A forma deformada

Os poemas de "A retornada", de Laura Erber, parecem dignificar a experiência traumática
Laura Erber, autora de “A retornada”
30/09/2017

Nos chamados poemas de hospital, de Sylvia Plath, os eventos mortificantes se manifestam, contraditoriamente, como uma viva metamorfose. Não se trata da transformação contínua de um único objeto, mas de uma continuidade de transformações operada entre coisas e pessoas. Em Waking in winter, sonhar com destruição e aniquilações não impede que se possa “provar a lataria do céu” quando “inverno amanhecendo é a cor do metal”, e, mesmo com a estagnação geral nos leitos hospitalares, os outros pacientes são percebidos como clientes de um hotel em que o marulho das ondas abafa “seus sensos descascados como a Velha Mãe Morfina”. Em Tulips, a chegada das flores “vermelhas demais” à sala da paciente acaba com o ar calmo e sem tumulto, e “o ar enrosca e torvelina (…) como um rio/ enrosca e torvelina em volta dum motor rubro-ferruginoso afundado”; com isso, é a própria “vermelhidão” das tulipas que conversa com os ferimentos da paciente, em uma estranha correspondência. Em Three women, o mundo material “contagia” as três mulheres, que passam a ter uma estranha contiguidade com a estrutura das coisas: a primeira voz fala “sou lenta como o planeta”; a segunda se vê depenada quando seus sapatos ecoam mecânicos (“péc, péc, péc”) no passo veloz a caminho do hospital; e a terceira, grávida e deitada na maternidade, percebe-se “uma montanha (…) misturada a mulheres montanhosas”. Em todos os casos, a negatividade hospitalar opera uma nivelação que permite o contágio de qualidades entre substâncias qualitativamente distintas.

“Posso escrever? Por uma espécie de contágio?” São estas as perguntas que Laura Erber toma de empréstimo de Plath para abrir A retornada, que se erige, desde o início, sob o signo da indiscernibilidade. Isto é compreensível — trata-se, no caso de Laura, de uma poesia que surge de duas grandes “negativas”: foram dez anos sem publicar um novo livro, e, a julgar pelo posfácio de Heloisa Buarque de Hollanda, uma experiência de quase morte após um coma induzido. “Erigir”, no entanto, talvez não seja um verbo adequado para esta obra, que tanto se despedaça quanto mais se eleva. O resultado é uma espécie de “corpo sem nervos”, sem continuidade nem comando, e de sensibilidade embaralhada, produzido sob um motor semelhante ao que impulsiona os poemas de hospital de Plath. Podemos chamar essa poesia de lírica? Se a poesia lírica é aquela que é capaz de dar vazão a sentimentos que a linguagem cotidiana não consegue abarcar, os poemas de A retornada configuram uma poesia antilírica: propositadamente atacam as estruturas, cotidianas ou “poéticas”, da linguagem, impedindo que se possa “dar vazão” a determinadas experiências. Em outras palavras, os poemas de Erber parecem dignificar a experiência traumática — dos anos sem publicar (uma lesão editorial) e do retorno do coma induzido (uma lesão corporal) — menos ao clarificá-la ou explicá-la ao leitor, e mais ao permitir que ela de fato lesione as estruturas de sentido.

Essa dupla dimensão traumática afeta, de saída, o próprio título da obra, em que A retornada pode significar, ambiguamente, seja “a viagem daquela que retornou”, seja “aquela que de fato retornou”, ou ainda um objeto (ou obra) denominado “retornada”. Se lido em voz alta, o título pode soar ainda como um neologismo: “arretornada”, “aquela que não retornou”. Essa indecisão entre o sentido (“a retornada”) e o som (“arretornada”) configura, na obra, uma voz que está sempre no limiar entre o mundo dos que sentem e o mundo que não pode sentir, entre os vivos e os mortos. É o que Gustavo Silveira Ribeiro, em crítica publicada no Suplemento Pernambuco, chamou “ambíguo regime de legibilidade”, pelo qual distingue um imbricamento entre vida (e quase morte) e poesia. Com isso, o crítico percebe, um estado em que “timidez e valentia se combinam e alternam aqui [em A retornada]: a autora, retornada ao gênero poético, ao espaço do verso, à textualidade delicada da palavra que não se decide entre som e sentido, ora se retrai ante aos desafios da criação, ora se afirma neles e por eles, enfrentando a multiplicidade quase descontrolada de significados e possibilidades que a poesia tem”. Essa “multiplicidade quase descontrolada” atua nas formas de Erber, que se nos apresentam como deformações que a poeta vislumbra a partir de “onde se separa o olhar do olho// até a desaparição dos contornos e das formas”.

O azul repousa sob o rosa e na fuga
dos dias os surdos emitem sinais aos cegos
que ruborizam sem sombra
de dúvida: “Amor, o mundo
De repente, muda de cor”

Obras fragmentadas
É nessa confusão de cores e sentidos — e recorrendo, nesse labirinto informe, ao guia das palavras de outras pessoas (no caso do trecho citado, os dois últimos versos são de Plath novamente, “Letter in November”) — que histórias e imagens se desenham nas três partes de A retornada. Na primeira delas, Espécies de contágio, a poeta parte de citações para escrever os seus poemas: o mundo é, então, um povoamento do que já foi feito por outros (Heiner Müller, Marina Tsvetáieva, Ghérasim Luca, Ted Hughes, Mallarmé, Adrienne Rich, Agnès Varda, Vitor Nogueira, Sylvia Plath…). Trata-se de um mundo já composto, já erguido, já tomado como forma. É como se sua poesia fosse, para usar as suas próprias palavras, uma “luz que estoura a forma”, tendo por tarefa “dar nome ao perdido e depois/ perder/ o nome”. Estourar a forma, dar nome ao que se perdeu e perder o próprio nome são as três operações fundamentais da de-composição de A retornada. Nas palavras da poeta, “tudo tem sua multidão/ de varejeiras” — sim, as Calliphoridae, que se aproveitam das fezes e das carcaças como meio proteico e como meio de oviposição. Nesse caso, a fonte de proteínas e de reprodução de A retornada é um mundo de obras fragmentadas, que a poeta vislumbra como quem toma distância do mundo da vida (é claro que há, portanto, um parentesco secreto com a “forma vermicular” de Augusto dos Anjos, mas as semelhanças não se estendem muito).

o que mortifica não tem nada a ver com
lágrimas onde não há nada também não há hierarquia
seria preciso mais de uma vida para dizer a confusão
mental de não esgotá-la tudo o que empurra arrasta o
fundo sem forma

Na tarefa varejeira de decomposição universal, poesia e artes plásticas se aproximam como nos primórdios da reflexão sobre arte, e os textos de Laura Erber não se decidem sobre o seu estatuto como poemas ou como imagens. Ficam como que no limiar entre os dois, e se alimentam dessa condição ambivalente. Constituem-se, portanto, à maneira do que Chklovsky denominou de procedimento: a arte de Laura está menos a serviço da exposição das cenas de morte do que do prolongamento das impressões de morte no texto, o que gera certa indecisão da forma, isto é, gera o informe. Trata-se de um dinamismo que não paralisa os textos em moldes copiáveis — antes e depois da forma, mas nunca textos estagnados como fôrma: “os poemas são cansaços” porque são pura consumação; “as imagens apodrecem” porque ultrapassam o momento. A segunda parte do poema que dá nome ao livro de Laura Erber fala de uma “última tentação da matéria neste mundo” — a voz, a mesma que, ao se elevar, não distingue “a retornada” de “arretornada”, e que possui, como se pode ouvir, poderes mágicos diante da forma. Assim termina A retornada:

é tão perigoso falar do que desata? dizer a própria
morte traz de volta espécies de receio de contágio ao
tentar escrevê-la compactuo com ela? convoco-a?
desejo-a? (…)
alguém abriu todas as portas desligou
todas as máquinas retirou a máscara e com uma voz de
cristal e ópio “você sabe onde está agora?”

A retornada
Laura Erber
Relicário
60 págs.
Laura Erber
É escritora, artista visual, crítica, tradutora e professora de teoria e história da arte. Publicou Os corpos e os dias (2008) e Esquilos de Pavlov (2013), ambos finalistas dos prêmios Jabuti de 2009 e 2014, respectivamente. É autora também de obras voltadas para o público infantil, e co-fundadora da Zazie Edições.
Rafael Zacca

Poeta e crítico literário. É doutor em Filosofia pela PUC-Rio. Professor de Estética do departamento de Filosofia da PUC-Rio. Ministra oficinas de criação literária. Autor de O menor amor do mundo (7Letras, 2020, poemas) e Formas nômades (Urutau, 2021, crítica).

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