De alguns anos para cá o mercado editorial brasileiro vem sofrendo uma transformação radical na sua política de publicações. A demanda dos livreiros — na necessidade de terem suas estantes recheadas sempre com bons lançamentos — determinou um novo ritmo nos parques gráficos das grandes editoras. O aumento significativo do público leitor, desde os textos básicos da literatura brasileira utilizada nos concursos vestibulares do país, até ao também concorrido espaço da literatura policial e de costumes, se deve a um dado importante e muitas vezes ignorado por esse mesmo leitor ansiado pelo novo lançamento do seu autor predileto como quem espera pelo novo capítulo da novela das oito.
Esse aumento da procura nas livrarias por títulos que vão desde a auto-ajuda, passando por biografias não autorizadas até aos manuais de cozinha, reflete de modo exemplar aquilo que acontece numa sociedade que tem na informação a supervalorização do conhecimento. De fato, nada de errado com essa intenção a não ser quando o teor informativo, ou melhor, quando o sentido a qual se presta um conjunto de dados e informações é utilizado para sustentar apenas a grande mecânica do mercado da informação. Assim, a valorização do conhecimento, da leitura, do desvelar de novos horizontes literários não cumpre senão um compromisso para com a demanda de consumo de um público fiel aos telejornais e aos sites na internet. Com isso, a formação do gosto pela leitura e pelo conhecimento não se dá proporcionalmente pelo interesse complacente do leitor em relação a uma tradição do conhecimento literário, filosófico, histórico ou social. A procura (demanda seria o termo mais apropriado) se deve tão somente ao efeito que se espera no final da leitura de um manual de jardinagem, por exemplo: depois de lido e interpretado as teses do autor acerca do plantio correto das bromélias, o sujeito se acha no direito de interferir no trabalho do jardineiro do condomínio alterando as disposições da semente e das covas mostrando que, até então, tudo o que tinha feito estava errado.
A proliferação de obras de grande vendagem, de lançamento simultâneo em inúmeros países e idiomas, de obras que já conquistam o título de best seller antes mesmo de concluir o processo de editoração é o reflexo dessa sociedade informacional, na qual padrões de informação e de escrita são determinados pela política de venda e de publicidade de tais obras. Todos esses produtos encerram uma literatura, mas que representa não uma atividade crítica nem do leitor (consumidor) nem do editor (o mero funcionário de uma grande empresa), mas uma cadeia de valores que tem como princípio o comércio da informação e do conhecimento.
E é mais ou menos nesse contexto que os best sellers filosóficos participam da grande feira, ao lado dos manuais de negócios e dos livros esotéricos. Em resenha de Adriano Koehler (Filosofia para muitos, Rascunho, fevereiro de 2002, nº22, p. 9) na qual apresenta alguns lançamentos da literatura filosófica, o autor passa indiferente a estas questões e pretende ainda mostrar como a filosofia, através destas obras, consegue chegar até aos leitores que ele denomina de “meros mortais”.
A questão merece um cuidado a parte. Falar de um conhecimento filosófico, de um conhecimento que vem se construindo há pelo menos três mil anos, é falar da constituição de valores morais, políticos, éticos, estéticos, etc. nesse período em que tal conhecimento se apresentou sob o nome de Filosofia. As investigações crítica, analítica, comparativa, empírica ou teórica foram (e em muito momentos ainda são) os diversos modos pela qual a Filosofia se estabeleceu como uma forma de conhecimento das coisas e do homem. Falar em Filosofia é primeiramente tomar como pressuposto da análise parâmetros filosóficos, ou seja, aqueles que primem pela investigação pautada por um método e um objeto definidos. Mas, anterior ao estabelecimento do método e do objeto (sejam eles quais forem) é necessário identificar na relação que o homem tem com a natureza (nas relações sociais, políticas, morais, estéticas, etc.) o problema ou o caminho que aponte para uma preocupação do homem com essa antinomia (homem/natureza). Eis o tal momento do espanto que permite o prosseguimento da indagação filosófica. Dessa forma, a Filosofia nasce do espanto, mas não pelas “formas cotidianas relacionadas à aparência das coisas e de onde nunca deveria ter se afastado”, mas da intenção de extrair dessa contradição entre pensamento e matéria as coordenadas necessárias para a formação do pensamento renovador e transformador da sociedade.
São, efetivamente, os momentos de espanto que permitem à humanidade prosseguir dentro dos limites da razão. A crise da razão em certas fases da história da humanidade é vital à própria razão, pois é o momento no qual nossas opiniões, certezas e crenças se fundem na tentativa de explicar nossa condição de seres pensantes e transcender, dessa forma, a matéria simples que constitui a natureza.
Ora, em nenhum momento a filosofia, por meio de seus mais significativos representantes, deixou de pensar a “realidade deste mundo”. A filosofia, ou aquilo que constitui o corpo teórico da análise filosófica, jamais perdeu de vista o chamado mundo empírico, pois é dessa condição que o trabalho filosófico retira seus problemas, contradições e preconceitos geralmente consumados pelo costume ou pelo valor de uso e finalidade. Heráclito se preocupou em estabelecer dentro de princípios lógicos a relação do homem com a physis (de ter na natureza o princípio contigente de todas as transformações do pensamento). Platão e Sócrates, num salto considerável dentro do processo de investigação filosófica, trataram do problema da fundamentação dos juízos lógicos, tendo por base o recurso da dialética para tanto. Séculos depois, encontramos, por exemplo, Descartes discutindo o próprio método de orientação científica (que ainda hoje serve de premissa na área das ciências exatas). Deparamo-nos também com Kant que aposta numa correção dos nossos juízos constituídos a partir do princípio de finalidade e direcioná-los de tal forma que o conhecimento não se deixe alienar por práticas que não visem a crítica. Sem falar em Hegel e Marx que, sem precedentes na história da filosofia, constituíram uma revolução — mesmo porque o século 19 representa um grande momento de espanto para a humanidade com o desenvolvimento das teorias científicas, o surgimento das novas ciências — ao questionar, inclusive o conceito de humanidade, ora posto em nome de um progresso cego e irrestrito.
Em todos esses momentos o que se discutia era a própria realidade e o contexto no qual cada um estava encerrado; os mesmos não “se arriscavam num universo hermético”, mesmo porque o mundo obtuso não era o da investigação que se propunham, mas aquele formado a partir da arbitrariedade das ações conforme finalidades práticas. Ora, estas finalidades não respondem por nossas reais necessidades, pois quando uma ação é apenas determinada por tal princípio estamos, aí sim, nos fechando num mundo alienado que não nos permite pensar o diferente, o contraditório, a antinomia que engendra novas formas de sociabilidade e produção de conhecimento. O mundo em estado de alienação coloca-se como entrave a toda e qualquer forma de pensamento transformador e revolucionário, pois uma ação irremediavelmente com propósitos finais em relação a si mesma, na qual o exercício de uma atividade se regule tão-somente pelo interesse de justificar a si mesma e a sua própria ação, não permite nenhum questionamento de sua estrutura a não ser vivenciá-la conforme seus princípios finais — Uma coisa é assim. Mas por que ela é assim? Porque todas as coisas semelhantes a ela são assim.
E daí nos perguntamos: por que os best sellers filosóficos são assim compostos de maneira tão rasa e não se complementam com questões que levem seu leitor a uma investigação ou questionamento da realidade sobre a qual se assenta? Porque essa parcela da produção do mercado editorial não se assemelha à filosofia (e nem o quer assemelhar), mas ao ritmo do pensamento dos manuais que pretendem passar o tempo do leitor ou substituir as palavras cruzadas por palavras prontas e fabricadas.
Desse ponto de vista, é ingenuidade de Adriano Koehler acreditar que a filosofia pode chegar aos “leitores mortais” por meio das obras O café dos filósofos mortos de Vittorio Hösle, As consolações da filosofia de Alain Botton e Senhas de Jean Baudrillard. Isso porque o conteúdo de tais obras — por mais merecedores que sejam seus respectivos autores — está determinado não pela necessidade filosófica de abrir novas horizontes e discussões entre seus leitores, mas de imediatamente estar relacionada aos programas editoriais das respectivas imprensas e ao mercado consumidor dessa tendência literária — tendência esta capaz de transformar bula de remédio em literatura.
O problema — não menos filosófico — reside no fato da crença dos leitores destas obras de estarem participando do contexto das idéias filosóficas. Estarão, no máximo, se permitindo a uma leitura sem nenhum compromisso com a literatura, muito menos com a filosofia, o que impede a assimilação dos valores morais, políticos, estéticos, éticos, etc., resguardados no interior de cada obra no decorrer da história da filosofia. O exercício filosófico depende antes da disposição do sujeito para questionar inclusive a si mesmo e seus valores, pois, somente assim seria capaz de apreender o diferente, o outro e reconhecer na mudança e na transformação o princípio motor da sociedade. E esse exercício, como diria Kant, não se aprende, mas se pensa.