Há um pouco de tudo no romance Sábado, de Ian McEwan. Há suspense, sensualidade, emoção, violência, guerra, discussão ideológica sobre a guerra e talento, muito talento de McEwan para envolver o leitor com tudo isso e mostrar, no fundo, que a vida humana é frágil, demasiado frágil.
Uma leitura precipitada sugere que McEwan busca apenas propor um debate ideológico sobre o combate ao terrorismo, situando a trama em um grande protesto em Londres contra a invasão do Iraque, e este assunto realmente é bastante refletido ao longo do romance.
Outra leitura é que McEwan quer também esbanjar seu talento narrativo ao escrever um romance que percorre somente um dia. Até poderia ser, caso McEwan precisasse provar alguma coisa. Mas para quem já levou um Booker Prize com Amsterdam e também produziu Reparação, um dos melhores livros dos últimos anos, essa brincadeira com o leitor é desnecessária. McEwan está muito acima de tudo isso.
A discussão sobre a invasão do Iraque e a respeito dos efeitos causados na Inglaterra serve apenas como objeto para a analogia que o autor apresenta em relação a um dia na vida do neurocirurgião Henry Perowne. É nessa analogia que está embutido o que realmente McEwan quer dizer. Um dia na vida de Perowne, com tudo que lhe acontece ou poderia acontecer, é muito mais intenso, pelo menos para o médico e para o leitor, que qualquer embate ideológico. Afinal, que importância tem uma guerra a milhares de quilômetros de distância, quando ali dentro de sua casa a filha está prestes a ser estuprada enquanto uma faca de um criminoso pressiona o pescoço de sua esposa?
Henry Perowne já leva, naturalmente, uma vida tensa. Médico renomado, ele passa seus dias, e muitas noites, no centro cirúrgico, manejando o bisturi dentro de caixas cranianas com a naturalidade de quem corta uma melancia, ao som de música erudita.
Ao cortar com cuidado, Perowne deixou que a gravidade sozinha puxasse o cerebelo para baixo — não houve necessidade de retrator — e foi possível ver até o fundo da região onde fica a glândula pineal, com o tumor que se estendia numa vasta massa vermelha, bem à frente. O astrocitoma estava bem definido e só havia infiltrado parcialmente o tecido em torno. Perowne conseguiu cortar quase todo ele sem danificar nenhuma região importante.
Para aliviar a pressão do trabalho, suas terapias são o sexo matinal com a esposa e o jogo de squash contra Jay Strauss, seu anestesista preferido. Mas este sábado tira Perowne da rotina. Ele acorda ainda de madrugada e observa um avião em chamas descendo em direção ao aeroporto da cidade. O receio de um ataque terrorista logo é dissipado pelo noticiário da tevê.
Perowne sai de casa para a partida de squash e, ao desviar de uma rua bloqueada por causa dos protestos que tomam conta de Londres, o médico envolve-se em um acidente de carro. O conflito com os ocupantes do BMW que bateu em sua Mercedes é um prenúncio do dia que vem pela frente. Os tipos são suspeitos e o diálogo é nervoso, acabando com uma agressão a Perowne. Mas ele usa a conversa de médico para amolecer o agressor e escapar da cena do acidente.
O momento da surra está passando, e Perowne sente que o poder está se transferindo para ele. Aquela saída de incêndio é seu consultório. O seu tamanho acanhado reflete, para ele, uma voz que recupera o timbre pleno de sua autoridade: — Você está indo a algum médico para cuidar disso?
Apesar do incidente matinal, tudo caminha para um perfeito sábado em família nos Perownes. Henry vai preparar o jantar que terá como convidados seu sogro, um poeta famoso, e a filha que retorna depois de seis meses em Paris, e que está para lançar seu primeiro livro de poesias.
Até então, McEwan segura o leitor com sua impressionante capacidade narrativa, usando 248 páginas do romance para apresentar esta família, seus conflitos, suas relações de afeto, num grupo em que liberdades individuais são respeitadas e a união é mantida por um forte fio de amor comum.
Nada — nem a iminente invasão do Iraque, e a possibilidade de um ataque terrorista em Londres — é capaz de alterar a rotina desta família e fragilizar o afeto que a mantém, apesar das divergências, principalmente entre Perowne e a filha, sobre a validade da guerra ao terror.
Até este momento, McEwan, por meio de Perowne, parece sustentar uma opinião favorável ao pacto anglo-americano contra o terrorismo. Esta faceta tem sido superestimada nas análises sobre este livro, talvez, pelo aspecto premonitório, pois o atentado a Londres acabou ocorrendo na vida real após a conclusão de Sábado.
Mas McEwan não é o tipo de escritor que precisa esconder-se atrás de um livro para emitir opiniões sobre assuntos tão delicados. A discussão ideológica em Sábado é usada apenas para se mostrar o quanto ela é inócua na vida da maioria das pessoas. Com ou sem Saddam, com ou sem americanos, dezenas de pessoas continuarão morrendo diariamente no Iraque e no resto do mundo.
A morte que assola em massa no Iraque também pode bater à porta de qualquer pessoa quando ela menos esperar. Perowne percebeu isso tarde demais, quando seu jantar foi invadido pelos homens que o haviam enfrentado no acidente de carro pela manhã. Assim, do nada, a vida de Perowne e sua família passa a ser ameaçada como um dia qualquer no Iraque. O sábado na casa dos Perowne vira um dia de terrorismo.
Este é o grande momento deste livro. O pequeno Iraque privado da família Perowne é magistralmente narrado por Ian McEwan, num texto que deixa o leitor à flor da pele, querendo entrar na história para defender os Perownes.
— Tire as roupas. Vamos lá. Tudo.
Baxter não se dirige a Theo, e sim a Daisy. Ela olha para ele, incrédula, trêmula, balança a cabeça num movimento débil. O medo dela o deixa excitado, o corpo inteiro de Baxter vibra e treme. Daisy consegue falar num sussuro.
— Não posso. Por favor… Não posso.
— Pode, pode sim, querida.
Com a ponta da faca, Baxter abre um talho de trinta centímetros no sofá de couro, logo acima da cabeça de Rosalind. Eles olham para a ferida, um rasgo feio, que incha em todo o seu comprimento, à medida que o velho estofo branco e amarelado escorre para fora, como gordura subcutânea.
Em 26 páginas o episódio se resolve, mas a tensão é tão impactante para o leitor que o livro poderia acabar por aí. Mas, sem ser previsível, McEwan ainda faz com que Perowne seja chamado ao hospital para uma cirurgia de emergência no crânio daquele que quase causou uma tragédia em sua família. A chance da vingança fica ao alcance de seu bisturi.
Há outros cirurgiões que Jay pode chamar e, como regra geral, Perowne evitar operar pessoas que conhece. Mas nesse caso é diferente. E, apesar de várias guinadas em sua atitude com relação a Baxter, alguma lucidez, e até certa firmeza, começa a tomar forma. Ele acha que sabe o que quer fazer.
Sábado termina com um retorno à discussão sobre o Iraque, mas ela chega a parecer sem sentido após este dia na vida dos Perowne. Faz sentido, entretanto, no contexto da obra, que começa e termina com a ameaça de terrorismo e da guerra, mas cujo momento maior de tensão se passa dentro de um pacato lar distante de bombas e atentados. Para os Perownes, mais do que qualquer invasão ao Iraque, é este sábado que marca suas vidas, suas frágeis vidas.