A fome

O norte-americano Dave Eggers faz uma literatura repleta de vida, mas com a morte sempre ao seu redor
Dave Eggers , autor de “Uma comovente obra de espantoso talento”
01/04/2005

Enfileirados, J. D. Salinger, Jack Kerouac, Saul Bellow, James Joyce, Bob Dylan, David Foster Wallace, Mark Twain e até Voltaire aparecem em textos que tentam descrever a ficção de Dave Eggers. Na maioria das vezes, esses nomes são usados em vão para criar uma frase de efeito, do tipo “o Salinger da internet” (Folha de S. Paulo), “Salinger e Kerouac em um só” (The Times, da Inglaterra) ou “eco de Joyce com um toque de Bellow” (Entertainment Weekly, dos EUA). O crítico do Financial Times usou uma metáfora quase engraçada, afirmando que o autor faz “um distinto sinal com a cabeça para Mark Twain”. Nenhuma dessas comparações faz muito sentido. Sim, Eggers procura dar voz aos jovens, como Salinger em Apanhador no campo de centeio; a exemplo do Pé na estrada, de Kerouac, também escreveu um road book chamado You Shaw Know Our Velocity (“Você deve conhecer nossa velocidade”). Mas existe um abismo entre essas afinidades e os rótulos adotados por alguns jornais e revistas.

De Eggers, no Brasil, existe o livro de memórias Uma comovente obra de espantoso talento (UCOET, de 2003), e um conto na antologia Falando com o anjo (2002), organizada por Nick Hornby, ambos lançados pela Rocco. Nos EUA, acaba de sair seu terceiro trabalho, How We Are Hungry (McSweeney’s, 234 págs., US$ 22). Quem lê em inglês e não se incomoda de desembolsar mais ou menos R$ 70 em um livro (incluindo despesas de postagem, o que não é um absurdo se comparado aos preços nacionais), vai perceber, de início, que Eggers é um sujeito que gosta de livro. Do objeto livro.

Para resumir a história, Eggers nasceu em Chicago em 1970, o terceiro numa família com quatro filhos, cresceu, estudou jornalismo e artes. Antes de sair da faculdade, aos 21 anos de idade, perdeu o pai de câncer no pulmão (embora o avanço silencioso da doença tenha comprometido outros órgãos). Cinco semanas depois, perdeu também a mãe, também de câncer (no estômago). Assumiu a guarda de seu irmão mais novo — tinha 13 anos à época —, foi morar em San Francisco e fundou uma revista de humor. Contou essa história toda em suas memórias, chamadas de Uma comovente obra de espantoso talento, estréia literária que se tornou um best seller. Vendeu os direitos ao cinema por uma fábula de dólares — algo em torno dos US$ 2 milhões. De acordo com o jornal The New York Times, Nick Hornby —conhecido também pelos filmes feitos a partir de seus livros (Alta fidelidade, Febre de bola e Um grande garoto) — prepara o roteiro que ainda não tem diretor definido. Entre os nomes sondados para o projeto, segundo a revista Premiere, estão Paul Thomas Anderson (Magnólia e Embriagado de amor) e Kimberley Pierce (Garotos não choram). Com o dinheiro do cinema, Eggers criou uma escola literária gratuita para jovens e fundou sua editora, a McSweeney’s. Por ela, lança seus livros, mais obras que dificilmente teriam chance em grandes editoras — como o tratado de William T. Vollmann sobre a violência, Rising Up Rising Down, com mais de três mil páginas em cinco volumes, vendidos numa caixa — e a revista literária trimestral, homônima da editora, na qual os principais escritores vivos dos EUA apareceram e aparecem. Eggers não olha só para o próprio umbigo e, de vez em quando, dá espaço para outras literaturas. A edição mais recente, por exemplo, se debruçou sobre a ficção islandesa — país famoso pela cantora Björk e por ter o maior número de escritores por habitante no mundo.

Abrir uma editora e investir em obras que não dão retorno financeiro — como já afirmou em entrevistas, uma delas feita por leitores no site www.mcsweeneys.net — são provas do interesse de Eggers nas letras. Como tem dinheiro e parece não se importar em gastá-lo, ele faz questão de lançar edições impecáveis. São livros feitos por quem gosta de livros (como objetos inclusive).

How We Are Hungry tem capa dura lisa, de cor preta, guardas marrons de um papel cartonado e um elástico preso à contracapa que serve como um protetor incomum (como aqueles que aparecem em diários e os mantêm fechados). Parece um volume antigo, sisudo, que não faz concessões a orelhas elogiosas ou textos explicativos. Na capa, em baixo relevo, há a figura de um hipogrifo — animal metade cavalo, metade grifo (que, por sua vez, tem corpo de leão e cabeça, bico e asas de águia) — famoso por aparecer na série Harry Potter, de J. K. Rowling. Na mitologia, o hipogrifo simboliza algo impossível — e isso diz muito sobre a antologia de contos de Eggers.

Em uma tradução possível, o livro se chama “Como estamos famintos” e reúne 15 narrativas curtas, cinco inéditas e dez publicadas em jornais, revistas e sites de internet, escritas em um intervalo de quatro anos (entre 2000 e 2004), todas posteriores a Uma comovente obra de espantoso talento. Em suas memórias, escritas aos 20 e poucos anos, Eggers retrata um desejo sobre-humano de viver, típico da juventude, um sentimento de imortalidade (em parte por terem sobrevivido à morte de seus pais), uma sensação de onipotência. Tudo o que produziu depois ganhou um tanto de amargura. Como se hoje, com mais de 30 anos, o escritor exibisse uma visão menos entusiasmada da vida. Os personagens de How We Are Hungry se esforçam para tirar o melhor da vida, não hesitam em viver novas experiências, buscam aventuras para se sentirem vivos, mas, invariavelmente, são sacudidos pela realidade e experimentam frustrações de todo tipo.

O conto mais longo da antologia, com 60 páginas, “Up the Mountain Coming Down Slowly” (“Descendo Lentamente do Alto da Montanha”), conta a história de Rita, uma mulher perto dos 40 anos que compra um daqueles pacotes de viagem exóticos a fim de escalar o monte Kilimanjaro, o mais alto do continente africano. No lugar de experimentar as emoções de uma aventura montanha acima, o leitor é constantemente trazido ao chão e lembrado de como tudo fica incoerente diante da morte. O único sentido da vida é em direção à morte.

Fish, o protagonista de “Climbing to the Window, Pretending to Dance” (“Escalando a Janela, Fingindo Dançar”), está irritado por ter de dirigir durante cinco horas para visitar um amigo que tentou suicídio pela sétima vez. Ele saltou do telhado de um motel de estrada, com uma altura ridícula para alguém que deseja morrer (cerca de três metros de altura), quebrou alguns ossos e só. “Bem que ele podia tentar para valer da próxima vez”, reclama Fish, como se sentisse pessoalmente ofendido pelas tentativas do amigo.

A morte aparece também em “Notes for a Story of a Man Who Will Not Die Alone” (“Notas para uma História de um Homem que Não vai Morrer Sozinho”). Eggers experimenta com a forma — costuma fazer isso em seus momentos menos inspirados — e oferece uma série de tópicos sobre a história do título, que seria muito mais interessante se fosse simplesmente contada ao invés de dissecada. O mesmo tipo de jogo formal é razão de ser em “There Are Some Things He Should Keep to Himself” (“Há Algumas Coisas que Ele Deveria Guardar para Si Mesmo”), que consiste em uma página com o título e outras cinco em branco. É como se estivesse gritando “sou pós-moderno!” para um público sonolento. Proposta ingênua com resultado bobo.

O conto sobre a escalada do Kilimanjaro e “After I Was Thrown in the River and Before I Drowned” são os melhores do livro. O segundo (outro sobre morte) é o único dos 15 publicado em português, parte da antologia Falando com o anjo, traduzido por Paulo Reis como “Após Ser Jogado no Rio e Antes de Me Afogar”. Eggers dá voz a um cachorro e cria uma teoria genial sobre a existência de Deus.

Seus personagens estão famintos de vida. Mas viver plenamente é uma coisa impossível. Daí o hipogrifo.

Irinêo Netto
Rascunho