A fantástica fábrica de livros

Aventuras criadas por Roald Dahl carregam sempre a ideia central de que é possível enfrentar e vencer o vilão
Roald Dahl, autor de “A fantástica fábrica de chocolate”
01/05/2024

A Galera Junior, selo da Record, lançou uma coleção do Roald Dahl. Se o nome não te é familiar de imediato, não se preocupe. É daqueles autores com obras tão importantes que acabamos lembrando primeiro dos livros. É o autor, entre outros, de A fantástica fábrica de chocolate e Matilda.

Os livros são curiosamente autobiográficos. É a autoficção antes de ser modinha. Roald Dahl nasceu no País de Gales, filho de noruegueses. Perdeu cedo uma irmã e o pai. O pai morre de pneumonia poucas semanas depois da irmã, de apendicite. Roald tinha três anos. A mãe decidiu então criá-lo em uma escola inglesa, seguindo o desejo do marido, e não retornou para a Noruega. Cinco anos depois, Roald e quatro amigos apanharam do diretor da escola, com um bastão, por terem colocado um rato morto dentro de um pote de balas em uma doceria ali perto.

Até aqui, vejamos. O menino em As bruxas, transformado em rato, é inglês, filho de noruegueses, estuda em uma escola inglesa após o falecimento dos pais. Nesse mesmo livro, a avó materna tem uma pneumonia.

Existem pequenas interligações entre os livros também. Matilda e a avó em As bruxas prestam uma enorme atenção a quantos batimentos cardíacos por minuto os animais têm. Seria Matilda a avó?

A partir dos treze anos, Dahl foi educado na Repton School, em Derbyshire, Inglaterra. A fábrica de chocolates Cadbury enviava caixas dos seus novos produtos à escola para que fossem provados pelos alunos.

Na orelha dos livros dessa coleção, encontramos: “Roald Dahl foi espião, piloto de caça, historiador do chocolate e inventor médico”.

Theo, um dos cinco filhos de seu primeiro casamento, com a atriz norte-americana Patricia Neal, aos quatro meses de idade foi ferido gravemente. Seu carrinho de bebê foi atropelado por um táxi em Nova York, onde moravam. Para aliviar a hidrocefalia traumática do filho, Roald Dahl ajudou a desenvolver a válvula WDT (Wade-Dahl-Till). Em 1965, Neal, grávida, teve três aneurismas. Foi Roald Dahl quem cuidou dela até que ela reaprendesse a andar e a falar.

Após 30 anos de casamento, divorciaram-se e Dahl se casou com Felicity Crosland, 22 anos mais moça que ele.

O Sr. Raposo perde o rabo. Em As bruxas, os pais do personagem principal morrem em um acidente de carro logo no começo do livro, a avó perde o polegar e o menino-rato perde um pedaço do rabo. São sempre histórias de sobrevivência.

Muitos livros
Roald Dahl também escreveu o roteiro do filme Só se vive duas vezes, filme do James Bond, e mais um monte de outros títulos, infantis, adultos, roteiros, contos.

Em 1961, escreveu James e o pêssego gigante. Em 1964, A fantástica fábrica de chocolate. Em 1970, Fantástico Sr. Raposo. Em 1983, As bruxas. Em 1988, Matilda. E eu pulei um monte de títulos. É uma fantástica fábrica de livros, esse senhor Roald Dahl.

Em 2021, a Netflix comprou a Roald Dahl Story Company. Isso significa que teremos ainda muitas novas adaptações. Textos é o que não falta. Começamos em grande estilo, com quatro contos filmados por Wes Anderson. São eles: A maravilhosa história de Henry Sugar, O cisne, O caçador de ratos e Veneno. Atores ingleses se revezam como principais nos quatro filmes: Ralph Fiennes, Benedict Cumberbatch, Dav Patel, Ben Kingsley, Richard Ayoade e Rupert Friend.

Dahl, entretanto, está longe de ser uma unanimidade. Era antissemita assumido. Era também gordofóbico, machista e racista. Em 2023, a Penguin (selo Puffin), que detém os direitos das obras infantis, começou a publicar novas edições alteradas, amenizadas, açucaradas. Essa é uma questão que o mercado editorial conhece bem: quando atualizar o discurso, quando corrigir esses problemas? Ninguém me perguntou, mas sou particularmente a favor dessas atualizações. Uma boa história é sempre uma boa história e não deve pagar pelos pecados do seu autor. A morte do autor, aquelas coisas. O Roland Barthes em mim saúda o Roland Barthes em você.

Voltando a aspectos biográficos, a família Dahl não tinha problemas financeiros, pelo contrário. O pai de Dahl deixou uma pequena fortuna para a esposa e filhos. Algo como 40 milhões de reais (herança estimada em aproximadamente 6,8 milhões de libras esterlinas em 2021). Curiosamente, seus heróis são todos pobres: senhorita Mel (Matilda), Charlie (A fantástica fábrica de chocolate), Sr. Raposo, etc.

Logo ao terminar a escola, Dahl arrumou um emprego na Shell, em 1934. Foi então enviado, junto com outros dois ingleses, para comandar a filial da Shell em Dar es Salaam (atual Tanzânia), onde viveu em absoluto luxo. Ali conheceu bem de pertinho mambas-negras, leões e outros animais selvagens. Em Veneno, o personagem principal, Harry, não se move porque uma serpente venenosa deitou sobre ele enquanto dormia. Será salvo por um médico indiano, com todo um subtexto racista.

Em 1940, como piloto, Dahl sofreu um acidente de avião, fraturou o crânio e ficou cego por oito semanas. A maravilhosa história de Henry Sugar conta a história de um milionário ocioso que descobre que na Índia já viveu um homem que conseguia enxergar sem usar os olhos. Sugar então quer aprender a fazer isso para poder trapacear nas cartas.

O que mais me fascina, entretanto, é a repetição do lema de Davi e Golias em suas histórias. Todos os personagens principais são pequenos, indefesos, fracos, desprotegidos e lutam contra figuras poderosas e terríveis. Matilda enfrenta uma família que não a compreende e uma diretora de escola cruel. O Sr. Raposo luta contra fazendeiros mesquinhos para alimentar a sua família. O menino em As bruxas encara a perda dos pais e, obviamente, as bruxas. Até mesmo o pequeno Charlie, em A fantástica fábrica de chocolate, debate-se contra o monstro da recessão, da fome, da extrema pobreza.

A ideia central de suas histórias infantis é sempre a mesma: não importa o quão pequeno você seja, você consegue enfrentar o vilão. Isso, naturalmente, é um discurso muito tentador para as crianças. Não só para crianças. Quantos de nós não nos sentimos pequenos às vezes? Impotentes frente a injustiças ou arbitrariedades? É para nós, os que apanham da vida, que Dahl fala.

Um dos melhores conselhos que já recebi na vida foi de uma aula do Luiz Antonio de Assis Brasil. Ele disse “leia quem escreve melhor do que você”. Ou algo parecido com isso, cito de memória, que me trai frequentemente. É o caso aqui.

É para nós, os que apanham da vida, que Dahl fala. E fala muito bem.

A fantástica fábrica de chocolate
Roald Dahl
Trad.: Dulce Horta
Galera Junior
160 págs.
Matilda
Roald Dahl
Trad.: Cecília Camargo Bartalotti
Galera Junior
224 págs.
Fantástico Sr. Raposo
Roald Dahl
Trad.: Jeferson Luiz Camargo
Galera Junior
94 págs.
As bruxas
Roald Dahl
Trad.: Jeferson Luiz Camargo
Galera Junior
206 págs.
Roald Dahl
Nasceu em 1916, no País de Gales. Foi espião, piloto de caça, historiador do chocolate e inventor médico. Mas foi como autor de livros como A fantástica fábrica de chocolate, Matilda, BGA: O bom gigante amigo e Fantástico Senhor Raposo que conquistou a todos. Seus livros já venderam mais de 250 milhões de exemplares no mundo. Morreu em 1990.
Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho