A edição não poderia ser mais sóbria. Na capa, duas gradações de prata: uma clara, predominante, e outra mais escura, reproduzindo um texto batido à máquina que serve de fundo à faixa azul-marinho vazada nas letras de Meus contos preferidos. Logo acima, bem à esquerda, um negro Antologia; abaixo do título, numa caligrafia singela e ligeiramente inclinada à esquerda, a assinatura também em preto: Lygia Fagundes Telles. A última frase do texto salta aos olhos, emblemática: “Chegou a hora de fazer a colheita”. Mais adiante descobre-se que a reprodução é justamente o prefácio do livro, datilografado pela própria Lygia numa pequena e genuína máquina de escrever Olivetti (dizem que foi comprada na Itália). Combinado ao despojamento elegante, o miolo dispensa a sofisticação do papel pólen e utiliza o branco tradicional. Tudo limpo, refinado, plácido. Uma tranqüilidade que irá se esboroar na primeira das 31 histórias, mas isso o leitor ainda não sabe. Ou talvez saiba de antemão, pois se tratam de narrativas já conhecidas dessa que é considerada a grande dama do conto brasileiro, por ela selecionadas a partir de um critério que, em outras mãos, poderia redundar em equívoco: “são os contos do meu coração”.
O que de original ainda resta a falar sobre a obra de Lygia Fagundes Telles? Ficcionista das mais respeitadas, imortal da Academia Brasileira de Letras, dona de uma produção ininterrupta há mais de meio século, abarcando contos, romances e crônicas que ultrapassam a cifra de 20 livros publicados, traduzida para o alemão, espanhol, francês, inglês, italiano, polonês, sueco, tcheco e russo, vencedora de prêmios importantes, inclusive três Jabutis da Câmara Brasileira do Livro, adaptada para o cinema, teatro, televisão, Lygia firmou-se há muito como um talento inquestionável e muito caro à literatura brasileira. Falar tecnicamente sobre o seu novo livro? O conto foi o gênero mais explorado por Lygia desde a estréia em 1938; os textos que participam desta antologia foram todos devidamente estudados e comentados ao longo dos vários anos que os separam. Ou seja, Lygia Fagundes Telles e seus contos prediletos não cabem mais num ensaio crítico, muito menos numa simples resenha, uma vez que, tomados isoladamente, já não constituem novidade. Relê-los, agora sob nova ordenação, significará ao leitor assíduo tão-somente comprovar sua excelência e aos colegas da escrita, aprender com eles como se faz um bom conto.
Mas sempre existirá um leitor distraído, para quem a obra da escritora ainda seja inédita ou dela tenha ele indesculpavelmente se perdido: alcançá-lo é o objetivo desta matéria. E para tanto, começar-se-á dizendo que os contos da paulistana Lygia Fagundes Telles têm suas raízes no melhor da tradição oral brasileira: as histórias narradas ora por negros escravizados e índios aculturados, ora por criados, matutos, peões, a assim chamada “gente do povo”, sempre às ordens de uma outra classe mais abastada, a quem diverte e intriga com seus causos calcados no absurdo, no mágico, no sobrenatural, mas também emociona pela ingenuidade tocante com que vive e interpreta o sofrimento, a incrível miséria de um mundo que essa casta privilegiada só conhece de ouvir contar. Ou de assistir, eventualmente, sempre a uma protetora distância.
No caso de Lygia, a profissão do pai — advogado que serviu como delegado de polícia e promotor público em várias cidades do interior paulista — fez com que a família se mudasse com muita freqüência. Desde os primeiros anos de vida, ela ouvia as histórias trazidas pelas amas e por outras crianças, para depois, já aos nove anos, começar a escrever sua própria ficção. Muitos dos contos que compõem a antologia remetem sem dúvida alguma a esses relatos, ainda que tratados em contextos diferentes: o caso das estranhas e laboriosas formigas que à noite montam o esqueleto a partir de uma ossada, a experiência angustiante do anão de jardim à espera de sua inevitável destruição, um amor mal resolvido que tem seu horripilante desfecho num passeio ao cemitério. O conto Que se chama solidão resgata com fidelidade passagens dessa infância e é prova mais que irrefutável da origem de alguns dos enredos desenvolvidos por Lygia ao longo dos anos:
“Chão da infância. Algumas lembranças me parecem fixadas nesse chão movediço, as minhas pajens. Minha mãe fazendo seus cálculos na ponta do lápis ou mexendo o tacho de goiabada ou ao piano, tocando suas valsas. E tia Laura, a viúva eterna que foi morar na nossa casa e que repetia que meu pai era um homem instável. Eu não sabia o que queria dizer instável mas sabia que ele gostava de fumar charutos e gostava de jogar. A tia um dia explicou, esse tipo de homem não consegue parar muito tempo no mesmo lugar e por isso estava sempre sendo removido de uma cidade para outra como promotor. Ou delegado. Então minha mãe fazia os tais cálculos de futuro, dava aquele suspiro e ia tocar piano. E depois, arrumar as malas.”
São duas as pajens referidas: a negra Maricota, que acaba fugindo com o trapezista do “circo do leão desdentado”, e a branca Leocádia, que morre em decorrência do aborto por ela mesma provocado e que volta, logo depois de morta, em aparição à narradora. Como se pode constatar, esse conto serviria muito bem ao importante papel de abrir a antologia, tanto o que ele faz revelar sobre a personalidade literária da escritora, mas foi deixado sem maiores destaques no meio da coletânea, a demonstrar talvez que, pela ótica de Lygia, um provável relato autobiográfico é apenas mais uma de suas histórias.
Complexas e inusitadas relações amorosas e familiares, adultério, traição, sátira política, conflitos sociais da vida urbana são outros temas visitados e trazidos ao livro. Essa incrível pluralidade e a harmonia dela resultante refletem, mais que um senso estético há muito consolidado — alguns dos contos distam 30 anos ou mais de outros colegas de antologia —, uma cristalina percepção do que é essencial e do que faz a diferença em se tratando de literatura. E a essencialidade, para a escritora, significa adentrar sorrateira a alma de seus personagens, enquanto os faz transitar pelas situações mais esquisitas, e perseguir os meandros, as sutilezas todas de cada aventura. Lygia os espreita assim tão intimamente para que possa narrá-los humanos, intensos, pulsantes de suas várias inquietações e desejos. Mesmo os eventuais personagens inumanos merecem igual tratamento. Tal exercício completa-se com êxito dentro dos estritos limites da brevidade exigida ao conto, levando à conclusão de que o olhar arguto de Lygia sabe distinguir os elementos realmente importantes a uma rápida e precisa composição de personagem dentro de uma estrutura enxuta.
A construção do discurso é digna de nota e também de reverência. Como um autêntico felino, astucioso e dissimulado no cerco à presa, Lygia começa a narrativa de um ponto escolhido aparentemente ao acaso e numa abordagem que muitas vezes beira o poético. O início de Dolly exemplifica muito bem a estratégia:
“Ela ficou mas a gota de sangue que pingou na minha luva, a gota de sangue veio comigo. Olho as luvas tão calmas em cima da pequena pilha de cadernos no meu colo, a mão esquerda cobrindo a mão direita, escondendo o sangue. Dolly, eu digo e estou calada e olhando em frente neste bonde quase vazio. Dolly! Eu repito e sinto aquele aperto no estômago mas não tenho mais vontade de puxar a sineta, descer e voltar correndo até a casa amarela, queria tanto fazer alguma coisa mas fazer o quê?!”
A trama vai surgindo como o tricô tecido pela ponta do fio puxada de dentro de um novelo. Às vezes, ela se mantém estranha, ambígua, mesmo depois de revelada: é que, ao escarafunchar os sentimentos dos seus personagens, Lygia acaba também trazendo à tona as contradições e incoerências inerentes à condição humana. Em recente entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, a autora admite que “o ser humano é incontrolável, indefinível e inacessível”, e conclui: “Por mais que você procure se aproximar do ser humano, ele nos escapa. Como a própria morte”. Nessa busca criteriosa e obstinada, quando a história, o personagem ou ambos “escapam” das mãos de Lygia é porque não existe para eles outra solução. Ou seja, faz parte da vida essa desordem que foge à nossa deficiente compreensão: nem tudo é sempre claramente equacionado e resolvido como gostaríamos que fosse.
É interessante observar mais atentamente a comparação feita por Lygia: o ser humano seria tão incontrolável, indefinível e inacessível quanto a própria morte. Sem dúvida alguma, o que a autora espera compreender e revelar sobre os personagens transcende o que ela mesma considera humanamente possível. O resultado disso é a ambigüidade, contingência que se repete várias vezes no decorrer do livro. Por outro lado, talvez a afirmação possa também explicar a assiduidade sugestiva da morte e dos mortos em quase todas as histórias.
A linguagem e suas peculiaridades formam um espetáculo à parte. Lygia Fagundes Telles escreve com o requinte e a fineza que se espera da grande dama que é. Isso não quer dizer que ela fuja de temas espinhosos nem que se sinta confortável apenas com amenidades. Muito pelo contrário, Lygia sabe harmonizar como poucos o áspero conteúdo da maioria de suas histórias com uma delicadeza singular, jamais cedendo uma vírgula que seja para manter o registro elevado e simples de um léxico elegante, mas em nada afetado, e este é outro caro atributo de sua obra. Em Uma branca sombra pálida, a mãe que desconfia da homossexualidade da filha e se atormenta com isso fala ao marido já falecido sobre acontecimentos que precederam à morte precoce da garota. Nessas reminiscências, que compõem um doloroso acerto de contas com o passado, ela confessa:
“Tarde da noite, passei pelo seu quarto e pela porta entreaberta, vi que ela podava os longos caules das rosas vermelhas que tinham chegado sem cartão. Fiquei olhando a pequena Gina com sua camisolinha curta, os cabelos soltos até os ombros e descalça, ela gostava de andar descalça. Uma criança, pensei, e tive que cerrar as mãos contra o peito, com medo de que ela ouvisse o meu coração.”
Não há nada de ameno nesta trama. Onze páginas são o suficiente para que Lygia ponha num caldeirão mágico os ingredientes mais conflituosos das relações familiares — o preconceito, a perda, o remorso, a culpa — em doses pouco ou nada parcimoniosas, e o resultado, como se pode inferir pela passagem acima, tem a beleza singela e emocionante que só a verdadeira arte é capaz de produzir. Exemplos como esse estão presentes em todos os contos. Parece que, através deles, a delicada e astuta escritora está constantemente lembrando ao seu leitor: eu sei o que você conhece e sente, portanto não é preciso extrapolar nas cores da pintura para que você possa compreender exatamente o que eu quero que você compreenda.
Ao fim e ao cabo, é isso que se pretende dizer aqui. Lygia Fagundes Telles vem há muito plantando e agora se dá ao supremo luxo de usar o coração para fazer a colheita. Caberá ao leitor buscar a mesma ferramenta para percorrê-los com igual e tão sofisticada sabedoria.