A felicidade basta

Em "O dia do casamento", John Berger conta uma história simples, mas ao mesmo tempo lírica, emocionada e cheia de nuanças
John Berger, autor de “Aqui nos encontramos”
01/02/2005

“Quero me casar/ na noite na rua/ no mar ou no céu/ quero me casar./ Procuro uma noiva/ loira morena/ preta ou azul/ uma noiva verde/ uma noiva no ar/ como um passarinho./ Depressa, que o amor/ não pode esperar!”
(Quero me casar, Carlos Drummond de Andrade)

As cores, cheiros e sons de uma festa de casamento suplantam qualquer infelicidade posterior para aquelas pessoas que vão jurar amar-se para o resto da vida, em nome de deus, dos homens e de suas almas expostas. A cerimônia — independentemente do ritual, da crença, das palavras que a circundam — exala alegria. E amor. É contagiante. E também uma espécie de anestésico. Não há espaço para pensar em problemas de dinheiro, de trabalho e de saúde. É um momento de comunhão. Por mais que muitas pessoas recusem-se a dar o braço a torcer, é bonita. E única. Mesmo que sejam várias.

Não importam os dias, meses, anos de preparação. E nem o que vem depois do cansaço dos pés e do salão sem mais música e corpos dançando. A cerimônia, a festa que celebra a união de duas pessoas, basta-se. Há, inclusive, os que acreditam que só se pode ser feliz com uma cerimônia de casamento. Que é marca profunda, uma cicatriz. Mas mesmo para quem não acredita em nada disso, o corte parece demorar a fechar e desaparecer. Quase tudo o que veio antes e o que virá depois da festança será esquecido. Mas a cerimônia… esta ficará para sempre. Tanto para os noivos quanto para as pessoas que não estarão na festa por causa da comida e da dança. Porque mostra que há amor, esperança, planos. E que, independentemente de isso tudo durar “para sempre” ou não, houve um momento em que era só no que se acreditava. As fotos, anos depois, serão a prova de que houve um dia em que tudo, tudo, era alegria. Para recordar os detalhes bastará passar os dedos sobre o papel amarelecido que apreendeu a alma daqueles que fizeram questão de celebrar o amor uma vez mais. E sempre.

O casamento — a cerimônia, digo — é como um quadro de Chagall. Como aquele em que os noivos flutuam sobre a cidade azulada, acompanhados por um peixe voador e um bode violinista. Lírico, colorido e surreal. Foi isso mesmo o que pensei quando vi o livro O dia do casamento, de John Berger. A ilustração da capa (The wedding day, de Daniel Nevins) é praticamente esse quadro (La Mariee), de Chagal. Com exceção do bode e do peixe voadores. E, à medida que lia o que o inglês escreveu, minha “teoria” foi se fortalecendo.

A história não poderia ser mais simples. E, ao mesmo tempo, lírica, emocionada e cheia de nuanças. Ninon entrega-se a uma maravilhosa noite de prazeres, com homem charmoso, misterioso e sedutor, que desaparece na mesma madrugada. Tempos depois, apaixona-se por Gino, um italiano vendedor de roupas. A vida é linda e colorida, até que um médico revela que a tal noite de prazeres significará uma morte prematura e terrível… Ninon descobre-se portadora do vírus HIV. Pronto. A vida fica cinza, triste e sem sentido. Pelo menos até que Gino declare seu amor incondicional e a peça em casamento. O que veio antes e o que virá depois, não importa. Quem veio antes ou quem virá depois, também não. O que realmente interessa é a linda, emocionante e eterna cerimônia de casamento. A música, as danças, as cores, as pessoas alegres e cheias de comida e de alegria pelo brilho dos olhos de Ninon e Gino…

O tema é batido (o amor, que transcende tudo e vence todos os obstáculos). Mas tão bem escrito… Com palavras colhidas a dedo, com intervenções precisas, com sentimento e técnica. São várias as vozes que narram o amor, a vida e a morte de Ninon. Ela própria, Gino, o pai (Jean Ferrero), a mãe (Zdena) e um cego vendedor de tamatas (amuletos usados pelas pessoas, em troca de bênçãos ou alívios para as dores do corpo e da alma). Todos se revezam contando impressões, lembranças, dores e paixões, o que transforma essa simples história — comum a tantas pessoas e a tantos escritores — em uma delicada colcha de retalhos, colorida, encorpada, por vezes melodramática… Antiga e ao mesmo tempo atual.

Ao narrador cego cabe a missão de costurar todas as histórias. É ele quem narra o momento em que o leitor descobre que Ninon tem um sério problema. Um problema que não pode ser mais resolvido pelos métodos ortodoxos. Precisa de uma ajuda maior. Ele conta sobre o dia em que Jean Ferrero compra um tamata para Ninon — um coração feito de lata (afinal, para Deus, não faz diferença se o tamata é de lata, ouro ou bronze, certo?). “[…] Sofre em que parte? perguntei. / Por toda a parte, respondeu ele. […]” (p. 9).

Os outros personagens dão detalhes que aproximam ainda mais o leitor do sofrimento da família de Ninon e do amor que Gino sente por ela. “O dom de me entregar me foi tirado. Se eu me ofereço, ofereço a morte. Sempre, até o dia em que eu morrer. Quando desço a rua e os ragazzi me olham, isso me faz recordar o tempo todo de que sou a morte. […]” (p. 71). “Rezar não é algo que estou acostumado a fazer. Olho pra você? Você olha aí de cima, por isso farei o mesmo. Ela vai morrer. […] Neste período há dor e tempo, mas não há esperança. Ela também é sua filha. Não há nada a pedir, e tudo a pedir. Nos ensine a transformar nada em tudo, Santa Maria. A maioria das pessoas desvia o olhar. Você não sabe porque é uma estátua. Têm medo, eu tenho medo. Você fica calma porque é uma estátua. Como transformar nada em tudo?” (p. 78)

Não há detalhes sobre o que vai acontecer depois com Ninon e Gino. Não se sabe muito sobre as febres, as dores e o emagrecimento da moça em função do vírus. Nem do período em que não haverá mais esperança, nem crença em médicos ou deuses ou santos. O que todos vão lembrar, no final de tudo, é que houve um dia, especial e branco, em que Ninon e Gino esqueceram de todos os problemas e foram felizes.

O dia do casamento
John Berger
Rocco
170 págs.
Andrea Ribeiro

É jornalista.

Rascunho