Dentro da sala moderna e bem iluminada nĂŁo há vestĂgio aparente do prĂ©dio de arquitetura medieval que, em mais de cinco sĂ©culos de histĂłria, já foi de tudo: de mansĂŁo a prostĂbulo, de cortiço a açougue. DistribuĂdas em quatro mesas organizadas em torno de um telĂŁo, cerca de 15 pessoas aguardam pacientemente o inĂcio das atividades. Computadores portáteis dividem lugar nas mesas com lápis e cadernos, xĂcaras de chá e guardanapos cheios de biscoito. “Às vezes, tudo o que um escritor precisa Ă© de uma hora para escrever”, diz a poeta responsável por coordenar a sessĂŁo. “Criamos este espaço na agenda para proporcionar exatamente isso para vocĂŞs.”
A hora livre de escrita faz parte do calendário cultural do Dragon Hall, um opulento casarĂŁo do perĂodo tudoriano situado na cidade de Norwich (a 158 quilĂ´metros de Londres). É lá que funciona o National Centre for Writing — instituição que nasceu no inĂcio dos anos 2000 e foi uma das principais responsáveis por tornar este pacato municĂpio a leste da Inglaterra, com pouco mais de 100 mil habitantes, a primeira Cidade da Literatura do paĂs pela Unesco, em 2012.
“NĂłs oferecemos um espaço onde escritores reconhecidos e emergentes sĂŁo apoiados e orientados”, diz Peggy Hughes, diretora de programação do National Centre for Writing. “Aqui, o melhor da literatura mundial Ă© facilmente acessĂvel ao pĂşblico leitor, beneficiando a comunidade local com programas educacionais inovadores.”
Peggy cuida da agenda do casarĂŁo desde 2017. Natural do norte da Irlanda, com formação universitária na EscĂłcia, trabalhou no Festival Internacional do Livro de Edimburgo (primeira Cidade da Literatura pela UNESCO do mundo, em 2014) antes de se mudar para Norwich, atraĂda pelo que define como um “ecossistema” criado ao redor dos livros: “A regiĂŁo tem produzido um grande nĂşmero de escritores maravilhosos, que fizeram daqui sua casa”, diz Peggy. “Temos uma comunidade de escritores e uma comunidade de leitores, alĂ©m de livrarias e eventos que alimentam este apetite por literatura.”
Espaço cultural
Com mais de um milhĂŁo de itens tomados de emprĂ©stimo por ano, a Norfolk & Norwich Millenium Library orgulha-se de ser a biblioteca mais movimentada de toda a Inglaterra. Sediada num galpĂŁo que abriga tambĂ©m o centro de informações turĂsticas da cidade, os estĂşdios locais da BBC, alĂ©m de uma pizzaria e um cafĂ©, a biblioteca foi inaugurada em 2001 apĂłs suas antigas instalações serem destruĂdas por um incĂŞndio, no inĂcio dos anos noventa.
A inauguração, prestigiada pela prĂłpria rainha Elizabeth, Ă© lembrada hoje por uma placa de metal instalada no saguĂŁo do Forum, o imponente prĂ©dio com ampla fachada de vidro que já serviu de mercado para os imigrantes franceses da regiĂŁo. AlĂ©m do acervo de livros, revistas, CD’s e DVD’s catalogados por uma equipe de 80 funcionários, a biblioteca guarda ainda a coleção do Memorial da 2ÂŞ DivisĂŁo da Força AĂ©rea Americana, cujo quartel general funcionava a dez quilĂ´metros da cidade, no perĂodo da Segunda Guerra Mundial.
O espaço é procurado por cerca de dois milhões e meio de pessoas por ano. O segredo do sucesso não está só nos livros. É o que assegura a gerente da biblioteca, Anne Tidd: “Nós nos empenhamos em promover encontros com os visitantes e atender as suas recomendações”, assinala. “Temos uma lista de eventos semanais e mensais, além de várias outras atividades que realizamos em live streaming, em conjunto com a British Library.”
Desafio literário
Entre os eventos, que vĂŁo de oficinas de pintura a competições com jogos de tabuleiro, destacam-se as aulas de conversação voltadas para estrangeiros, frequentadas nĂŁo somente por imigrantes mas tambĂ©m por uma equipe de voluntários formada por idosos e professores aposentados. Em novembro, mĂŞs da National Novel Writing Month (a NaNoWriMo — um desafio de escrita anual, realizado em vários paĂses), a biblioteca abre as portas para os escritores residentes na cidade firmarem o compromisso de, em atĂ© 30 dias, escrever o esboço de um romance de no mĂnimo 50 mil palavras.
Marisa Smith, escritora natural dos EUA que mora na Inglaterra há mais de uma dĂ©cada, participa anualmente do desafio. Gerente de uma loja de videogames, Marisa se mudou para Norwich em busca de uma oportunidade no agitado comĂ©rcio da cidade, um cenário de pequenos negĂłcios independentes, com foco no abastecimento local e na sustentabilidade. “Eu vim para trabalhar numa área completamente diferente”, diz ela. “Mas acabei achando um lugar calmo e muito propĂcio para a escrita, que atiçou as chamas da minha criatividade muito mais que qualquer outra cidade grande em que eu morei, como Los Angeles, Roma ou Londres.”
Marisa Ă© uma entre muitas, na longa galeria de escritoras e escritores que beberam da fonte do Wensum, o rio de águas calmas que serpenteia a cidade e Ă© margeado por pĂeres, pubs e charmosos conjuntos habitacionais coloridos. AlĂ©m de ser conhecida como maior sĂtio remanescente da arquitetura tudoriana, terra de um time de futebol recĂ©m-rebaixado da Premier League que tambĂ©m tem um canário como mascote, a capital do condado de Norfolk se notabilizou por ser a terra-natal de Julian de Norwich: uma anacoreta que foi autora do primeiro livro escrito por uma mulher em lĂngua inglesa.
ExcelĂŞncia acadĂŞmica
Em sua história recente, Norwich destacou-se como polo de excelência acadêmica após a fundação da Universidade de East Anglia (UEA), uma instituição privada que criou o primeiro curso de graduação em escrita criativa da Inglaterra. A primeira turma, em 1970, teve como aluno um jovem cujo nome mais tarde viria a se tornar um dos mais relevantes da literatura contemporânea: o britânico Ian McEwan. Naquele mesmo ano, W. G. Sebald se tornaria professor da instituição, onde lecionou até morrer num acidente de carro próximo a Norwich, em 2001, num local que se tornou ponto de peregrinação entre aficionados.
Em 2017, Kazuo Ishiguro, outro ex-aluno da Universidade de East Anglia, ganhava o Nobel de Literatura. A premiação trouxe um segundo pico de matrĂculas na Escola de Literatura, Drama e Escrita Criativa da instituição: o primeiro ocorreu em 1989, logo apĂłs o escritor de origem nipĂ´nica receber o Man Booker Prize pelo romance Os vestĂgios do dia. “Estamos vivendo uma Ă©poca de pânico global com a pandemia, e a maneira como a literatura se desenvolveu por aqui foi quase viral”, compara Andrew Cowan, um dos atuais professores do curso que ajudou a tirar o projeto do papel, há quase meio sĂ©culo. “A escrita criativa estava como que incubada por mais de 30 anos na nossa universidade, e em torno do ano 2000, subitamente, ela pegou e os cursos foram se espalhando pela Inglaterra, em nĂşmeros impressionantes.”
Segundo Cowan, o quadro de alunos da escrita criativa hoje, na UEA, já Ă© proporcionalmente maior ao de estudantes de lĂngua inglesa, área de pesquisa mais tradicional e consolidada academicamente. Evocando novamente a ideia de um “ecossistema literário” na cidade, o professor afirma que a parceria da universidade com instituições como o National Centre for Writing e a Millenium Library tem contribuĂdo para tornar o tĂtulo de “cidade da literatura”, recebido da Unesco há quase dez anos, uma realidade perene.
“NĂłs estamos numa posição privilegiada, que Ă© a de receber alguns dos melhores escritores do mundo em formação”, sublinha Cowan. “Eles chegam aqui e se alimentam uns dos outros, se iluminam mutuamente. As pessoas encaram a escrita muito seriamente e se veem por alguns anos na companhia de outros que tambĂ©m encaram a escrita da mesma forma e ajudam no seu desenvolvimento, e nĂłs professores sĂł temos o papel de seguir adiante com este histĂłrico. Nossa reputação cresce, mais pessoas boas se inscrevem para vir para cá e isso continua, num grande cĂrculo virtuoso.”