A filosofia telúrica do caubói

"Todos os belos cavalos", de Cormac McCarthy, é uma jornada atemporal na busca da literatura que há na vida real
Cormac McCarthy, um dos principais escritores de língua inglesa
30/12/2017

A presença pesada da natureza na obra de Cormac McCarthy poderia, muito facilmente, sugerir um embate entre homem e cenário. O árido se alia ao inóspito para criar a hostilidade e a brutalidade com que o escritor norte-americano pinta suas narrativas. Mas McCarthy, escafandrista incansável da masculinidade insensata, é menos Defoe e mais Conrad. Seu espaço narrativo exótico e preenchido em muito pelo imaginário do leitor, ganha os contornos emocionais de seus personagens, que buscam a si na vastidão do continente, e o conflito ocorre, antes de tudo, do lado de dentro do peito.

Todos os belos cavalos, publicado originalmente em 1992 e relançado recentemente no Brasil, rivaliza vida e destino na figura do adolescente John Grady, herdeiro de uma fazenda falida que, no fim dos anos 40, foge de casa em seu cavalo ao descobrir as intenções de sua família, de vender a propriedade ao invés de passá-la a quem de direito. Na companhia de seu primo Lacey Rawlins, cruzam a fronteira do México sem um plano mais objetivo do que viver experiências e, acima de tudo, retomar as rédeas do próprio destino. Junta-se à dupla o menino Jimmy Blevins, tão encrenqueiro quanto inocente, que modifica drasticamente a trajetória dos viajantes iniciais. Ao que os jovens se apresentam de peito aberto lhes devolve em incomunicabilidade, violência e nos diversos ritos de passagem que pontuam o fabulário masculino. Independência, amor, assassinato, comprometimento e honra são os cinzéis que talham o protagonista na terra estranha.

Mas é importante que se diga que, por maior que seja a transformação, John Grady não é uma tábula rasa. Personagem rousseauniano de moral bem constituída e repertório sólido, de uma erudição que beira o inverossímil, Grady é munido de ferramentas suficientes para triunfar sobre o espaço — como, aliás, outros personagens do escritor, como Anton Chigurh em Onde os velhos não têm vez e o juiz Holden em Meridiano de sangue. Sua paixão principal, entretanto, são os cavalos, de que se ocupa a maior parte do tempo, seja cavalgando, seja estudando em livros raças e métodos de criação. Sustentando uma existência quase romântica, Grady é, todo ele, um ideário de liberdade ocidental. Pesam a seu favor o desprendimento, a coragem, a pouca idade e a honradez com que enfrenta as situações no campo aberto à sua frente, repleto de mesetas, vegetação rasteira e encruzilhadas morais, que contrapõem coração e virtude, experiência e esperança, justiça e sobrevivência.

De modo que é fácil entender a aura onírica do romance e, mais uma vez, o espaço conradiano construído com arestas, preenchido por arquétipos e finalizado com a voz do escritor, inevitavelmente apaixonada pelo universo narrado. Todos os belos cavalos é um faroeste tardio que busca identificar e resgatar, como em boa parte da bibliografia de McCarthy, traços da tradição pioneira perdida do povo estadunidense, que outrora se permitiu o não-pertencimento e a curiosidade no próprio solo, mas que hoje se ufana ao reclamar cegamente para si tudo o que existe.

Contraste de mundos
Grady, entretanto, é um dos últimos dos seus. A modernização do pós-guerra e a corrida tecnológica que o mundo polarizado haveria de travar não deixa espaço para o caubói aventureiro e romântico. McCarthy contrasta o mundo em mutação ao redor de sua personalidade insistentemente estática em diversas situações, mas não esconde uma predileção por seu pequeno herói. É assim, por exemplo, que narra John Grady voltando de uma festa onde flerta de maneira malsucedida com a filha do hacendado para o qual trabalha:

A um quilômetro e meio da cidade passou um carro cheio de rapazes a toda e ele levou o cavalo para o lado da estrada e o cavalo agitou-se e dançou na luz dos faróis e quando os rapazes passaram gritaram alguma coisa para ele e alguém jogou uma lata de cerveja vazia. O cavalo recuou e empinou e escoiceou e ele o conteve e falou-lhe como se nada tivesse acontecido e depois de um tempo tornaram a prosseguir. A nuvem de poeira que o carro deixara pairava à frente na estreita reta até onde ele podia ver rolando devagar sob a luz das estrelas como uma coisa enorme brotando da terra. Ele achou que o cavalo tinha se comportado bem e enquanto cavalgava dizia-lhe isso.

O carro, portanto, avança a toda velocidade, tresloucado na juventude que zomba e polui, enquanto o vaqueiro se atrapalha com as reações orgânicas do cavalo ao barulho e à modernidade, mas continua seu trote lento enquanto cuida emocionalmente do animal. Uma vida que rejeita a máquina para zelar pelo bicho.

Essa proximidade e compreensão com o universo vivo permite que o autor explore, de maneira mais sutil, a filosofia telúrica do homem do campo. Para além das noções de certo e errado, a McCarthy interessa discorrer sobre o lugar do homem no cosmos e sua posição relativa à da natureza — uma preocupação comum a todos eles, como demonstra ao colocar, em dado momento do livro, os primos americanos em diálogo metafísico com os fazendeiros mexicanos. Ali expressam seus amores pelos cavalos e a importância deles para desvendar os mistérios da vida.

Rawlins perguntou-lhe em seu espanhol estropiado se havia um céu para os cavalos mas ele balançou a cabeça e disse que o cavalo não precisava de céu. Por fim John Grady perguntou-lhe se não era verdade que se todos os cavalos desaparecessem da face da terra a alma do cavalo também pereceria pois não haveria nada com o que reabastecê-la mas o velho apenas disse que não tinha sentido falar em não haver cavalos no mundo porque Deus não ia permitir uma coisa dessa.

Nessa toada, espelham nos cavalos suas características humanas e inferem-lhe gostos e personalidades igualmente familiares. McCarthy, entretanto, não dota os animais de seu romance de tais traços — poderia muito bem fazê-lo, à moda de Tolstói ou Jack London, mas não o faz, e a beleza de suas palavras não tira a crueza de seu realismo. Os cavalos continuam sendo apenas cavalos, alheios aos dramas dos homens, que matam e morrem e vivenciam uma gama complexa de sentimentos por causa deles. Amorais como o mundo, fazem o cenário para o teatro dos deuses e representam, em seu esplendor, o encantamento cósmico ancestral que parece dizer algo sobre nós mesmos, razão pela qual uma história de caubóis ainda é capaz de fazer sentido nos dias de hoje.

Por fim, é imprescindível frisar que a escrita de Cormac McCarthy é um constante lembrete de que, com a sensibilidade necessária, realidade e literatura se avizinham sem estabelecer fronteiras. A paisagem devastadora, os personagens cativantes e o movimento equino, de tudo se faz poesia na obra do escritor, capaz de fazer germinar de lugares áridos e duros as mais belas construções da língua inglesa contemporânea. Não é raro que o escritor dê mostras de que a divisa do real se esfumaça diante da beleza do mundo, e quando o faz, é sempre a favor da fantasia confinada em nossos processos cotidianos. Quando Grady vê a sua amada cavalgando um cavalo na chuva o autor, como num sutil discurso indireto livre, traz à consciência de que aquilo era “cavalo de verdade, amazona de verdade, terra e céu de verdade e ainda assim um sonho no todo”, acaba por reafirmar seus votos como romancista, de sempre buscar extrair a matéria dos sonhos para fazer a vida ser maior do que o conjunto de leis físico-químicas que constroem a experiência. Fazer a vida valer a pena, enfim. Ler McCarthy é reafirmar que, apesar dos pesares, ela vale.

Todos os belos cavalos
Cormac McCarthy
Trad.: Marcos Santarrita
Alfaguara
281 págs.
Cormac McCarthy
Nasceu em Rhode Island, nos Estados Unidos, em 1933. Estreou na literatura com o romance The Orchard Keeper, de 1965. De lá pra cá, publicou mais nove romances e recebeu uma série de prêmios por eles, como o Pulitzer por A estrada (2006), o National Book Award por Todos os belos cavalos e o PEN/Saul Bellow Award for Achievement in American Fiction pelo conjunto da obra. Teve um livro adaptado para a TV — The Gardener’s Son — e quatro para o cinema: A estrada, Onde os fracos não têm vez (vencedor de quatro Oscars, incluindo o de melhor filme), Todos os belos cavalos e Child of God. Seu livro Meridiano de sangue (1985) foi eleito pela revista Time como um dos cem melhores livros de língua inglesa desde 1923.
Yuri Al'Hanati

Formado em jornalismo pela UFPR, mantém o canal Livrada. Publicou contos nas revistas Arte e Letra: Estórias e Jandique. Seu conto Hominho integra a coletânea Livro dos novos (Travessa dos Editores). É autor do livro de crônicas Bula para uma vida inadequada (Dublinense).

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