A hora e a vez do Diabo

Como o canhestro infiltra-se pelos livros, seduzindo autores e leitores
01/01/2003

Voltava do baile quando teve um sono repentino e profundo. Deitou ali mesmo, na escadaria da catedral, como se estivesse aos pés de Deus. Antes de pegar no sono, ainda notou que o hálito de enxofre dos bueiros trazia notícias das profundezas do inferno. E que a cidade estava tão vazia que até a luz da lua teve medo de sair naquela noite. Depois dormiu profundamente e sonhou com um encontro muito estranho:

Estava no cume de uma montanha altíssima e sentado ao lado de um homem de feições cansadas e olhar plácido e profundo: Prazer, eu sou o Diabo. Calma, não te preocupes. Não lhe farei mal algum e tampouco quero tua alma, este manicômio de caricaturas. Quero apenas que me faça justiça. E que me salve:

Vês aquelas grandes manchas de luz espalhadas como astros lá embaixo? São as grandes cidades do mundo: Londres e Berlim, Paris, Buenos Aires, São Paulo, Madri, Déli… Estive em todas.

Ali, por exemplo, é o que antes foi a União Soviética e onde inspirei grandes homens: Dostoievski, Górki, Tolstoi, Pasternak, Maiakovski e Bertold Brecht. Vou te revelar alguns segredos:

Fui eu quem instigou Dostoievski, o tímido, contra o czar Nicolau I, o Cruel, o que forçaria Fiodor a escrever febrilmente para quitar dívidas imensas com o irmão Mikhail. Lembro-me nitidamente quando o jovem católico foi preso e levado para a fortaleza Pedro e Paulo, da igreja Ortodoxa.

De lá só saiu para ser fuzilado, numa manhã pardacenta de domingo, em 1849: Dostoievski usava um camisolão branco, suava muito e tinha a respiração opressa, como se o coração quisesse saltar do peito. Naqueles instantes em que esperava a morte, ele ainda revirou os olhos ardentes para um céu neutro e indiferente. Foi quando o corpo começou a tremer todo e dos cantos da boca surgiram os filetes da baba gosmenta. O jovem se contorceu diante do pelotão de fuzilamento e gritou até perder os sentidos. Foi seu primeiro ataque de epilepsia.

Acabou sendo poupado pelo czar e levado para uma prisão na Sibéria. Fez a viagem de trenó, com oito quilos de ferro agrilhoados nos pulsos e pernas e numa temperatura de 30 graus abaixo de zero. A estada no inferno está em Memória da casa dos mortos.

Dostoievski sairia da cadeia dez anos depois e com dívidas imensas que só poderia pagar escrevendo alucinadamente, à luz de velas, no sótão gelado de um casarão velho. Ali foram escritos O duplo, O idiota, Os demônios, O jogador, O adolescente e Crime e castigo, livro que lhe rendeu míseros 150 rublos. Mas foi só aos 57 anos, quando estava ainda mais endividado por causa do vício do jogo, que Fiodor escreveria sua obra-prima, Os irmãos Karamazov.

No livro, ele lembra daquele ataque durante o fuzilamento falho ao descrever o assassino Raskólhnikov diante da vítima: “As pupilas dos olhos, dilatadas, pareciam querer saltar-lhe das órbitas; a fronte e o rosto contorciam-se nas convulsões da agonia. Conservava toda a sua lucidez de espírito e já não sentia náuseas nem vertigens; apenas as mãos lhe tremiam ainda”. Dostoievski morreu em 1881, aos 60 anos, sem entender o rosário de misérias que havia sido sua vida e sem saber que sozinho inauguraria a nova literatura russa.

Outro meu conhecido foi Máximo Gorki. Trabalhou como sapateiro, ajudante de cozinha num navio e estivador no porto de Odessa. Escrevia cercado pela miséria e pelo lixo. Seus amigos eram os ciganos, pescadores, vagabundos e prostitutas. Ainda jovem, ao ser recusado por uma universidade, tentou o suicídio com um tiro no peito. Não morreu, mas pegou tuberculose, doença incurável na época e que o perseguiu a vida inteira, vindo a matá-lo em 1936. Seu nome de batismo era Alexei Maximovitch Pechokov. O pseudônimo Maksim Gorki (Amargo Maior) adotou em 1917, quando publica Makar Chudra. Escrevia com fúria nos olhos e ouvia a morte através do buraco da bala. Fúria e morte encenam em Os pequenos burgueses, Os ex-homens e Almas mortas.

Também fui eu, o Diabo, quem inspirou em Bertold Brecht sua profunda admiração pelo stalinismo, o que faria dele delator oficial e homem de confiança do famigerado Nikita Kruschev. Brecht morreu de enfarto, em 1954, e foi enterrado num caixão de aço, como havia pedido. Ele tinha medo que os vermes lhe devorassem o coração. Diziam que foi a única indicação que talvez o escritor tivesse um coração.

Pasternack e Maiakovski foram nobres. Neles fomentei a ardente idéia de derrubar o obscuro sistema político czarista. E dessa ânsia revolucionária nasceram os mais belos poemas russos e um grande romance, Doutor Jivago, de Pasternack.

Já Leon Tolstoi nunca escondeu seu profundo desprezo pelos irmãos pobres e tuberculosos. Nele fui sua profunda admiração pelas mulheres, álcool, jogo e pelas frentes de batalha. Era um trabalhador intelectual incansável. Rescreveu Guerra e paz sete vezes e outras tantas Ana Karenina. Foi seguidamente recusado pelos editores. Morreu pobre e abandonado e poucos foram ao seu enterro. Diziam que a humildade dele era hipócrita, que seu desejo de sofrer era repugnante e que só amava a humanidade enquanto idéia.

Agora, veja aquelas outras luzes lá embaixo. São terras sul-americanas. Ali estive recentemente, em Palermo, periferia de Buenos Aires. Demócrito arrancou os próprios olhos e ali eu arranquei os de Luis Borges.

Dei-lhe os livros e tirei a luz, como fiz com James Joyce já no fim da vida. E como em Homero e no inglês Milton, fiz do silêncio e do escuro as únicas realidades palpáveis de Borges. Fui para ele a névoa luminosa e a treva visível, por assim dizer. Fui seus olhos em suas obras e ele comigo dançou nas chispas do inferno em As ruínas circulares.

Também estive no Brasil. Fui guia e vaqueiro na tropa de Euclides da Cunha quando o moço cruzou o abrasador Nordeste brasileiro para investigar a seita monarquista e messiânica que um tal Antônio Conselheiro inaugurava numa tal de Canudos. Euclides foi testemunha da dureza e da resistência dos homens nordestinos diante de táticas estúpidas e cruéis do exército republicano em suas “charqueadas”, o que hoje o Estado de S. Paulo traduziria facilmente por carnificinas.

E da indignação de Euclides, formado em engenharia militar havia poucos meses, brotou Os sertões, livro tão ou mais importante que Guerra e paz, de Tolstoi, e que mais tarde inspiraria Mario Vargas Llosa a escrever Guerra do fim do mundo e Guimarães Rosa a escrever Grande sertão: veredas.

Aliás, permita-me contar alguns segredos entre mim e Rosa: fui eu, o próprio Cramunhão, como me chamava o boiadeiro mineiro, quem ditou a ele todos os nomes com os quais hoje sou conhecido pelas terras nordestinas. Todas as minhas alcunhas estão em Grandes sertões…: o Arrenegado, Cão, Indivíduo, Galhardo, Pé-de-Pato, Coisa-Ruim, Mafarro, Pé-Preto, Canho, Dubá-Dubá…

Também fui eu quem fez dele um escritor supersticioso e ateu, uma mistura explosiva, e quem o avisou que morreria quando tomasse posse na Academia Brasileira de Letras. Foi por isso que ele retardou a posse o quanto pôde, até quase perder o direito. Só depois de muita insistência acabou assumindo sua cadeira com todas as honras e pompas numa noite de quarta-feira. No domingo, sua mulher saiu para ir à missa. Ao retornar, encontrou Rosa morto sobre a escrivaninha e sobre a folha onde acabara de pôr reticências numa última palavra…

Machado de Assis também foi um grande escritor, mas foi um ser humano débil e vulnerável. Tinha um emprego medíocre no Ministério da Agricultura e, como Dostoievski, sofria de ataques de epilepsia. A diferença entre eles é que em Machado o “mal menor”, como era chamada a doença, só serviu para levá-lo a viver à sombra da mulher, a portuguesa Carolina, que dizem ter escrito seu último romance, Memorial de Aires.

No Brasil, estive também com alguns jovens, cujo único sonho era viver o bastante para pegar tuberculose. E outros, cujo único contemporâneo é o tempo: Patrícia Melo, que lembra Céline e Blake, escreveu Inferno, mesmo título usado pelo norueguês August Strindberg num livro em que narra o incrível encontro que teve comigo, o Diabo, em 1896, num hotel francês chamado Orfila.

Strindberg era um escritor notável. Basta lembrar que seus livros eram ilustrados pelo amigo e pintor Edward Munch (aquele do O grito) e seu nome aparece cheio de elogios em Diário, de Franz Kafka, o tcheco judeu que previu os horrores da Segunda Guerra Mundial e temia transformar-se num inseto cascudo.

Vamos adiante. “E se Deus é canhoto/ e criou com a mão esquerda?” A primeira linha do poema Hipótese, de Carlos Drummond, estava entalhada na parede do boteco lá pelas bandas do Cosme Velho, onde eu e o pantagruel Fausto Wolff tivemos um encontro onírico. Ele não acreditou quando eu disse que era o Diabo. Outro dia recebi o seu O nome de Deus. O luar e a ironia são as melhores obras na criação, não concordas?

Há ainda no Brasil quem faça livros afirmando que teve comércio comigo. Mas como alguém seria capaz de dominar a sintaxe do inferno, se não é capaz de dominar a da língua portuguesa? Por que há do comércio comigo ser mais fácil que o com a gramática? E mais…

— Um instante, por favor, senhor… Diabo. Me desculpe se o interrompo, mas tenho algumas dúvidas que gostaria de esclarecer, até para que eu possa ajudá-lo, ainda que não saiba como. Primeiro quero saber por que está me contando tudo isso. E, se és de fato quem diz ser, responda-me: Deus existe?

Bem… sim, há um Deus. Mas não te preocupes: ele é só homem de um Deus ainda maior e só existe graças a mim. Não sou alcoviteiro e tampouco o espírito que nega, como acreditava Goethe. Mas sou sim o espírito que contraria. E como tudo vive porque se opõe a qualquer coisa, sou aquilo a que tudo se opõe. Se eu não existisse, nada existiria, porque não haveria a que opor-se. É a lei da vida. Perceba:

O corpo vive porque se desintegra, sem se desintegrar demais. Se não se desintegrasse segundo a segundo, seria um mineral. A alma só vive porque é perpetuamente tentada, ainda que resista. Lembre-se do Livro de Jó, do Fausto e de Judas.

Se entender isso, você compreenderá facilmente como inspirei a vida e obra dos escritores que já citei e dos que falarei mais adiante. Fiz a mesma revelação a Fernando Pessoa quando ele esteve comigo nestas mesmas alturas. A conversa está num livro assombrado: A hora do Diabo. Duas curiosidades mais sobre Pessoa: ele foi o último a estar com Aleister Crowley, em 1930, antes de o mago inglês que dizia-se a besta 666 desaparecer misteriosamente. Meses depois, o lisboeta traduziria o poema Hino a Pã, de Crowley.

Por que te conto meus segredos? Calma, vou te revelar o maior de todos agora: o mundo vai acabar e o apocalipse final está bem próximo. Vou explicar melhor, mas antes preciso que esqueças o Apocalipse bíblico, no qual João, o Evangelista, conta as visões que teve na ilha de Ptmos. Ele não entende o que viu. O apocalipse também não ocorrerá na Rússia, como acreditava Dostoievski; nem o inferno está sob Jerusalém, como escreveu Dante. Esclarecido os equívocos, vamos adiante.

O holocausto virá por meio de um vírus de computador que terá sede de sabedoria e irá atacar todos os computadores onde hoje estão armazenados o conhecimento humano. O vírus será uma espécie de borracha eletrônica que consumirá e apagará toda a cultura humana armazenada nos computadores. Pior, não haverá vacinas ou antibióticos capazes de deter a virose mortal. Nem pela medicina, nem pelos programadores de softwares.

Será o fim de todas as artes, das ciências e filosofias. Eis o tão esperado Armagedon. Foi isso que tentei avisar a João quando falava do “fim do sistema de coisas”. Está no Apocalipse. Era o sinal que o fim da humanidade viria pelos mesmos computadores que os homens ingenuamente acreditavam ser a solução definitiva para a conservação da sabedoria humana e da sua segurança. Mas João só sabia de dragões bestiais cheios de chifres.

Em breve, o pouco conhecimento humano que escapará da fome dos super e megavírus será o conservado nos cérebros e memórias de cientistas, bibliotecários e pesquisadores. Estes homens serão convocados pelos grandes governos do mundo para que salvem o pouco que sabem em disquetes e CD-ROMs vacinados. E então se cumprirá a tão anunciada ressurreição bíblica, quando todos os túmulos e memórias serão revolvidos. E você será o escolhido para contar as minhas memórias. E foi por isso que te contei todos esses segredos. Para que possa me salvar.

Sugiro que procures o escritor paraibano Assis Brasil ou leia urgentemente seu Apocalipse, a espécie terminal, lançado pela Editora Imago. No livro, sou Zéfiro, o velho que inventa um jogo misterioso durante as pescarias e que, abusando dos diálogos platônicos, discute a dialética de toda cultura humana, de Adão às teorias do louco e visionário Carl Sagan, o anão ateu que recentemente morreu de câncer.

Apocalipse… encerra uma espécie de trilogia Teocrática composta por Jeová dentro do judaísmo e do cristianismo e A vida pré-humana de Jesus: o mistério da imortalidade. Neles estão alguns dos mais originais e complexos exercícios de interpretação do Apocalipse bíblico. Infelizmente, não há tempo para falar mais de Assis Brasil. Basta lembrar que ele publicou mais de cem livros nas últimas cinco décadas, que está entre os mais obstinados e talentosos escritores brasileiros. Ainda que muitos não saibam.

Os vírus já passaram por Cérbero. Precisamos correr. Aos 18 anos Dante foi apaixonado por Beatriz, sua guia no Paraíso. Ela se casou com um banqueiro e morreu aos 25 anos; Alan Poe bebia e usava haxixe para ter visões de histórias subterrâneas; Bauldelaire e Verlaine também usavam tóxicos; Virginia Woolf era apaixonada por uma amiga e por isso afogou-se num rio; Balzac era caloteiro; Fitzgerald bebia até cair duro e era perseguido pela mulher neurótica; Whittman escrevia em navios; Cândido, de Voltare, foi um fracasso; Pound foi internado num hospício; Tagore e Gita Mehta acreditavam que se banhar num rio de bosta purificava a alma; Dalton Trevisan é…ARQUIVO INVÁLIDO ARQUIVO INVÁLIDO ARQUIVO INVÁLIDO.

Acordou cercado pelos pombos e com a pele tostada pelo sol. Lembrou que precisava escrever sobre aquele estranho encontro. E que precisava arranjar trabalho.

Valdeci Lizarte
Rascunho