A garota da foto

“A história do amor”, de Nicole Krauss, traz uma tríade de narradores que se reveza durante o romance
Nicole Krauss: vidas entrelaçadas de modo espetacular.
01/08/2006

Leitores têm manias. Há quem abra o livro em um ângulo nunca superior a 45 graus, uns lêem o fim antes por curiosidade, outros evitam apresentações, prefácios e afins. Charlie Kaufman, interpretado por Nicolas Cage no filme Adaptação, é obcecado pela orelha de O ladrão de orquídeas. Ele precisa adaptar o livro para o cinema, mas vive um bloqueio criativo. A dificuldade de escrever o roteiro rende um roteiro que, engenhoso o bastante, é a história levada às telas pelo diretor Spike Jonze.

A obsessão de Kaufman é, na verdade, a foto da autora Susan Orlean (Meryl Streep no filme) na orelha do livro, com a qual trava longas conversas e para quem pede conselhos. Ele olha tanto para a imagem em busca de uma resposta sobre como fazer seu trabalho que as expressões da escritora parecem mudar com o estado de espírito do roteirista. Se ele se sente bem, ela sorri. Se está inseguro, recebe um olhar reprovador. A relação entre Kaufman e a orelha de O ladrão de orquídeas é a mais complexa (e hilária) de todas em Adaptação.

Portanto, não é difícil imaginar qualquer um embasbacado por ler A história do amor, voltando várias vezes à orelha da contracapa para ligar a narrativa à narradora: Nicole Krauss. Aos 32 anos (só), a nova-iorquina publicou dois livros (o anterior foi Man walks into a room), casou com Jonathan Safran Foer, teve um filho e estará na Festa Literária Internacional de Parati (Flip), agora em agosto.

Safran Foer, ligando o nome à pessoa, escreveu Tudo se ilumina (que virou filme, Uma vida iluminada) e Extremamente alto & incrivelmente perto, recém-lançado pela Rocco, e acompanha a mulher na viagem à Flip.

Enquanto ele produz uma prosa próxima do fantástico, onde um garoto de 9 anos não precisa corresponder à idéia comum que se tem de um menino com essa idade, Nicole delineia personagens críveis dos pés (malcuidados) à cabeça (calva e oleosa), usando uma propalada capacidade de criar vozes distintas — cujas peculiaridades são determinadas pela sintaxe das frases.

Uma tríade de narradores se reveza em A história do amor, formada pelo judeu polonês radicado em Nova York Leopold Gursky, a jovem Alma Singer, filha de pai israelense e mãe inglesa, e Zvi Litvinoff, escritor judeu que foi para o Chile em fuga dos nazistas. Cada qual habita lugar e época distantes um do outro, mas que terão suas vidas entrelaçadas de modo espetacular.

O romance abre com a voz de Gursky e, logo, se cria um clima melancólico pontuado de humor. Ele é um infeliz que teve de trocar a Polônia (pelo mesmo motivo que quase todo mundo saiu do país nos anos 30 e 40) pelos EUA. Desejava ser escritor, mas teve de se virar como chaveiro, profissão ensinada pelo primo que o recebeu na América. Deixou para trás a mulher de sua vida, sem saber que ela estava grávida. Quando conseguiu reencontrá-la, era tarde demais. Havia outro homem que aceitou criar o filho de Gursky como se fosse seu. Chamado Isaac Moritz, o rapaz se tornaria um escritor de renome internacional.

Depois de perder a única mulher que jamais amou, Gursky opta por viver solitário, ocupando um dos apartamentos de um prédio caindo aos pedaços da Grand Street, no Lower East Side de Manhattan. Bruno, seu vizinho, é o mais próximo que chegou de ter um amigo.

“Uma vez (por telefone) disseram que, se eu mandasse um cheque de noventa e nove dólares, seria pré-aprovado para um cartão de crédito, e eu disse: Está bem, certo, e, se eu entrar debaixo de um pombo, serei pré-aprovado para um punhado de merda” é o tipo de fala que torna Gursky hilário. A descrição física que Nicole faz dele é também carregada de humor:

Aconteceu que as coisas foram ladeira abaixo quando entrei na adolescência e me abandonou a atratividade agradável de toda criança. No ano do meu Bar Mitzvah, fui assaltado por uma epidemia de acne que durou quatro anos. Ainda assim, não perdi a esperança. Tão logo a acne cedeu, a linha dos meus cabelos começou a se retrair como se quisesse se dissociar do constrangimento causado pelo meu rosto. Minhas orelhas, felizes com a nova atenção recebida, pareciam abrir-se mais para os holofotes. Minhas pálpebras baixaram — certa tensão muscular teve de ceder para oferecer apoio à batalha travada pelas orelhas —, e minhas sobrancelhas ganharam vida própria, alcançaram tudo o que poderia se esperar delas, para depois superarem as esperanças e se aproximarem de Neandertal.

A adolescente Alma Singer perdeu o pai quando tinha 7 anos, morto em decorrência de um câncer no pâncreas. Sua missão é encontrar um par para a mãe, mais e mais refugiada no trabalho como tradutora, evitando todo o resto. Quando Alma fala, as idéias são dispostas em tópicos numerados e textos breves. “Quando lembro, lembro por partes. Suas orelhas. A pele enrugada nos cotovelos. As histórias que ele me contava sobre a infância em Israel. Como costumava sentar em sua cadeira preferida para ouvir música e como gostava de cantar”, diz, sobre seu pai, David Singer. E aqui as coisas começam a se encadear.

Na juventude, o pai de Alma decidiu viajar pela América do Sul depois de completar o serviço militar. Na Argentina, encontrou A história do amor em uma livraria portenha, que começou a ler “tomado de excitação e nostalgia”. O livro saiu do Chile para Argentina e ficou um bom tempo perdido em meio às estantes da loja (o parágrafo que descreve a persistência do volume diante de adversidades como a umidade e o sol é uma ode ao objeto livro e inclui até uma pequena participação de Jorge Luis Borges). Escrito por Zvi Litvinoff quando já vivia no exílio.

Mais tarde, David e a esposa, Charlotte, dariam à filha o nome de Alma por causa das personagens femininas do livro.

Os poucos trechos que descrevem a prosa de Litvinoff dão conta de um tratado curiosíssimo. “A primeira linguagem dos humanos compunha-se de gestos. Não havia nada de primitivo nessa linguagem, que fluía das mãos das pessoas, tudo o que dizemos hoje em dia podia ser dito no elenco interminável de movimentos possíveis com os ossos finos dos dedos e dos punhos. Os gestos eram complexos e sutis, e continham uma delicadeza que desde então se perdeu por completo.” E continua com uma profusão de nomes e datas que reforçam o aspecto científico do trabalho.

No começo do livro, Nicole Krauss faz uma dedicatória aos avós que a ensinaram “o contrário de desaparecer”. Se esse “contrário” for permanecer (e não aparecer), faz sentido ela dedicar um livro ao amor, sentimento capaz de fazer perdurar a memória de alguém.

De volta à foto na orelha do livro, você não consegue deixar de se encantar pela mulher jovem de rosto anguloso. O semblante sério passa a idéia de determinação e de segurança, enquanto a posição dos braços sugere uma feminilidade que a deixa atraente. O olhar fixo parece um desafio, como se dissesse “duvida?”.

A história do amor
Nicole Krauss
Trad.: Paulo Schiller
Companhia das Letras
315 págs.
Nicole Krauss
Nasceu em Nova York, em 1974. Seu primeiro livro, Man walks into a room, foi lançado em 2002 A história do amor foi comprado por mais de 20 países e teve seus direitos vendidos para o cinema.
Emiliano Sabatini
Rascunho