A História, o diabo e a literatura

"Os diabos de Ourém" explora a figura feminina como elemento demoníaco e expõe o problema da representação do mal na literatura
Maria Luiza Tucci Carneiro, autora de “Os diabos de Ourém”
01/07/2023

Literatura e História sempre andaram juntas. Ora a primeira deu alimento para pesquisa e comprovação da veracidade dos fatos acontecidos e narrados pelos poetas da antiguidade clássica, ora a segunda serviu como base para que se criassem obras literárias baseadas em fatos comprovados que afetaram o percurso dos seres humanos sobre o planeta. A Ilíada, de Homero, serviu para que historiadores pesquisassem sobre o longínquo período e chegassem a determinadas conclusões. O conhecimento da mitologia grega também se deve muito à obra atribuída a Homero, permitindo-nos saber com maior precisão quais deuses eram objetos de culto e que funções cumpriam no imaginário coletivo.

A partir de determinadas pesquisas históricas, foi a vez de os autores literários, abastecidos por essas informações, criarem obras narrativas que incrementaram na mente dos leitores a “verdade” de cada época. Isso aconteceu, mais precisamente, no advento da modernidade com o romance.

Mesmo Dante, no seu longo poema, tinha informações de personagens e fatos históricos não apenas através da literatura, mas por pesquisadores que, à época, já se aventuravam, ainda que precariamente, na pesquisa do passado. O florentino colocou na sua obra as ações dos homens célebres do seu país e da sua cidade, tendo como fonte a história e como medida de valor o dogma religioso. Era, ainda que de modo muito reticente, a união de história e religião, que gerariam um poema clássico, de ficção.

Na literatura brasileira, não é nova a capacidade criativa de ficcionistas e de historiadores, cada um servindo-se dos instrumentos de sua área para escavar tanto as narrativas ficcionais como as de características da pesquisa científica. Sílvio Romero e Visconde de Taunay se autointitularam historiadores; na literatura, José de Alencar já produzia os primeiros romances históricos da literatura brasileira.

Mergulho na narrativa
Em Os diabos de Ourém, romance da historiadora Maria Luíza Tucci Carneiro, observamos a autora enveredar pela pesquisa histórica a respeito de um evento acontecido em1860, na cidade de Ourém, distante cento e cinquenta quilômetros da vizinha Belém do Pará. A autora, num longo posfácio que completa a obra (a meu ver desnecessário para o leitor de romances), esclarece que não lhe foi suficiente a pesquisa científica dos documentos da época, ela teve de mergulhar na narrativa romanesca para completar e dar sentido (ou quem sabe expor com mais clareza a tentativa de as pessoas sempre estarem em busca de um sentido) aos textos a que ela teve acesso.

O seu romance inicia-se com um homem chamado Elias, nascido em Portugal, viajando pelo interior do Pará, quando encontra uma mestiça originária da região chamada Sabá. Daí em diante, fatos misteriosos passarão a lhe acontecer. Mesmo diante do perfume e da beleza da cabocla, Elias tem a capacidade de refletir: “Sabá? Isso era lá nome de mulher mestiça? — pensou. Lembrou-se logo das histórias que ouvira em Portugal acerca das incríveis ‘sabás’ realizadas por feiticeiras. Mas talvez aqui, na Província, sabá queira dizer outra coisa. Certamente quer!”. A partir desse ponto, o personagem ver-se-á envolvido nos mais diversos tipos de possessões e/ou mistificações.

A figura da mulher como elemento tentador, como já se vê no Velho testamento, toma vulto a partir deste ponto. Os fatos posteriores não envolvem apenas a recém-conhecida, mas outras mulheres da pequena vila, incluindo o espírito de uma morta, célebre na cidade quando viva. Esta tomará ares de santa, porque num processo de exorcismo, o padre local, seguindo os conselhos de uma mulher possuída por um espírito, exuma a defunta e encontra o corpo desta em perfeito estado. Os fiéis, a partir de então, vão adorá-la como uma santa-mártir.

Além de explorar a figura feminina como elemento demoníaco, o livro expõe o problema da representação do mal, ou do demônio, na literatura. Ainda que uma das pessoas envolvidas na trama confesse futuramente, num inquérito judicial, tratar-se de fingimento ou mistificação, fica no leitor a dúvida. Será que a depoente, no afã de se livrar de uma condenação, inventou algo a mais?

Ponto relevante, que não deve ser desprezado, é o caldeirão cultural que passa a ser o Brasil com o processo de colonização. A crença cristã, o seu imaginário e as superstições que a envolvem não são originários dos trópicos. Estrangeira a nossa região, trazida da Europa pelo colonizador, introduzida nos anos iniciais de conquista da região, miscigenou-se a crenças originárias e/ou afrodescendentes transferidas do continente africano. Imaginem-se as consequências de todo esse aparato no calor dos trópicos, em meio às montanhas, ao cerrado e às florestas.

Representação do demônio
Na literatura brasileira, já houve numerosas investidas de representação do demônio, ou da atuação demoníaca. Talvez, a mais bem sucedida seja em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. No livro de Maria Luiza, apesar de encenada por um padrezinho do baixo clero local — interessado nos bens alheios e no sexo com as mestiças — não fica a desejar. As cerimônias de exorcismo assumem um caráter quase épico no livro, ao narrar as crendices inerentes aos brasileiros do interior e as trazidas de fora. Da mesma forma, marcante na narrativa é o interesse dos religiosos, que se dividem entre desejos terrenos e os de natureza espiritual, como o de manter a integridade de uma Igreja Católica já demasiadamente fissurada por diversos cismas.

Nos dias de hoje, podemos observar que sessões de exorcismos ainda continuam tornando “célebres” (no mau sentido da palavra) religiosos de várias crenças, como padres e pastores, exímios em culpar o demônio por todo e qualquer acontecimento nefasto.

A narrativa não apresenta apenas o caráter místico da região e dos seres humanos locais, ela entra numa senda cartesiana quando um delegado vindo de Belém, viajando à cidade onde ocorrem as supostas possessões, começa a interrogar os envolvidos com o intuito de condená-los para reestabelecer a ordem local, pois a pequena vila já beirava a insurreição. Um tribunal eclesiástico também entra em ação, porque a Igreja quer demonstrar que se preocupa com o que é verdadeiramente santo, não podendo deixar-se levar pelas ambições de padres que fogem ao seu controle.

Após tanto embaraço, uma solução desmistificadora parece pairar sobre a região, no entanto, assim como se deve duvidar de possessões ou sessões de exorcismos, também é preciso duvidar da decisão dos homens, que se baseiam na lógica da manutenção tanto do poder como da ordem social local.

Afinal, somos seres que precisamos de narrativas e estas, além de nunca serem retilíneas, jamais nos deram certezas, nem a histórica nem a de ficção. Histórias por estórias, fica-se com a segunda porque, além de serem mais inventivas, exigem que nossos olhos estejam sempre bem abertos.

Os diabos de Ourém
Maria Luiza Tucci Carneiro
Ateliê
255 págs.
Maria Luiza Tucci Carneiro
É historiadora e professora livre docente do Departamento de História da FFLCH — Universidade de São Paulo, desde 1984. É autora dos livros Dez mitos sobre o judaísmo; Cidadão do mundo: O Brasil diante do holocausto e dos judeus refugiados do nazifascismo, 1933-1945, entre outros.
Haron Gamal

É doutor em literatura brasileira pela UFRJ e professor de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé. Autor dos livros Magalhães de Azeredo – série essencial (ABL) e Estrangeiros – a representação do anfíbio cultural na prosa brasileira de ficção (Ibis Libris).

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