Em 1515, o artista alemão Albrecht Dürer fez uma gravura de um rinoceronte sem nunca ter visto um animal. Ele se baseou em descrições e esboços de um certo rinoceronte, levado para a Europa pelo Rei Manuel I, de Portugal, como presente para o Papa Leão X. Aliás, presente malsucedido, visto que o animal morreu no barco onde era transportado de Lisboa para Roma.
A gravura, conhecida como Rinoceronte de Dürer, pode surpreender por dois aspectos opostos: alguns podem se assustar com as diferenças entre um animal real e a ilustração, que dá para o espécime uma armadura digna de um romance de fantasia medieval. Por outro lado, as similaridades são inegáveis: está ali o tamanho, a proporção do corpo, o chifre na cabeça. Sem ter visto tal animal, tão exótico para a época, podemos achar que Dürer não errou tão feio. Imagine viver na Europa dos 1500 e ouvir a descrição de um animal assim — é quase o que seria hoje um encontro com um extraterrestre.
Indo para assuntos mais terrenos, um rinoceronte pode chegar a pesar 2,3 toneladas, dependendo da espécie. Correr com rinocerontes é, no fim das contas, um título bastante apropriado para o novo romance de Cristiano Baldi, que apresenta a vida de um personagem jovem que lida com vários problemas, muitos deles tão pesados quanto esses animais.
Narrado em primeira pessoa, o livro mostra as angústias e os dilemas da vida de um personagem cujo nome não conhecemos. Com idade entre 20 e 30 anos, o protagonista começa sua história quando um telefonema da família o tira do seu refúgio e ele começa uma viagem de São Paulo para Porto Alegre para lidar com uma situação familiar. Na capital paulista, deixa um mestrado em andamento e uma namorada, que sequer é avisada da viagem.
Num primeiro momento, pouco fica claro sobre o personagem, que aparentemente só usa as palavras para liberar seus sentimentos, principalmente uma forte frustração. O protagonista desvia das questões reais o máximo que pode, se alongando e fugindo sempre que chega perto de algo — como alguém mais do que cansado de lidar com a narrativa da sua própria vida.
O resultado é um texto não linear, permeado de opiniões, flashbacks e divagações. O autor é capaz de criar uma cronologia psicológica, na qual o protagonista segura ou libera informações quando quer, quando pode ou sente que deve, mas com certo receio de contar tudo.
Outra técnica usada pelo autor é a inserção de algumas imagens em determinados momentos. A primeira delas é muito bem usada — mostra os bilhetes irônicos deixados pela Barbara, namorada do protagonista, na geladeira, e ajuda a caracterizar a personagem de um jeito bastante peculiar. Por outro lado, as outras acrescentam pouquíssimo à narrativa (ainda que não sejam exaustivas).
Se essa resenha parece misteriosa e pouco factual, é porque o livro também o é. É só aos poucos que o protagonista se permite contar como de fato é a situação familiar em que se encontra e quais foram os acontecimentos que levaram a isso.
A família
O protagonista deixa para trás uma família bastante conturbada. Na sua árvore genealógica estão os avôs já idosos e uma mãe e um irmão com o qual o personagem não fala há muitos anos — e os motivos para isso só serão revelados no final do livro. Aliás, a mãe está em uma situação delicada (com perdão pelo mistério, mas contar a situação delicada nesse caso seria dar um dos maiores spoilers do livro).
Um dos grandes assuntos do livro é como a família inteira lida com a situação do irmão, que tem uma baixa capacidade cognitiva. “Já antes de engrossar a voz, eu poderia dar um curso avançado sobre como gostar muito de uma pessoa que mal tem consciência do que é ser uma pessoa”, relata o personagem. Em grande parte, o nascimento de Igor é um dos motivos que alteram a dinâmica familiar e explicam a situação das coisas.
Fica claro também que a ida do personagem para São Paulo é, em grande parte, uma fuga. É a maneira que o personagem encontrou para lidar com a situação difícil que, ainda que não tenha sido ocasionada por ele, seria sua responsabilidade caso continuasse em casa.
O livro é construído principalmente com a capacidade do protagonista de contornar sua situação — fugindo para outra cidade ou evitando narrar os acontecimentos reais. Mesmo quando fala sobre eles, dá grandes voltas para chegar ao assunto e nunca apresenta uma definição simples. Baldi consegue criar em sua escrita o que o personagem tanto quer, uma eterna fuga.
Um exemplo: o personagem leva quase cem páginas para contar sobre um episódio específico que mudou completamente a dinâmica familiar (novamente, o mistério da resenha se justifica pela ausência de spoilers. E acredite em mim, sabê-los tiraria boa parte da graça de se ler o livro). Mas em vez de simplesmente falar o que aconteceu, o protagonista conta em vários detalhes a viagem inteira. Ao mesmo tempo em que isso permite um vislumbre das dinâmicas familiares antes delas serem alteradas, isso também faz com que o personagem evite falar da situação.
A verdade é que, perto dos rinocerontes com os quais o protagonista tem que lidar, qualquer índice de vida cotidiana parece uma ofensa. “Vê-se que eu não tinha autorização moral para importunar quem quer que fosse com medos, dores ou sofrimentos vulgares. Qualquer inquietação minha, para ser válida, precisava equiparar-se a ser portador de um comprometimento neurológico sério”. A vida dele é deixada de lado porque existem coisas maiores acontecendo.
Ainda assim, ele frequentemente usa a história da família e sua situação de exceção para justificar comportamentos questionáveis, como sair de São Paulo sem avisar a namorada ou inventar emergências para pedir mais dinheiro aos avós. Perto da situação familiar, uma atitude como a dele parece ter pouca importância.
Baldi consegue levar o leitor para uma situação com a qual é difícil não se sensibilizar, principalmente porque é claro que o protagonista não tem uma saída ou uma solução fácil. A criação do personagem é coerente, e a escrita em primeira pessoa tem o poder de transformar a fuga em ritmo de leitura. Mas ficará para cada leitor julgar se os golpes de Baldi são baixos demais, apelando para uma situação que só não provoca uma empatia imediata em quem tem um coração de pedra.
Enquanto o personagem lida com o conflito de cuidar de sua família e seguir com a própria vida, o autor brinca com a noção de violência e do normal, do absurdo e do cotidiano. Explico: ao mesmo tempo em que leva a situação familiar para o extremo, com acontecimentos tristes, violentos e incompreensíveis, ele mostra um personagem que teve de lidar com isso em seu cotidiano, em sua rotina. Para o protagonista, foram tantos dias vivendo com situações extremas que elas se tornaram banais, normais até.
Como o rinoceronte de Dürer — só basta ouvir dizer para entender. O autor cria uma situação de dor e incompreensão tão fortes que basta imaginá-las para senti-las.