A ficção é realidade, e vice-versa

Fernando Monteiro faz da história norte-americana uma ficção de inumeráveis caminhos
Fernando Monteiro: olhar pelas beiradas da história oficial
01/11/2003

Uma amiga morou durante os dois últimos anos no Canadá, em Vancouver. Aconteceu de ela ir a Nova York conhecer a cidade, ficar uns dias por lá, e voltar de ônibus para Vancouver. Falando assim, não parece muito. Mas são três dias de viagem, atravessando os Estados Unidos de Nova York a Seattle, para dali chegar ao Canadá. A companhia que faz a viagem é a Greyhound, que aparece em “n” músicas sobre viajantes nos Estados Unidos.

Mas a viagem em si não é o principal. As coisas que aconteceram durante esta viagem, sim. Um dos “causos” é o de um garoto que vivia em Chicago, e pegou o ônibus ali para ir conhecer seu pai, que havia se separado de sua mãe logo após o anúncio da gravidez. O piá não tinha dinheiro para ir até Seattle, onde mora seu pai. Este então mandou o dinheiro para a passagem de ônibus, pois não tinha o suficiente para uma passagem de avião. Quando eles se encontraram, minha amiga testemunhou, e me disse que só faltaram os violinos de algum filme de Roliúde. Sem contar o motorista que largou um passageiro pela estrada, pois este havia descido em um local não-permitido. E de nada adiantou o lobby dos passageiros, que se calaram ante a ameaça do motorista: “Se vocês são tão amigos dele, podem descer aqui mesmo!”. Fino.

Tudo isto é para dizer o seguinte: nos Estados Unidos, é cada vez menor a fronteira entre a ficção e a realidade. Existiu a história oficial deste país, que depois foi recontada pelo cinema, e na seqüência as coisas foram se misturando de uma maneira tal que podemos ler um jornal norte-americano e achar que são crônicas de um ficcionista, e ler um livro de ficção e achar tudo perfeitamente plausível. Não é à toa que Teoria da conspiração, o filme, soa altamente provável, muito além do possível. E se vocês lerem o último livro do documentarista americano Michael Moore, em que ele acusa George W. Bush e sua trupe de terem organizado os atentados de 11 de setembro, ficarão ainda mais impressionados.

Portanto, saber se o escritor Fernando Monteiro criou, recriou ou relatou a realidade em seu último trabalho, Armada América — Relatos sobre a inquietude do império, não importa. Afinal, se um país elege Arnold Schwarzenegger como governador do estado mais rico, tem um lutador de luta livre governador de outro estado, um presidente que ganhou as eleições apenas porque a Corte Suprema validou os votos contados no estado governado por seu irmão, apesar das evidências de erro, onde o tiroteio em escolas é quase uma rotina, dentre tantos outros fatos, mais vale a pena criativa de um escritor relatando as desventuras de uma nação, reais ou imaginárias, que trocentos historiadores.

Monteiro reúne em 14 contos momentos emblemáticos da história norte-americana, sem, no entanto, se ater aos grandes protagonistas. O escritor vai atrás de detalhes de personagens às vezes conhecidos, outras não, e conta situações, momentos e experiências que ao longo dos anos foram moldando o modo de ser americano. O período histórico abrange desde a história de Torn Horn, personagem da grande expansão americana para o Oeste, ou, em outras palavras, da conquista e subjugação dos índios, até a possível descoberta do cadáver de Saddam Hussein em Tikrit, no mais do que atual Iraque.

Cada conto revela um pedaço da alma americana. E a partir de Horn, Monteiro vai ampliando a sua galeria de personagens, verdadeiros e fictícios, e vai entrelaçando suas tramas, de modo que vemos os reflexos de ações do início do século 20 no assassinato de John F. Kennedy (momento que não poderia faltar em um livro sobre a inquietude do império), e as conseqüências posteriores. Por exemplo, o Capitão J. P. Bormann Junior, do conto CNN, tem sua relação (nem que seja apenas pelo nome, mas não é coincidência, não para Monteiro) com Joseph P. Bormann, motorista de Joseph P. Kennedy, pai do John, e … Melhor parar de apontar as propositais coincidências por aqui, para não estragar o prazer da leitura.

Um dos méritos de Monteiro neste último trabalho é conseguir captar as beiradas da Grande História (maiúsculas por se tratar daquela chamada oficial) e transformar os personagens talvez secundários em protagonistas, sem esquecer da importância do quadro geral. Veja o conto O Dakota, que relata a história de um índio dakota que certa vez foi o interlocutor do general George S. Patton, o herói americano. Não importa ali o passado de Patton, ou como ele chegou aonde chegou, isto não é importante. Importante é o diálogo, o momento entre o militar e o índio, que à época do diálogo servia o exército. E é uma conversa sobre outra guerra, mas uma encenada, não uma real. E como o real às vezes é muito real para o cinema. Mais uma vez, a ficção molda a realidade, que por sua vez se transforma na ficção.

Armada América
Fernando Monteiro
Francis/W11 Editores
120 págs.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

Rascunho