasolini está muito mais em sua função de crítico de arte — fenômeno novo no século 20 — do que em sua poesia propriamente dita. O experimentalismo de Pasolini, por ser completamente diferente, já que ele “falava de si, falava de política, de subproletariado, dos horrores da pequena burguesia italiana, falava até demais” anunciava, em seu bojo, uma evidente dicção ensaística.

Não será à toa que seus longos poemas, quase monólogos em versos, em que subjaz a voz inconfundível desse personagem-poeta, acabarão cedendo espaço ao brilhantismo crítico. A ilustrar essa característica, temos as obras Passione e ideologia e Descrizioni di descrizioni.

Italo Calvino, tal como Pasolini, também terminará sua carreira literária como ensaísta. A princípio, autor identificado como detentor de uma linguagem límpida, linear, com naturalidade coloquial e racionalidade sintática, aos poucos, especialmente a partir de sua famosa trilogia — O visconde partido ao meio, O barão nas árvores, O cavaleiro inexistente — passará a um universo alegórico de fugas, negação, ausência, dúvidas. Coloca-se, então, em cena o anti-herói moderno, angustiado, em busca de uma identidade.

Mudando-se para Paris em 1965, Calvino entra em contato com a narratologia, a semiologia, a teoria da literatura e, entre 1975 e 1985, torna-se o narrador italiano mais cosmopolita, lido e amado por diversos segmentos da população. Cumpre notar que, particularmente, em suas últimas obras teóricas, como em Lezioni americane, demonstra todo um conhecimento adquirido em torno das reflexões ao redor da estrutura da narrativa.

Seu último romance, Palomar, é, em síntese, a exacerbação dos sentidos do ver-perceber-comover, através da lente telescópica do observador acurado, Sr. Palomar, que esmiúça ao detalhe e disserta, ensaisticamente, sobre todo e qualquer ser circundante, na minúcia exagerada de quem não se quer deixar apoderar pela cegueira de um mundo que não sabe mais ver.

Ao eleger dois autores italianos, reconhecidos internacionalmente, Berardinelli insiste no traço que os unifica: o da produção ensaística, no cômpito geral de suas obras. Desse modo, acrescenta importante elemento de análise para o aprofundamento de estudos que a eles se dediquem.

Uma literatura nacional
Além de tratar da onipresença das formas ensaísticas em todos os gêneros literários, tais como concebidos tradicionalmente, Berardinelli, também se preocupa em delinear os limites do que poderia ser considerado “literatura italiana”. E acusa, nesse sentido, de modo peremptório, o alargamento de influência da Teoria da Literatura em todos os segmentos filosóficos como problemática. Na verdade, ele constata que, ao romper as fronteiras nacionais das literaturas, criando o conceito de literatura transnacional e favorecendo o amplo campo de estudos comparados, essa “internacionalização” teria gerado um perigoso afastamento dos acadêmicos da literatura da própria língua, enfraquecendo sua relação com ela.

Exercendo a crítica ferrenha contra certos modismos que a teoria passou a impor, tais como o da experiência de leitura esquematizada e supérflua, fundada em conceitos generalizantes, cabíveis a todos os autores de todos os países e em todas as épocas, ele vocifera contra o que denomina “Gramática Geral da Literatura”, em prol de uma volta às literaturas nacionais. Assim é que reivindica a necessidade de se estudar as características de uma literatura antes de compará-la com outras.

Esse tipo de assertiva, especialmente em tempos de esbatimento de fronteiras, em que os territórios do romance se expandem, de acordo com a nova configuração proposta, por exemplo, pelo multiculturalismo, em que a inclusão é palavra de ordem, pode parecer um tanto quanto dissonante. Perseverar em posturas compartimentadas, nesse sentido, limitaria a visão de um conceito de arte, menos estereotipado e mais amplo à assimilação do rico pluralismo das culturas. Veja-se, por exemplo, o que pensa a respeito, Carlos Fuentes, resenhado neste mesmo Rascunho na edição 105 (janeiro/2009).

Arte emancipatória
No último ensaio do livro — Não incentivem o romance —, a voz do crítico assume tons prescritivos. Tomando emprestadas as palavras de Abraham Yehoshua, Berardinelli reitera que “quanto mais a democracia se fortalece e dissemina, mais o romance perde sua incisividade e sua autoridade artística, sua capacidade, ainda viva nas décadas de 1920 e 1930, de marcar a fundo a consciência cultural de intelectuais, escritores e leitores comuns”.

Ampliando a tese postulada por Yehoshua, ele conclui que em nosso tempo, a crise não atingiria apenas o romance, mas também todas as formas de arte, já que há um evidente esmorecimento, uma desvalorização de qualquer atividade e produto da cultura.

No fundo, parece que a questão subjacente, a perpassar o olhar de nosso autor, é a de que o esvaziamento dos projetos artísticos de vanguarda, que propuseram, em particular, na primeira metade do século 20, o estranhamento, o choque, o assombro, o novo, calcado na idéia de ruptura, a acordar as consciências, conduziu, inevitavelmente, a um barateamento do conceito de arte como emancipatória.

Numa visão quase agônica de fim do romance, fim da arte, acusando a desgastante reificação dos produtos da indústria cultural, nesses tempos “democráticos”, ele retoma a matriz inaugural da visão estética propugnada por Adorno, ao constatar que o aparato ideológico, que refreia o desenvolvimento da consciência das massas, impede a formação de indivíduos autônomos e livres. Daí por que o romance, que antes dizia o máximo, ter passado a dizer o mínimo. Daí por que proliferam fórmulas de narrativas, especialmente dirigidas a um público leitor médio, que só pode se contentar com estruturas previsíveis, de grau de reflexão pouco exigente, mais preocupado em consumir arte, avidamente, como se consome qualquer mercadoria. Nesse sentido, o máximo grau de degradação a que chegou o romance em nossa época é encarnado pela alta produção de best-sellers.

De modo incisivo e, mais uma vez, polêmico, Berardinelli acusa certos escritores brilhantes que parecem ter se deixado cooptar pelo sistema, tal como Umberto Eco, que, segundo sua tese, teria incorporado a “fórmula” dos que produzem livros em quantidade, em detrimento da qualidade, como palatáveis mercadorias.

A verdade é que, em tempos movediços como os nossos, talvez, fosse necessário buscar compreender isso que aqui se denomina “crise” ou “romance em vias de extinção” de outro modo. Não seria injusto reduzir todas as produções artísticas da segunda metade do século 20 à categoria de subarte, abalizadas apenas pela ordem canônica então vigente?

Seja como for, mesmo pelo viés aguçado da polêmica, o que o presente estudo aborda é muito pertinente a quem se proponha a refletir sobre literatura e arte. Ao tratar das múltiplas faces do ensaio, contaminando todos os gêneros literários, ao acusar as modificações sofridas pelo romance, especialmente a partir do século 20, trata-se de uma obra que vai além da seara específica dos estudiosos de literatura italiana. Mais uma obra que dialoga, ainda que, às vezes, em contraponto, com outros importantes textos dos mais renomados críticos contemporâneos.

Não incentivem o romance
Alfonso Berardinelli
Trad.: Francisco Degani, Patricia de Cia e Doris N. Cavallari
Nova Alexandria/Humanitas
208 págs.
Alfonso Berardinelli
Hoje um dos principais críticos literários da Itália. Tem mais de vinte livros publicados, entre os quais La forma del saggio (Prêmio Viareggio, 2003), Che noia la poesia. Pronto soccorso per lettori stressati (2006), com Hans Magnus Enzensberger, e Il critico come intruso (2007). No Brasil, foi publicada uma coletânea de ensaios seus, Da poesia à prosa (CosacNaify, 2007). Em 1995, Berardinelli abandonou a docência universitária, atividade que exerceu por quase vinte anos.
Maria Célia Martirani

É escritora. Autora de Para que as árvores não tombem de pé.

Rascunho