A extravagância do morto

Théo sempre cultivou uma arrebatada paixão pelos livros
Paulo Roberto Pires por Ramon Muniz
01/10/2011

Théo sempre cultivou uma arrebatada paixão pelos livros. Viveu e estudou em Paris que, para quem “acreditava que a literatura falava francês mesmo quando brasileira”, seria o mais literário de todos os lugares. De volta ao Brasil, a Cidade Luz tornou-se o destino preferido de suas muitas viagens ao Velho Mundo: nada menos do que 37 ao longo da vida. Théo foi autor de um único livro, que teve boa acolhida mas não chegou a se tornar um sucesso editorial. Depois dele, para sua total frustração, não conseguiu escrever mais nada, apenas resenhas de obras alheias em publicações especializadas. Antes de morrer de forma precoce, tomou providências para que fossem conhecidos seus “desejos póstumos”, como ele chamou, alguns bastante inusitados e dois particularmente caprichosos: Sofia, misto de ex-namorada e melhor amiga, encontrou quase que por acaso uma carta com instruções para que entregasse toda a “obra inacabada” do morto a Enrique Vila-Matas. Na idéia de Théo, o escritor catalão seria o único no mundo capaz de dar um destino digno àquele conjunto de anotações, cartas e esboços sem um mínimo de coerência e, portanto, longe ainda de exibir qualquer valor literário. Antes disso, Sofia deveria fazer uma viagem a Paris e espalhar suas cinzas em sete locais cuidadosamente escolhidos por ele.

Haja lealdade capaz de resistir a tanta extravagância e presunção. Mesmo assim, Sofia aceita bravamente fazer o que Théo lhe pede do além-túmulo. A viagem a Paris acontece tal como ele havia planejado, com trilha sonora gravada em iPod e tudo. Por uma feliz coincidência, Vila-Matas é um dos convidados da Festa Literária Internacional de Paraty — a Flip — daquele ano, o que poupa Sofia de uma segunda viagem à Europa, essa para ir ao encontro do escritor em Barcelona, onde ele vive. Em Paraty, aonde ela vai para se desincumbir da última e esdrúxula missão, acontece também o desfecho de Se um de nós dois morrer, mais recente romance do carioca Paulo Roberto Pires, que traz uma precisa epígrafe creditada a Freud: “Se um de nós dois morrer, me mudo para Paris”.

Obras de ficção que se ocupam da própria literatura existem às pencas, e o próprio Vila-Matas, cuja referência não é gratuita, se notabilizou justamente por explorar a fundo esse tema. O exercício da metaficção — uma solução cuja excessiva recorrência vem pouco a pouco dilapidando sua originalidade — tem para o artista um inegável apelo: ele conhece como ninguém as agruras de seu ofício e, muito especialmente, aqueles momentos sofridos e bastante comuns em que a criatividade some pelo ralo, deixando-o travado, sem ter o que dizer e sem saber para onde ir. (Atire o primeiro livro quem ainda não tenha vivido a experiência.) E falar sobre algo que se domina é sempre mais fácil do que encarar o desconhecido. Nesse aspecto, Pires tem uma visão duplamente privilegiada por conta de sua atividade como editor: além da própria angústia, ele testemunha cotidianamente a de outros colegas. Se conhecimento de causa é o que não lhe falta, isso tampouco bastaria para salvar seu romance da banalidade. Aqui entram em cena três virtudes redentoras: a inventividade da trama, a solidez do protagonista e a qualidade do texto.

Riqueza de possibilidades
O resumo apresentado no início desta resenha, cujo título repete o de um famoso romance policial da inglesa Agatha Christie onde o próprio morto deixa pistas que levarão o detetive Poirot ao assassino, mostra a riqueza de possibilidades que o entrecho proporciona. Tudo se acomoda em torno das vontades de Théo, que se manifesta a toda hora através das cartas deixadas e do conteúdo do material destinado a Vila-Matas, também transcrito no livro e que ocupa mais da metade de suas magras 120 páginas. Dessa forma, aquele que desde o começo se sabe estar morto aparenta, no decorrer da história, estar de fato bem vivo e operante. Por outro lado, a engenhosidade do argumento torna dispensável qualquer mirabolância nas ações: ela por si só consegue prender o leitor. A tensão decai de forma significativa ao longo de algumas reflexões aborrecidas e pouco originais sobre o ato de escrever, bem como em alguns dos outros esboços para futuros ensaios, igualmente desinteressantes, o que faz pensar que Théo tenha prestado um grande serviço à literatura ao desistir de levar adiante tais projetos.

Outro mérito da obra é a ótima construção do protagonista. Ao dar voz a Théo, através de suas cartas, o autor possibilita que o próprio personagem se apresente, uma opção que funciona às mil maravilhas quando um tem o outro bem desenhado na cabeça. Noutras palavras, o êxito se deve menos à forma escolhida do que ao trabalho de criação pelo autor. O que mais chama a atenção, contudo, é um tipo tão pernóstico quanto Théo conseguir driblar a antipatia que inevitavelmente provoca no leitor e fazer com que ele torça para que seus estapafúrdios desejos póstumos sejam plenamente atendidos. Isso ocorre porque o egocentrismo do personagem é tão exacerbado que acaba por torná-lo hilário e, dessa forma, menos repulsivo. Um bom exemplo está na revelação de que Théo participou de um hipotético grupo de ajuda a dependentes do vício de escrever em crise de criatividade.

A terceira grande virtude de Se um de nós dois morrer, e talvez a maior, decorre do total domínio que Pires demonstra ter sobre a linguagem. Há um narrador neutro que abre e fecha o romance e está focado em Sofia; um outro que corresponde à voz de Théo em suas cartas; e ainda um terceiro, bastante sutil, que surge da voz autoral do protagonista nos esboços e anotações que ele deixou. Este último, que conduz a parte mais substancial do romance, emula adequadamente aquele estilo que fica a meio caminho entre o ensaio e a ficção do qual o argentino Jorge Luis Borges é o mestre absoluto e Vila-Matas, um aplicado discípulo. Pires vai pelo mesmo caminho e consegue a proeza de dar unidade a três instâncias narrativas bem diferentes entre si repetindo em todas elas uma prosa contemporânea, elegante, simples e muito direta. Mesmo nas cartas, quando o tom se torna inevitavelmente mais coloquial, o autor consegue manter elevado o nível do discurso, sem contudo cair na afetação. Não é um jogo fácil, mas o resultado compensa o esforço e faz de Se um de nós dois morrer uma obra exemplarmente bem escrita, numa época em que essa qualidade primordial da literatura parecer ter se tornado um item secundário a um bom número de escritores.

Preocupação excessiva
Por outro lado, a meticulosidade bem dosada com que Pires trabalha seu texto se converte, no projeto editorial, numa preocupação excessiva com a forma. Eis aí um pormenor facilmente percebido, mas difícil de ser corretamente justificado. A edição é caprichada, em papel de boa gramatura, livre de problemas de revisão e ostentando o alto padrão característico da Alfaguara. O volume é ilustrado com fotos antigas da cena parisiense que lembram as dos livros de estudo da língua francesa do método La France en Direct. (Se o ar anacrônico foi proposital, certamente não o é a nostalgia que ele provoca em quem cursou o ginásio nos anos 70.) São utilizadas também várias formatações diferentes de texto, inclusive com mudança de cor, decorrentes da diversidade do material apresentado, que se desdobra em cartas, anotações, diários, listas, etc. Ocorre que o texto propriamente dito é pouco diante de tantos elementos extra-textuais, e o resultado é uma supervalorização desnecessária daquilo que não é o mais importante na obra.

Além de Vila-Matas, há referências na trama a outros personagens reais, notadamente os autores que teriam participado da Flip daquele ano, como Arnaldo Jabor, Gonçalo M. Tavares, MV Bill, dentre outros, e a Silviano Santiago, que teria se antecipado a nosso triste herói ao escrever um livro a partir de uma idéia que este pretendia desenvolver. A solução gera um certo estranhamento, pois o enredo é demais fantasioso — embora ninguém duvide que a vida real produza inverossimilhanças de causar inveja à ficção —, funcionando como um choque de realidade no meio de um exercício lúdico, o que combina com a concepção do romance. Já a relação de Théo com seu editor, que atende pelo sugestivo apelido de PrP (as iniciais do autor? um alter ego?), vai além do verossímil e cai no lugar-comum: PrP é um empresário execrável que visa tão-somente ao lucro, mas que bajula e posa de amigo de seus editados, com o objetivo único e interesseiro de mantê-los sob controle com o mínimo de custo. (Atire aqui um segundo livro quem ainda não viu esse filme.) O curioso da situação é que Pires, sendo também editor, tenha optado por um estereótipo ao invés de abordar a questão pelo ponto de vista antagônico, esse bem menos previsível.

Mas o que de fato importa é que Se um de nós dois morrer apresenta muito mais virtudes do que eventuais (e sempre discutíveis) tropeços, e tem tudo para agradar a vários públicos. Ao fim e ao cabo, na variedade está mesmo sua maior riqueza.

LEIA ENTREVISTA COM PAULO ROBERTO PIRES.

Se um de nós dois morrer
Paulo Roberto Pires
Alfaguara
120 págs.
Paulo Roberto Pires
Nasceu no Rio de Janeiro em 1967. Professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é jornalista e editor. Autor do romance Do amor ausente (2000) e da biografia Hélio Pellegrino: a paixão indignada (1998), é crítico da revista Bravo! e editor da serrote, revista de ensaios do Instituto Moreira Salles.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

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