O argentino Ricardo Piglia dizia que um conto sempre conta duas histórias — uma visível e outra secreta. Este é um bom ponto de partida para refletir sobre Animais submersos, primeiro livro de contos de Priscila Gontijo. A cada relato sentimos algo prestes a explodir ou, entrando no jogo sugerido pelo título, a emergir de seu lugar oculto. Nos 17 contos, ainda que os animais de fato apareçam em várias das narrativas, a animalidade submersa está mais ligada a personagens que nos revelam algo de seu “subsolo particular”. Para quem se lembrou de Dostoiévski, a referência é precisa. O conto que encerra o livro — Terno subsolo — dialoga explicitamente com Memórias do subsolo, do escritor russo, trazendo como protagonista uma senhora de idade que nos conta de seu relacionamento com um garoto de programa. Eis o primeiro parágrafo:
Sou uma mulher má, uma mulher doente. Uma criatura desagradável. Acho que sofro do pulmão. Ou seria fígado? Tanto faz. E se não me trato é por pura maldade, não por desacreditar dos médicos, já que respeito a ciência e a medicina. Não, se me empenho bravamente no cultivo do subsolo, deve-se a certa acidez congênita, digna de um espírito fraco e roedor, criado em lugarejo inóspito. Com a pertinácia do indivíduo das grandes cidades, sigo a linha reta e mesquinha das agonias particulares. Não sei nada sobre a minha doença e decidi não mais me tratar. Parei de engolir pílulas azuis, cinzas, lúcidas pílulas, a medicação me deixava sonolenta, boca seca, alheia, até mesmo surda, quase cega. Não, não aprecio as bulas. Os pediatras, os laboratórios. Os cirurgiões plásticos. Melhor não me meter com esse tipo de gente.
Ao contrário do romance dostoievskiano, contudo, o caráter de confissão aqui presente está na voz de uma mulher e isso tem relevância no contexto da obra. A escolha por narradoras ou protagonistas femininas acompanha a maioria dos contos e esse é um aspecto a se destacar — o foco é das mulheres. Da moça cujo traseiro chamativo acaba por atrapalhar seu reconhecimento profissional (Bunda intelectual) à imagem da vagina como um oráculo (O maior oráculo da Terra), são seus corpos, sua sexualidade, angústias, vícios e desejos que movem a maioria dos contos. O mosaico de mulheres é bem variado, passando por alcoólatras, suicidas, jovens em busca de seu lugar no mundo, mães desesperadas e por aí vai. Como em qualquer livro de contos, é possível ler cada narrativa de forma independente pois cada história é um universo próprio, mas gostaria de chamar a atenção para dois aspectos marcantes na dicção da autora: o humor sutil que nos desconcerta em situações bastante densas e o trabalho com o tema do subsolo, algo que já dirige nosso olhar por conta do título da coletânea.
Tragicômico
Há um aspecto tragicômico permeando essas histórias, pois o humor também emerge dos momentos mais dramáticos. É o caso de Bom dia, em que uma mulher percorre o centro de São Paulo procurando o melhor local para se matar, mas de repente se vê envolvida numa situação inusitada ao ser puxada para dentro de um boteco pé-sujo (não darei spoilers). O insólito também é fonte de humor em contos como Os visitantes e Soon-Yi, Annie e Melinda. No primeiro, um casal mais velho no modo “síndrome do ninho vazio” dialoga incessantemente sobre as infinitas visitas que podem receber naquele sábado, pois não conseguem ficar apenas na companhia um do outro; no segundo, uma fã de Woody Allen com uma filha adotiva começa a desconfiar do próprio marido, achando que, assim como o cineasta se casou com Soon-Yi, seu marido também pode acabar se envolvendo com sua filha. São dois contos espirituosos em uma obra que pende mais para um lado sombrio da natureza humana. Ao mesmo tempo, o que é engraçado é também incômodo pois não foge ao que parece ser o fio condutor das narrativas — aquilo que está submerso em cada um desses personagens. Se o casal não consegue ou não quer lidar com a solidão a dois que vivenciam, a fã de Allen, para lidar com sua neura (uma das temáticas centrais do cineasta, inclusive), submete o marido inocente a verdadeiras provações, levando esse divertido conto a limites surreais:
Resolvi tirar férias para vigiá-lo de perto. Tentei rever antigos amigos, mesmo os que se distanciaram por censurar minha fidelidade aos filmes de Allen, pós casamento com Soon-Yi, mas nenhum deles retornou a ligação, deviam estar mesmo ressentidos. Queria dizer-lhes que estavam certos, melhor manter esse cineasta bem longe da família. Foi quando cheguei em casa e flagrei Maurício de cócoras sussurrando um segredo para a bromélia solitária, apelidada de Mia.
Nestes casos, o humor acaba desempenhando um papel central no tratamento daquilo que está oculto nos personagens, seja uma neurose estilo Allen beirando a loucura ou a dificuldade de lidar com um casamento que parece ter se esvaziado. A presença do humor nesses dois últimos contos, por exemplo, contrasta com um lado mais áspero apresentado pela maioria das outras histórias.
A ideia dos seres do subsolo assume aspectos variados, ora pendendo para questões sociais, ora para pulsões internas dos indivíduos. No entanto, também vale ressaltar que o conceito de submersão presente no título está ligado a afundar-se, sumir, cobrir-se de água. Três dos contos nos transportam para esse imaginário aquoso e do mergulho profundo — O império das vagas oceânicas, Algas marinhas e Com um mar de água em volta — três narrativas muito diferentes. A primeira narra a intensidade de uma relação sexual operando com todo um vocabulário das águas e as outras duas nos colocam no centro de problemas mais sociais. Em Algas marinhas, uma mulher abandonada pelo marido passa a furtar com os filhos em um supermercado, não apenas porque tem que arcar com as despesas sozinha, mas também como uma atitude de revolta ao abandono. É assim que sua fera se manifesta. Sua filha mastiga algas marinhas em uma tentativa de buscar tranquilidade (a calma das águas?) em um ambiente violento e tenso.
Com um mar de água em volta é o primeiro conto da coletânea e uma ótima escolha para a abertura da obra, pois já nos coloca o tema do que pode “emergir” do subsolo de um personagem, dependendo da situação a que está exposto, temática que a obra parece perseguir. Nesta história, seguimos um grupo de jovens contratadas para trabalhar em um restaurante com um “atrativo” peculiar. Enquanto andam pelo salão recebem jatos de espuma que deixam suas roupas coladas e os corpos à mostra para o deleite dos fregueses. Isa, a protagonista deste conto, uma jovem que, a princípio parece frágil e deslumbrada, chega a seu limite depois de se dar conta da exploração pela qual “não será possível nenhuma remuneração”. Na cena final com a dona do restaurante, a fera de Isa estará prestes a emergir.
Em uma obra que tem um conto “à la Woody Allen”, lembrei-me de uma grande referência para o cineasta norte-americano — o sueco Ingmar Bergman. A hora do lobo (título de um de seus célebres filmes) é descrita como aquele momento sombrio, na madrugada fechada, em que tudo é mais denso e os pesadelos vêm à tona. Na fauna mais que humana de Animais submersos, a imagem de um lobo à espreita talvez seja a melhor metáfora.