A história acordada

"Os memoráveis", de Lídia Jorge, mergulha na Revolução dos Cravos com uma personagem marcada pelo abandono
Lídia Jorge, autora de “Os memoráveis”
01/11/2023

Lídia Jorge se consagrou na literatura por construir uma poética que alinha a temática histórica do período da ditadura, guerra colonial e o processo de redemocratização de Portugal a uma memória que não se permite corroer pelo ácido do tempo.

Suas narrativas se fundamentam em importantes aspectos da construção da identidade e nacionalidade, elementos que constituem a literatura portuguesa de maneira singular, e que se encontram em escritores diferentes ao longo dos séculos 20 e 21. Lídia Jorge pertence à geração pós-74, da “repensagem portuguesa”, como aponta Jane Tutikian em seu estudo sobre a construção da identidade portuguesa nos romances da autora. Podemos estabelecer como características inerentes dos seus romances: a leitura da luta pela liberdade política, do terror da ditadura salazarista, de uma censura absurdamente severa, dos homens e mulheres que sofreram com as guerras em África para a manutenção da política ultramarina, das ações da Pide (Polícia Internacional de Defesa do Estado) e das prisões e desaparecimentos.

Em obras como O dia dos prodígios, A costa dos murmúrios, A noite das mulheres cantoras, Combateremos a sombra, Lídia Jorge apresentou uma leitura da história portuguesa do período da ditadura, bem como a construção da liberdade e da democracia tão desejada pelos portugueses, mas que se alicerçava num passado ainda muito doloroso.

A memória
Existe, portanto, no universo ficcional lidiano, a recorrência indelével do 25 de abril de 1974 e do significado da Revolução dos Cravos para o povo português. Foi uma revolução mítica, deflagrada por uma canção e que trazia no seu ideário um movimento de ruptura com o sistema ditatorial. Era preciso que a ficção alcançasse todas as transformações pelas quais passava essa sociedade, que agora lidava com um passado obscuro e ainda vivo nas feridas dos portugueses. E ainda um novo Portugal, que passava pelo processo de democratização, descolonização e desenvolvimento, reestruturando a sociedade, a política, a economia e as relações internacionais. O período pós-74 seria da entrada na Comunidade Econômica Europeia. O país modificava-se em muitos aspectos, mas era sempre preciso relembrar os anos da ditadura salazarista, as ações nefastas do governo e não permitir que essa memória de dissipasse.

Os memoráveis divide-se em três partes: A fábula; Viagem ao coração da fábula e Argumento. É contada a história de Ana Maria Machado, repórter portuguesa que vive há muitos anos nos Estados Unidos e é desafiada a filmar um documentário que seria o primeiro de uma série para a CBS, canal de TV americano: A história acordada. O ponto de partida seria a Revolução dos Cravos, considerada pelo antigo embaixador, padrinho de um amigo, Robert Peterson, que lhe faz a provocação, como um dos mais importantes fatos históricos do século 20. A história, segundo a personagem, nem sempre é um pesadelo ou um sonho agradável, no entanto, é preciso revisitá-la para compreender o todo que ela representa.

Ao chegar em Lisboa, Ana Maria monta a sua equipe de trabalho com dois ex-colegas de faculdade: Margarida Lota e Miguel Ângelo. A partir de uma foto empoeirada e velha encontrada no escritório do pai, o também jornalista, António Machado, Ana Maria começa a traçar o percurso da sua pesquisa e das linhas mestras do documentário. A foto, feita pelo fotógrafo Tião Dolores, era da noite de 21 de agosto de 1975, num jantar no restaurante Memories, em Lisboa.

O grupo que compõe a foto elenca figuras que participaram da revolução de forma muito particular e intensa e outras pessoas com diferentes importâncias para Ana Maria Machado. Alinha-se, portanto, a história de Portugal à história da jornalista. A foto que seria um registro da união entre o jornalista António Machado e a atriz belga Rosie Honoré, mãe de Ana Maria, que anos depois abandonaria o companheiro e a filha. No restaurante entra um grupo de cerca de vinte pessoas que conversam sobre a revolução. São os memoráveis.

Figuras importantes
Os entrevistados para compor o painel de depoimentos sobre o jantar e a foto revelam que foi uma noite peculiar, tanto pelas pessoas que chegam ao recinto quanto pelos acontecimentos que irão se desenrolar durante a noite no Memories. Entre essas pessoas estão figuras importantes da construção da Revolução como o Oficial de Bronze, que é lembrado como um guardião da memória da revolução e que se aproxima da personagem histórica Vasco Lourenço; El Campeador, que seria Otelo Saraiva de Carvalho, líder militar e um dos articuladores da Revolução dos Cravos e também Charlie 8, que seria a alcunha ficcional de Salgueiro Maia, um dos mais importantes agentes do Movimento das Forças Armadas, liderando os Capitães de Abril, como ficaram conhecidos os capitães que agiram contra a ditadura no momento da revolução. E Tião Dolores, com sua máquina Leica, que tinha ao longo dos dias de 1974 acompanhado a revolução, registrando momentos importantes do período, presenciando o fim do caetanismo em Portugal com a saída do primeiro-ministro Marcello Caetano do poder. Muitas são as figuras históricas portuguesas da Revolução dos Cravos que habitam as páginas do romance de Lídia Jorge.

A história acordada, documentário construído por Ana Maria Machado, com ajuda e o trabalho de Margarida Lota e Miguel Ângelo, constrói-se a partir de uma história não revelada pelos livros, pelas páginas dos jornais, mas sim, nas costas da história oficial, a que está coberta pelo pó do tempo e que precisa ser revelada. A narrativa de Lídia Jorge revela uma outra história que se desenrola em paralelo ao documentário: a narrativa pessoal de Ana Maria Machado, a Machadinha, a Miss Machado, a repórter portuguesa desafiada a reconstituir a história de seu país de origem, revisitando um dos mais importantes momentos do século 20, tempo repleto de potências simbólicas e que descobre a sua história, uma revolução pessoal.

A potente história portuguesa da Revolução desenvolve-se com a memória de Ana Maria, na difícil relação com pai, no abandono e ausência da mãe, na construção da sua própria identidade. Existe a história marcada pela tinta da revolução e a história marcada pela tinta da ausência e da dor.

Não existe uma única forma de recompor, reconstituir ou revisitar a história, campo indissociável do imaginário e da constituição da identidade de cada indivíduo, a história é sempre a matéria viva que se multiplica na arte, aqui, especificamente, a literária. O que Lídia Jorge propõe é a revisitação da Revolução dos Cravos, mais uma vez, sua narrativa revela que por trás dos grandes acontecimentos históricos, homens e mulheres, em momentos de cerceamento ou de liberdade, viveram suas experiências pessoais, particulares e coletivas. Os memoráveis é, por fim, um romance que sopra o pó que está sobre as memórias esquecidas, revelando a vida que há em todas as lembranças que guardamos.

Os memoráveis
Lídia Jorge
LeYa
320 págs.
Lídia Jorge
Nasceu em Boliqueime, Algarve (Portugal), em 1946. É formada em filologia românica pela Faculdade de Letras de Lisboa e foi professora do ensino médio em Moçambique. É autora de romances, contos e poesia. Entre suas mais reconhecidas obras estão: O dia dos prodígios (1980), O cais das merendas (1982), A costa dos murmúrios (1988), O vento assobiando nas gruas (2002). Combateremos a sombra (2007) e A noite das mulheres cantoras (2011). Sua obra foi reconhecida e contemplada com diversos prêmios nacionais e internacionais.
Gabriela Silva

Graduada em Letras, licenciatura plena em língua portuguesa, literaturas de língua portuguesa e Especialista em “Leitura: Teoria e Prática” pela Fapa; Especialista em Literatura Brasileira e Mestre em Teoria da Literatura pela PUC-RS. Doutora em Teoria da Literatura.

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