A filosofia das mulas

Seleção de contos realizada por John Gledson mostra um Machado de Assis no auge da sua produção
Ilustração: Ramon Muniz
01/08/2007

Em 1998, John Gledson lançou uma antologia de contos de Machado de Assis, dividida em dois volumes. Eram 75 histórias curtas, precedidas por um esclarecedor prefácio, onde o organizador explicava que os quase 200 contos escritos pelo autor de Dom Casmurro, embora alcançassem momentos de brilho comparáveis ao que de melhor escreveram Tchekhov, Maupassant ou Henry James, jamais mereceram a devida atenção da crítica. E fazia uma precisa e detalhada descrição do percurso do Machado contista.

Esgotada aquela edição, chega agora às livrarias os 50 contos de Machado de Assis, selecionados por Gledson. A antologia mantém a mesma essência da anterior, e apesar de conter 25 contos a menos que a outra, ainda “é mais abrangente que de costume e inclui escolhas não usuais”, nas palavras do organizador. É verdade: ao lado de contos mais conhecidos, como A cartomante, Missa do galo ou O alienista, figuram histórias menos populares, como Fulano, A segunda vida e Evolução.

Como em qualquer antologia desse tipo, Gledson teria duas opções básicas a seguir: selecionar contos que fossem representativos do percurso literário do autor, ou seja, fossem exemplares das diferentes fases da carreira de Machado, ou se ater às que o organizador julgasse as melhores histórias. Sua opção foi claramente a segunda. Gledson não faz concessões à fase inicial de Machado de Assis: todos os 50 contos selecionados foram publicados depois de 1878, e 44 são da década de 80, quando o contista atingiu seu ápice de produção e de qualidade.

Para entendermos essa divisão temporal, é preciso notar que a mesma divisão dos romances de Machado em duas fases, que teria sido provocada por uma “crise criativa” no final dos anos 70, também pode ser aplicada aos seus contos. Do mesmo modo que as Memórias póstumas de Brás Cubas (1880-1) eram um notável avanço em relação a seu romance anterior, Iaiá Garcia (1878), também o volume de contos Papéis avulsos (1882) traz um escritor maduro e ousado, muito distante, enfim, do autor de Histórias da meia-noite (1873). Isso não significa que os contos anteriores a 1880 não mereçam atenção, e que neles não se reconheça, aqui e ali, o talento do grande contista que Machado se tornaria. Mas, sem dúvida, o salto de qualidade foi notável.

Muito se especula sobre o que teria motivado essa revolução da carreira de Machado de Assis. A causa mais divulgada pelos biógrafos (embora não seja uma explicação aceita por unanimidade) é a crise de saúde que o escritor sofreu no final de 1878 e o forçou a passar alguns meses de recuperação em Nova Friburgo. Mesmo durante o ano seguinte, Machado trabalharia o mínimo possível. E, em 1880, começaria a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas.

Na célebre advertência de Brás Cubas, o narrador assumia a “forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre”, forma que não deveria agradar nem gente “grave” nem a gente “frívola”. Outra esclarecedora advertência abre o volume Papéis avulsos, desta vez anunciando uma nova forma para as histórias curtas: “aqui há páginas que parecem meros contos, e outras que o não são”, diz o autor. E, de fato, os subtítulos de alguns contos apontam para as mais variadas formas: diálogo (Teoria do medalhão), retrato (D. Benedita), conferência (A sereníssima república), carta a um desembargador (Uma visita de Alcibíades), teoria filosófica (O espelho), além de dois supostos documentos: Na arca — três capítulos inéditos do Gênesis e O segredo do Bonzo — capítulo inédito de Fernão Mendes Pinto. Acertadamente, todos os contos de Papéis avulsos foram selecionados por John Gledson em sua antologia. Lidos em conjunto, eles compõem uma singular amostra do quanto Machado estava experimentando as diferentes variações desse gênero que, aliás, ainda estava em plena formação. Tchekhov e Maupassant, não nos esqueçamos, também publicaram muitos de seus clássicos na década de 1880.

Fina composição
Além dessa variedade formal, deve chamar a atenção do leitor, logo de início, a fina composição das personagens machadianas. Mesmo nos textos mais curtos, seus personagens dificilmente estão sujeitos à caracterização romântica mais típica ou servindo à comprovação inequívoca de alguma tese científica — o que era bastante comum, na época. Prova disso são suas muitas personagens femininas, a quem Machado concede irônicos e ambíguos retratos: D. Paula, D. Benedita, A senhora do Galvão, a Clara de Trina e Una ou a misteriosa Conceição, de Missa do galo.

Outro grande exemplo de ambigüidade moral é Marocas, personagem de Singular ocorrência. O conto é organizado na forma de diálogo, entre dois amigos que se encontram por acaso e comentam uma aventura singular, estrutura narrativa muito comum século 19. Quanto à profissão de Marocas, diz um dos personagens, muito machadianamente: “Não era costureira, nem proprietária, nem mestra de meninas; vá excluindo as profissões e chegará lá”. “Resgatada” da vida devassa da prostituição, Marocas se torna amante “oficial” de um cidadão respeitável. Porém, numa noite em que se sente particularmente sozinha (o amante estava com a família), Marocas se entrega a um desconhecido. O modelo romântico da Dama das Camélias, de Dumas, referido com destaque no conto, dá lugar à ambigüidade de caráter da protagonista: teria a moça sentido “nostalgia da lama” e se entregado a seus mais baixos instintos, ou apenas reagido, tristemente, ao sentimento da solidão amorosa? Não teremos resposta. O narrador apenas conclui, vagamente: “Enfim, coisas!” E o fim trágico que se anunciava, na expectativa (bastante romântica) do suicídio, não se realiza:

Pesquisou-se tudo; nenhum desastre se dera durante a noite; as barcas da praia Grande não viram cair ao mar nenhum passageiro; as casas de armas não venderam nenhuma; as boticas nenhum veneno.

Em Machado não haverá redenção moral nem condenações unânimes. Mesmo a morte, como o fim romântico que confere sentido às coisas, é destituída de seu caráter redentor ou trágico. Algumas das melhores cenas de seus contos são precisamente as que rebaixam o sério e o fúnebre ao riso mais maroto. Como aquele Joaquim Fidélis, personagem de Galeria póstuma, cujo corpo é encontrado “na cama, frio, olhos abertos, e um leve arregaço irônico ao canto da boca”. É como se risse dos vivos: seu caderno de anotações, descoberto postumamente, traz comentários certeiros e pouco lisonjeiros de seus amigos mais íntimos, os mesmos amigos que veneram, sem restrições, sua memória.

Outra pérola do humor negro é o início de Último capítulo, em que o narrador suicida comenta os bons costumes dos de sua classe:

Há entre os suicidas um excelente costume, que é não deixar a vida sem dizer o motivo e as circunstâncias que o armam contra ela. Os que se vão calados, raramente é por orgulho; na maior parte dos casos ou não têm tempo, ou não sabem escrever. Costume excelente: em primeiro lugar, é um ato de cortesia, não sendo este mundo um baile, de onde um homem possa esgueirar-se antes do cotilhão; em segundo lugar, a imprensa recolhe e divulga os bilhetes póstumos, e o morto vive ainda um dia ou dois, à vezes uma semana mais.

Pois apesar da excelência do costume, era meu propósito sair calado.

Mas o exercício do humor se realizaria plenamente nas fábulas curtas, gênero pelo qual Machado, leitor de Voltaire e Swift, demonstrava franca predileção. Alguns bons exemplos são o já citado Na arca (que conta um conflito familiar entre os filhos de Nóe, em pleno dilúvio), A igreja do diabo (cujo título já é auto-explicativo), e As academias de Sião. “Bem sei que em Sião nunca houve academias”, diz o narrador, mas esse detalhe histórico pouco importa. Quanto à moral, é sempre ambígua: o leitor que conseguir solucionar a dúvida da personagem pode lhe escrever uma carta, “sobrescrita ao nosso cônsul em Xangai, China”. O fantástico é rebaixado ao corriqueiro, e a interpretação dos grandes mistérios dos sábios acadêmicos está sujeita aos trâmites do serviço postal.

O rebaixamento dos grandes temas nota-se igualmente nos contos de feição mais filosófica, que também são muitos. Afinal, “Como deveis saber, há em todas as coisas um sentido filosófico”, conforme nos explica o narrador de O empréstimo. Mesmo que seja a escolha banal de um acessório cotidiano:

A escolha do chapéu não é uma ação indiferente, como você pode supor; é regida por um princípio metafísico. Não cuide que quem compra um chapéu exerce uma ação voluntária e livre; a verdade é que obedece a um determinismo obscuro (Capítulo dos chapéus).

E nem mesmo o tom ensaístico de alguns contos resiste ao rebaixamento irônico, como acontece na obra-prima O espelho. Enquanto um grupo de amigos discute “questões de alta transcendência”, um deles, ex-alferes, defende a tese de que todo homem é, “metafisicamente falando, uma laranja”, e possui duas metades, ou seja, duas almas. Para provar sua teoria, ele conta como enfrentou uma grande crise de identidade em sua juventude, permeada por elementos fantásticos. Detalhe: enquanto enfrentava seu pior pesadelo metafísico, o alferes não deixou de observar, no sítio abandonado, “um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas”. Comparar nossa vã filosofia à simplicidade da filosofia das mulas, termina por parecer uma grande ofensa a esses pacatos animais.

Em certo sentido, O espelho é uma história exemplar do Machado contista: estão lá a manipulação irônica de algumas convenções românticas (a ambientação fantástica, a referência ao relógio e ao poema de Longfellow), a representação categórica da veleidade das máscaras sociais, a sátira aberta às teorias filosóficas e científicas de sua época, as referências contextuais (a nobre origem do espelho) que escondem uma sutil reflexão histórica e social. Tudo sob o signo da ironia, a mesma ironia que um odiável personagem definiu como “esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos céticos e desabusados” (Teoria do medalhão).

Mas como acontece em qualquer coletânea, esta também deixou de fora alguns contos importantes, dentre os quais, por exemplo, a pequena pérola meta-literária que é O cônego ou a metafísica do estilo. Ou ainda o interessante O parasita azul, que pode ser interpretado como um “rascunho” para Memórias póstumas de Brás Cubas, como assume o próprio Gledson no prefácio à antologia de 1998. Tais ressalvas equivalem, enfim, a dizer que a presente antologia poderia ser maior. Mas esse já seria um outro projeto editorial.

Em favor da presente edição, deve-se ressaltar que ela traz notas elucidativas acerca das referências literárias e de fatos, pessoas e lugares citados por Machado, além de uma lista bastante útil dos contos selecionados, o local e a data da publicação original. E, sobretudo, é preciso ainda reafirmar o óbvio: estes 50 contos são uma notável seleção de alguns clássicos universais da narrativa curta: Pai contra mãe, A cartomante, A desejada das gentes, Uns braços, Um homem célebre, O caso da vara, A causa secreta. São textos que, embora pareçam bastante díspares entre si, ainda são, para usar as palavras que Machado dedicou aos seus Papéis avulsos, como “pessoas de uma só família, que a obrigação do pai fez sentar-se à mesma mesa”. Uma ilustre família, essa.

50 contos de Machado de Assis
Sel.: John Gledson
Companhia das Letras
487 págs.
Machado de Assis (1839-1908)
Escreveu poesia, peças de teatro, crônicas, contos e romances. Dentre os últimos, destaque para Memórias póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro, Esaú e Jacó. Colaborador de diversos jornais e revistas de sua época, conseguiu notoriedade intelectual e literária, sendo aclamado ainda em vida como um dos grandes escritores brasileiros. Feito notável, considerando sua origem humilde. Foi fundador e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras.
Gregório Dantas

Gregório Dantas é professor de literatura portuguesa da UFGD.

Rascunho