A fúria de Noll

Em "Paris não se acaba nunca", livro que, como toda sua obra, fica a meio caminho entre o ensaio, a memória e a ficção, o escritor catalão Enrique Vila-Matas
O escritor gaúcho João Gilberto Noll
01/11/2004

Em Paris não se acaba nunca, livro que, como toda sua obra, fica a meio caminho entre o ensaio, a memória e a ficção, o escritor catalão Enrique Vila-Matas, ou melhor, seu narrador, que não é ele, mas é ele também, fala dos “escritores menos exemplares, os menos acadêmicos e edificantes, os que não estão interessados em dar uma correta e boa imagem de si mesmos”. Esses escritores seriam os únicos “que têm a rara coragem de se expor literalmente em seus escritos”. E conclui: “Eu os admiro profundamente porque só eles jogam para valer e só eles me parecem escritores de verdade”.

A breve descrição, que aparece na página 32 do livro de Vila-Matas, pode ser tomada de empréstimo para definir a literatura de João Gilberto Noll, o mais radical de nossos escritores contemporâneos. Iludidos com a imagem corrente atribuída aos escritores, que os apresenta como intelectuais da palavra, muitos leitores não conseguiram entender por que Noll reagiu com fúria e exaltação — e, por que não, destempero — ao artigo O sêmen masturbado, de Salomão Sousa, publicado na edição de setembro do Rascunho. Não podem entender a fúria de Noll, provavelmente, porque não podem entender a fundo sua literatura e a difícil, mas brava posição de escritor que ele sustenta.

Noll é um escritor que escreve não só com o intelecto, ou com os artefatos da cultura, mas com o corpo e, em especial, com os nervos. Um escritor que, a cada página, se coloca em grande risco pessoal. Ao contrário, a referência horrorizada ao sêmen, feita por Salomão Sousa, parece descartar do corpo tudo o que nele se passa no baixo ventre e que, por isso, escapa a qualquer controle, e conduz ao risco. “O sêmen de João Gilberto Noll é masturbado e melancólico”, o resenhista chega a dizer. Sua preocupação puritana com a gramática, contraposta ao estilo “sujo” e violento de Noll, o leva, como um engomado inspetor de escola, a vigiar cacófatos e a inspecionar o uso de pronomes reflexivos. Enfim, ele lê em Noll um outro escritor, que ele imagina que Noll deva ser. Não suporta ler o que lê. Não suporta a literatura ardente de João Gilberto Noll.

A reação furiosa de Noll à crítica equivocada de Sousa deve ser entendida, então, na perspectiva de uma literatura que é, ao mesmo tempo, exposição de entranhas (daí a “sujeira” que incomoda o crítico brasiliense), isso sem ser, como fazem os narcisistas e ególatras, confissão pessoal, ou desabafo despudorado. Ao expor seu descontentamento com a literatura de Noll, Sousa, contra sua vontade, termina por reforçar a grandeza da literatura de Noll. Essa capacidade de se revelar através de seus opostos, lembrando Vila-Matas, não é um privilégio de João Gilberto Noll, mas de todos aqueles escritores — podemos sugerir Clarice Lispector, Hilda Hilst, Vinicius de Moraes, mas pensar também em Roberto Arlt, em Gombrowicz, em Pessoa, em Kafka e no próprio Vila-Matas — que, a cada livro, usam as palavras para expor pedaços de si. É no contra-golpe que eles pegam o leitor, ali onde o leitor menos espera ser apanhado.

Escritor “nada exemplar”, para usar ainda a expressão de Vila-Matas, João Gilberto Noll faz uma literatura que não se deixa fascinar pelos apelos da norma literária, isto é, do “bem escrito” — e é isso, parece, o que tanto incomodou a Salomão Sousa, que dele esperava, por exemplo, coisas tais como “uma identidade com sua nacionalidade”. Não pode entender o resenhista que a literatura de Noll tira sua força da vida interior e de seus abismos, e não dos fenômenos sociais, ou naturais, disponíveis a médicos e sociólogos. E que, em conseqüência, ela não pode ser avaliada segundo sua relação com a realidade, ou a história, ou com as normas literárias, e mesmo as modas vigentes.

Hoje é de bom tom apreciar uma literatura seca, fundada em elipses, pontuada de armadilhas e de jogos de espírito. O contrário do que Noll, prestando unicamente contas a si mesmo, pratica, ele que trabalha com sentimentos fortes, diz as coisas de forma brutalmente direta, não perde tempo com malabarismos de linguagem (tão a gosto dos “neo-barrocos”, que hoje mandam nos clubinhos literários). Em outra sintonia com a escrita, distante desses melindres e escrúpulos de escola, Noll pega as coisas pela raiz e pelo fundo, e não pela superfície e pela casca. Em vez do brilho, do resultado eficiente, ou luminoso, ele se interessa pelo sangue.

Como Clarice e Kafka, é um escritor que pouco está se importando com a tradição literária, com o desenrolar monótono de tendências e de gêneros, ou mesmo com a recepção do que escreve — até porque cada leitor lê aquilo que quer e que pode ler, e nada mais. Ele não escreve nem “para o público”, como fazem os escritores amantes do mercado, nem “para a crítica”, como fazem aqueles interessados na consagração e em garantir um lugar na história literária. Justamente por isso, sua literatura provoca tantos abalos em que lê — e a rabugice de Salomão Sousa é exatamente o reflexo mais humorístico desse impacto. Ela se dirige diretamente ao leitor, agarra-o no que tem de mais inconfessável e incômodo, desafia-o a voltar-se para o repugnante. Em conseqüência, é uma piada, para não dizer um perigo, assustar-se por encontrar na literatura de Noll, como diz o diligente Sousa, “uma sucessão de frases descosidas, muitas delas sequer conseguindo explicitar significação”. Uma literatura que se calca no inconsciente e que se move nas frestas do irracional, que se faz às cegas e a cada passo, e não seguindo manuais de boa conduta, não pode mesmo se pautar pela lógica e pela significação transparente. Não, em definitivo, Noll não faz uma literatura “de tese” — como hoje é tão comum, e lamentável. Não faz uma literatura “para professor”, como o cauteloso orientando de mestrado ou doutorado, que escreve para agradar, para satisfazer o desejo de seu orientador, e não a si.

Dito isso, pode-se entender melhor, quem sabe, a reação violenta de Noll, que a alguns soou despropositada e até dramática. Sua exaltação não é a do escritor que se irrita com uma crítica negativa, porque ela feriu sua vaidade, ou amor próprio. Ela é justamente uma fúria — a palavra é mesmo essa — já que Noll está reagindo a outra coisa: a uma cegueira que, feita “crítica”, se torna uma impugnação. Porque é esse o objetivo claro da resenha de Salomão Sousa: desautorizar Noll como escritor que se expõe e cobrar dele que se adestre e se aproxime dos bons. Não foi de um livro, Lorde, ou de uma série de livros, que SS não gostou; sua indisposição é, mais que isso, com a postura que Noll sustenta diante da própria literatura, seu destemor, sua exposição radical e cruenta. Ao reagir, não é um romance, Lorde, que ele pensa destruir; é um sujeito, João Gilberto Noll, escritor que põe tudo em seus livros, que ele se esforça para aniquilar. Nada a ver com o desejo legítimo da crítica dura e sincera, que SS tem todo o direito de exercer, como qualquer um. Seu desprezo declarado a escritores fortes como Marcelo Mirisola e Milton Hatoum só reforça a impressão de que seu problema não é com livros, ou mesmo com pessoas (autores), mas com atitudes radicais diante do literário. A citação simpática que faz a Hilda Hilst, outra escritora feroz, não apaga essa impressão.

É bom recordar ainda que a fúria de Noll, violenta e dura, se restringe, ainda, e sempre, ao campo das palavras. Aquele óbvio que não custa sublinhar. É muito raro, na verdade, que um escritor ou artista reaja de modo tão frontal, exponha de modo tão direto, seus sentimentos, sobretudo os mais difíceis. Sobretudo aqueles considerados “negativos”, ou “anti-sociais”. Só que a fúria de Noll não pode ser atribuída a um rasgo de temperamento, ou a um destempero, ou a um suposto momento de extremo mau humor. Ela é a reação — proporcional — a uma ação que o atingiu bem no peito, ali onde sua literatura nasce — e, podemos acrescentar, morre também. Não é uma crítica a Lorde, nem ao escritor que o escreveu, mas ao modo como esse escritor relaciona a literatura com sua fúria.

Ocorre que hoje, com best sellers cheios de pose e solenes escritores de vanguarda e autores profissionais, temos uma idéia cada vez mais deturpada da literatura. Nesse sentido é lúcida e proveitosa a reação furiosa de Noll: ela nos faz lembrar que a literatura não é um jogo esnobe, uma jogada comercial, ou um exercício de especialistas. Ela é algo que, quando feito para valer, parte do mais doloroso e, por isso, chega ao mais fundamental. Um escritor não escreve livros, um escritor “é” seus livros e por isso o golpe bateu com tanta força em Noll.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho