Numa de suas saídas para obter os espécimes que irão constituir o bosque alemão que pretende plantar no jardim do prédio onde mora, o protagonista de Refúgio para bisões, romance de estreia de Gabriel Eduardo Bortulini, dá uma amostra de sua personalidade pernóstica. Incentivado pelo proprietário do viveiro a adquirir um imponente liquidâmbar, ele fica balançado diante do espetáculo de cores e texturas, para sumariamente desistir ao se lembrar de que não se trata de uma árvore europeia, e sim americana. Clóvis é um sujeito que se ilude facilmente com suas obsessões. Mesmo sabendo da dificuldade das plantas frias vingarem no clima temperado de Porto Alegre, o arquiteto se recusa a aceitar qualquer mudança em seu projeto original. Imagina que tem a ver com sua herança genética, os bisavós germânicos que foram colonos fundadores da cidade de Nova Petrópolis, no interior do Rio Grande do Sul, imigrantes que sempre estiveram certos de suas raízes. E é a partir desse aspecto interpretativo que esse livro sui generis, um dos vencedores do prêmio Biblioteca Digital do Paraná (2021), revela sua ambição binária, usando da metáfora da paisagem e de um manual dendrológico para tratar de temas como (não) pertencimento, adaptação, xenofobia e, cavando mais fundo, intenção de superioridade ariana.
É um estudo de personagem, em sua construção narrativa. Um método que institui um dilema entre agente e ação semelhante ao que Albert Camus promoveu em A queda. Na clássica novela do escritor argelino, um advogado parisiense, autocentrado, restrito a seus valores, reflete sobre moralidade e existencialismo tendo como fato catalisador o testemunho de um suicídio (ou a queda que pressente a morte) que o remete a um afastamento da realidade. Troca-se aqui por um paisagista gaúcho, pedante, fixado num plano que aspira executar a qualquer custo, com uma idealização transversa de mundo que explicita haveres problemáticos. Quando questionado, ou censurado, por outros condôminos sobre a validade de reformar a área verde de um prédio, plantando “um monte de árvores que não tem nada a ver com Porto Alegre”, ele lança mão de estratégias insidiosas para trazer a síndica para o seu lado. Com a vizinha Hélen (que, mais para frente, vai se revelar uma marca em sua vida), Clóvis se mostra um cretino assumido, praticando um pedagogismo humilhante. Sua conduta deflagra facetas de sua expressão interna mediante os desdobramentos de investidas que sempre buscam uma solução imediata, ainda que apoiada em justificativas que se sustentam em critérios do passado. Como o personagem de Camus, suas sustentações se colocam em distância e indiferença máxima das proposições alheias, precedendo sua responsabilidade, a não ser que interfiram em seu propósito. Seus olhos sofrem de heterocromia, que usa para se vitimar, quando lhe convém. De outro modo, manifesta a impressão pessoal de que há em si um hibridismo que lhe situa onde não deveria, por completo, estar.
Crise existencial
Pesa, em seu âmago, uma angústia em ser meio latino, meio europeu. Sobretudo ao remontar a saga de seus antepassados em solo brasileiro, e se considerar “o responsável pela morte de uma tradição”. Não perpetua a presença viva dos costumes e do idioma que seus bisavós, mesmo com as impostas adaptações, souberam preservar. Ele é embuste, um alemão que sequer tem contato com a neve. Numa passagem em que relata um regresso à sua cidade natal, descreve uma espécie de transe ao se hospedar na casa onde passou a infância, sentindo fisicamente que ali “o último resquício de brasilidade se esfacelava”. Clóvis vive em crise existencial e busca compensar parte desse desajuste materializando outro, um bosque cuja flora não está alinhada com as características geoclimáticas de onde será plantada. As árvores que elege — e, principalmente, os argumentos que defende para preterir outras — oferecem possibilidades implícitas de leitura, subtextos que decorrem de raciocínios patéticos a certezas impregnadas de preconceitos inconscientes.
Clóvis entende mais do que imagina (…) Sabe, por exemplo, que a língua dos imigrantes se modificou de uma forma diferente da língua de quem permaneceu no país de origem. Apesar disso, ainda custa a aceitar a influência do português no idioma dos bisavós. Mas é a própria evolução. Clóvis sempre esteve tão certo das origens, que jamais questionou a mais comum das árvores que escolhia.
O único desvio que faz a essa retenção de pensamento e modo de ser desemboca em Rocío Prada, uma antiga professora de arquitetura, austera e lacônica, que vive numa chácara isolada onde projetou e cultiva sua própria área verde. Clóvis relata para ela as atribulações do seu plano, no que a mentora lhe aconselha a não se ancorar na concepção do bosque ideal, mas do bosque possível. “Os obsessivos também fazem concessões”, adverte. Mas o ex-aluno persevera em seus conceitos inflexíveis, no que Prada lhe convence a viajar para a Alemanha, de modo a estar no ambiente natural das árvores que deseja adaptar, na terra abandonada pelos seus ancestrais. Dias depois, o paisagista pousa em Frankfurt, depois toma um táxi para a cidade de Heidelberg, onde reencontra amigos e conhece uma brasileira que será determinante para essa parte de sua história. A cada jardim que visita, em cada floresta, vivencia a sensação de ter enfim chegado “em casa”, no entanto não custa para experimentar, na carne, que, assim como as plantas, a natureza humana é suscetível a transformações quando deslocada de seu território original, e mesmo que as raízes carreguem traços de uma legitimidade identitária, para o nativo, um estrangeiro será sempre (re)tratado como um estrangeiro.
Bortulini vai bem em sua estreia, com uma escrita econômica e segura que se dedica à contextualização progressiva do tema principal, bem como à elaboração de um protagonista complexo, repleto de contradições no jeito distorcido de agir e entender suas motivações, a todo tempo espelhando curso dos fatos e subentendimentos. Os acontecimentos servem ao pensamento e só por meio deste se exprime o sentimento, transformado numa metáfora ou num comentário social. Aliás, ainda que semeado de mensagens, o autor nunca é expositivo ou cai nesse procedimento irritante de esclarecer tudo para o leitor ou apontar onde este deve olhar, impedindo que a trama reverbere livremente dentro e para além do texto. Não é uma narrativa de trânsito fácil, requer paciência nas páginas iniciais, contudo, pelos elementos inusitados que se utilizam para ligar os personagens a outros componentes do enredo, faz com que nunca mais se veja uma árvore da mesma maneira, embora não seja sobre árvores que se esteja falando aqui.
Nas páginas finais, ocorre uma série de fechamentos que, a um instante do trinco, desarmam-se e se convertem em novas possibilidades de alimentar equívocos, mostrando caminhos de uma realidade imaginada onde se busca a resolução para um conflito que se produz em si. A certa altura, o advogado egocêntrico de Camus contabiliza os deleites que lhe proporcionava a profissão, moldando-o um homem que encontra satisfação ao se achar num plano mais elevado que os demais. “Um terraço natural, a quinhentos ou seiscentos metros acima do nível de um mar ainda visível e banhado de luz, era, pelo contrário, o lugar onde eu respirava melhor, sobretudo se estivesse só, muito acima das formigas humanas”, declara. Todo obcecado está em busca de um refúgio que, mesmo falho moralmente, lhe traz paz na vida.