O novo romance de Edney Silvestre, Boa noite a todos, não é, de sorte, um romance, mas a junção de três gêneros num único volume: uma novela, um monodrama, um ensaio. Não que o autor se entregue ao experimentalismo de unir de maneira híbrida todos os gêneros. Aqui, o processo é outro. Edney escreveu de fato uma novela que, já neste processo, descobriu ter certo potencial para o teatro, daí nasceu o monólogo. Finalmente, se dedicou a redigir um breve ensaio onde mapeia o curso de sua criação. O resultado é um livro em que, além dos temas caros ao enredo, também se discute as várias possibilidades de narrar uma história. Isso pode até parecer pouco, mas num instante em que cada vez mais o escritor é desmitificado e abandona sua famigerada torre de vidro, a opção de Edney é muito bem-vinda.
Todo o enredo parte da disposição de Maggie, a protagonista, de se jogar do andar mais alto de um hotel de luxo construído exatamente no lugar da antiga casa de seu avô, e onde ela nasceu. É, a rigor, o fechamento de um círculo, que vai da opulência à falência. Para tanto, gasta seus últimos centavos: “Chegou ao hotel em um táxi. Trazia duas malas. Em uma levava os três livros favoritos. Na outra, a roupa para o salto”. É tudo o que lhe resta, além de uma memória esparsa e falha sobre todas as etapas de sua vida glamorosa. Ao rapaz que levou sua pouca bagagem até o quarto dá o último dinheiro de que dispunha.
Maggie se preocupa com o que será feito desses restos. Quer seu corpo cremado, mas aquela parca e pobre herança talvez não interesse nem mesmo sua única parente viva, a sobrinha Antonia, com quem não mantém qualquer relação. Tudo enfim se perdeu. E ela teve uma vida rica e instigante. O pai vinha de uma família de posses e sobrevivia como servidor do Instituto Brasileiro do Café em Londres. Isso dava a Maggie, que se acha parecida com Jacqueline Kennedy Onassis, um passaporte diplomático e a possibilidade de transitar entre Londres, Nova York, Paris e o Rio de Janeiro, de onde leva objetos tropicais e exóticos para vender naquilo que chama de “my beautiful muamba”. Fez três casamentos, mas saiu do último, com um certo PR, sem nada. Ele a trocou pela filha de um construtor, “uma tolinha vinte anos mais jovem, paulistana como ele, vulgar e exibicionista como ele, sem um pingo do meu refinamento e do meu trânsito internacional”.
Em outras palavras, Maggie é uma típica mulher do resquício de glamour que ainda sobrevivia na rota internacional das décadas de 1960 e 1970. Todo aquele universo parecia um reflexo meio baço da pompa projetada por clássicos de Hollywood como Bonequinha de luxo, de Blake Edwards, e Quando o coração floresce, de David Lean, onde Veneza, Paris e Nova York são cidades mais sonhadas que vividas. Os cenários de Edney Silvestre, embora mais reais, trilham as mesmas ruas.
(In)Verossímil
A grande diferença de Boa noite a todos está na estrutura narrativa. Na novela ainda surge um narrador onisciente que reaparece sempre que se faz necessário inserir a protagonista num determinado contexto.
Maggie dá três passos, para, olha em volta. A suíte Marcel Proust é o arremedo de um pequeno salão parisiense do início do século 20, buscando um requinte mais imaginado do que real, atulhado de móveis demasiadamente dourados, poltronas e cadeiras forradas com tecidos inadequadamente mornos, uma grande cama coberta por uma colcha excessivamente cintilante.
Como se vê, este narrador comunga das mesmas saudades de Maggie, saudades de todo um universo do passado que se desfez nas novas leis ditadas pelos novos ricos — segundo a personagem, “chefões de jogo do bicho, pastores evangélicos de igrejas recém-inventadas, delegados enriquecidos com propinas e chantagem, misses viúvas de velhos ricos, escroques internacionais, políticos corruptos”.
Mas Maggie, narradora de toda a peça e da maior parte da novela, é uma depoente infiel. Além de suas idiossincrasias, frustrações, mágoas e rancores, está revestida por imensas falhas de memória. Ou seja, ela mesma não dá certeza de nada.
Ainda vi o corpo de minha mãe sendo levado na maca. O rosto dela, tão pálido. Mais pálido ainda do que sempre era. Acho que vi. Mas não me levaram para o velório nem vi o enterro. Não consigo lembrar o nome de minha mãe. Nunca se falava nela. Nunca se tocava no nome dela.
O recurso usado por Edney Silvestre, de certa forma, estabelece determinado senso de perdão para Maggie. Como não perdoar uma pessoa em plena falência pessoal? E esta falhou em tudo. Não conviveu com a mãe, não teve o carinho do pai, desfez três casamentos, traiu a meia-irmã, foi esquecida pela sobrinha. Só lhe resta o suicídio. Seu mundo é irreal e também fútil, além de insustentável.
Com uma linguagem quase rasteira, extremamente oral, a personagem se oferece como o fim de uma época. E por tudo isso nasce como uma personalidade complexa, capaz mesmo de encantar o público de teatro. Como ser literário, falta-lhe uma porção mais generosa de profundidade psicológica. Ela passa por tudo e por todos sem qualquer remorso ou culpa. A decisão pelo suicídio se dá como uma espécie de tributo ao mundo que se diluiu de maneira definitiva.
No entanto, a opção por retratar Maggie como alguém tão superficial talvez tenha sido uma decisão acertada do autor. Ele confessa no ensaio que conheceu bem este ambiente:
Quando a personagem surgiu, há cinco anos, seu fim já estava traçado. Tal como se passa na peça e na novela. Tal como se deu na vida real. Porque Maggie, como tantos personagens de textos meus, é inspirada em gente que existiu e com quem convivi. O que alterei, e alterei muito, foram traços íntimos, capazes de tornar Maggie mais uma criatura de ficção do que um arremedo de alguém que existiu.
Assim, fica a lição: a um ficcionista nem sempre é dada a possibilidade de reverter aquilo que Umberto Eco classificou como irrealidade do cotidiano. A vida de Maggie é verossímil, sim, mas bem que poderia tê-la afetado de maneira mais contundente.