A esperança vem de Minas

É na simplicidade de Iacyr Anderson Freitas que reside certa esperança. Apesar dos equívocos
Iacyr sempre procura uma metáfora alguns pontos acima da banalidade
01/02/2004

Em janeiro estive em Juiz de Fora para uma deliciosa viagem a esta cidade que tantas vezes povoou minha imaginação, principalmente quando li as memórias de Pedro Nava. Aproveitei para conhecer alguns artistas locais, entre eles o poeta e agora contista Iacyr Anderson Freitas, autor de Trinca dos traídos, livro que comentarei neste texto. Apesar da sinuosidade da serra de Petrópolis e do temporal que me fez ter delírios de morte em cada curva do retorno ao Rio de Janeiro, posso dizer que a viagem foi mais do que proveitosa. Serviu para eu comer um indescritível feijão tropeiro e, de quebra, para renovar a sempre moribunda esperança no nosso círculo literário, pobre como ele só. Talvez a salvação, ou o início dela, esteja em Juiz de Fora.

Pois foi neste clima interiorano, de morros e casarões de famílias com potência de ter em seus quadros um presidente ou ministro sempre que encontrei Iacyr Anderson de Freitas, do qual jamais ouvira falar, apesar de ele já ter sido comentado antes neste Rascunho, como poeta — e dos bons. Percebi, na minha ignorância, que vivo numa redoma para a poesia contemporânea. Uma redoma que é menos de ojeriza e mais de medo. Não vou dizer que me arrependo ou que eu devo abrir minha cabeça para tudo o que está sendo produzido no Brasil. Já disse uma vez e não me canso de repetir que a vida é curta e não vale o trabalho de garimpar poetas novos quando se tem uma infinidade de poetas clássicos a serem descobertos ainda. Deixo para os amigos o trabalho de garimpo, que um dia já fiz com gosto.

Não é sem um tiquinho de culpa que escrevo isso. Afinal, são vários os livros de poesia que já pousaram na minha caixa-postal e que, uma vez recolhidos à proteção do lar, acabaram num canto da biblioteca, no limbo daqueles livros que jamais serão lidos, por puro descaso daquele que o recebeu. Não é maldade, não. É simplesmente tédio. Neste sentido, acho que sou como um destes demagogos que dizem que é possível, sim, encontrar um novo Machado de Assis num morro carioca, mas que não o procuram e, pior, quando o encontram tratam logo de transformá-lo num Ferrez da vida. Arght.

Caso Iacyr me mandasse pelo correio um de seus livros de poesia ou até mesmo este Trinca de traídos, ele não seria lido. Confesso envergonhado: ele não seria lido. A menos que (i) viesse com recomendação expressa de um amigo meu ou (ii) por sorte, eu abrisse o livro e lesse apenas o primeiro parágrafo.

Neste caso, salvou-me o amigo Rogério Pereira. Foi dele a recomendação para que eu lesse os poemas de Iacyr. Não me arrependi: Iacyr é um poeta e tanto. Talvez precise de um cuidado maior aqui e ali na hora de lançar seus livros. Alguns poemas me pareceram cheios de potencial, mas prematuros, ansiosos para figurarem no papel. Isso não é defeito, veja bem, e é algo que se aprende. Eu mesmo estou aprendendo a ler duas vezes a palavra antes de colocá-la no papel, para que a acidez seja ainda mais ácida — quando houver —, mas nunca exata. Aliás, sinto muito em informar aos poetas que procuram a palavra exata para o verso exato do poema exato que nada disso existe.

Só existe genialidade (ou simplesmente inteligência) naquilo que pode ser questionável.

Fujo do assunto, porém. Rogério Pereira me indicou o livro, mas quando cheguei a Juiz de Fora ainda não o tinha lido. Quando conheci, então, Iacyr Anderson de Freitas, digo, a figura de Iacyr Anderson de Freitas, tremi. Teria meu amigo ficado louco? Aquele homem não poderia escrever um bom poema. Não poderia.

Convém avisar neste ponto do texto que o trecho a seguir contém altas doses de imprecisão semântica. O leitor menos experiente vai pensar que é insulto, prevejo. Até o autor vai pensar que é insulto. Mas não é. Estou dizendo que não é. Ouviu? Não é.

Pois eu jamais pensaria que Iacyr é um bom poeta. Simplesmente porque a figura dele não combina com aquilo que se espera de um poeta. Em sua calça de preguinha e sua camisa xadrez de mangas curtas, Iacyr poderia ser confundido com um simples pai de família dono de uma cachorra boxer das mais mal-humoradas, mas nunca com um poeta. Parece ser tão-somente um homem, destes que se levantam cedo no domingo pela manhã para lavar o carro, almoçam, tiram uma soneca roncando alto, ligam para os amigos os convidando para o futebol de logo mais à noite e chegam fedendo a cerveja mais tarde, para um sono que os preparará para a semana seguinte no funcionalismo público.

Preconceito, você diz. E eu rio de sua cara, pela sua manobra. É claro que é preconceito! E como escondê-lo? Vivo num País em que os poetas são todos homenzinhos empolados, talvez vestidos com a última moda da São Paulo Fashion Week. Poetas que vivem chapados pela noite adentro, que promovem orgias com o intuito de criar uma obra coletiva concreta. Poetas que vivem em centros acadêmicos escrevendo teses que ninguém vai ler sobre outros poetas e caçando estudantes bonitinhas para ensinar a boa arte de Boccage. E assim por diante.

Iacyr é um homem. Pai de família. Homem simples que vive numa casa simples, construída com a renda de um trabalho simples. Veste-se com simplicidade e não tem vergonha de mostrar os filhos para as visitas. Sua casa é cheia de livros, mas ele não restringe sua conversa a eles. Parece entender muito de Dostoievski, mas não mencionou o nome do russo uma só vez. Fez piadas.

Talvez seja isso o que diferencie um grande poeta de um poeta apenas medíocre: a capacidade de fazer rir. Não só na poesia, como também no convívio com os seus. A boa poesia é na verdade uma gostosa gargalhada.

Sendo claro, para não me perder ainda mais na inteligência duvidosa do leitor: Iacyr é minha esperança porque é… comum. É como se a literatura, velha e boa companheira, retornasse à rua. Não. À rua, não. Mas para a pequenez da casa, qualquer casa onde resida um bom ouvido poético e uma alma afinada com aquilo que o homem tem de mais elevado.

E o Trinca dos traídos?, você me pergunta. Calma, apressadinho. Começo a falar sobre ele agora.

Agora: Trinca dos traídos é a primeira incursão de Iacyr na prosa. Não sei, realmente, por que ele se aventurou no gênero conto, uma tarefa nada simples. Fico aqui especulando que talvez seja por pressão do editor, mas não acredito. Os livros de Iacyr, bem como de toda a turma juiz-forense, são publicados em co-edição pela Funalfa e a editora Nankim. Não há riscos muito grandes envolvidos na história. Seria então por pressão familiar, para que os afastados tios pudessem saborear a arte do sobrinho sem para isso terem de descer aos subterrâneos da poesia? A hipótese, apesar de absurda, é boa. Descarto-a, porém, para ficar com a mais plausível: porque quis. Mas não é de só querência que vive a boa prosa.

O grande problema de Trinca dos traídos é certa dúvida, patente no autor, entre o que é um conto e o que é uma crônica. E aqui entramos, bem sei, em terreno perigoso. Mas os discípulos do Mário que se aquietem, por favor. Não vou jogar pedras no ídolo de vocês, não por ora. Se bem que me parece que grande parte do equívoco que rege este Trinca dos traídos advém justamente da falsa lei de Mario (aquele), segundo a qual “um conto é aquilo que o autor chama de conto”. A crônica, vocês devem saber, andaria no mesmo caminho e seria tudo aquilo que o autor chama de crônica. Humpf.

Novamente, não me entendam mal, suas víboras! Trinca dos traídos não é um livro ruim e merece ser lido. Parece-me apenas equivocado em sua composição. É um livro de contos com algumas crônicas misturadas. Algumas crônicas que, se me permitem a petulância (me permitam, sim?), não deveriam estar lá. Só isso. Nada que um pouco de autocrítica não cure.

A melhor parte do livro é o Oito de copas. É que Trinca dos traídos se divide em Oito de copas, Oito de ouros e Oito de espadas. A mim me parece que a referência ao baralho é daquele falso hermetismo que às vezes agrada aos escritores. Mas tudo bem. Relevemos. O primeiro conto desta primeira trinca é o irrepreensível No dorso dos domingos. Sinceramente, eu compraria o livro apenas por este conto. E sugiro que vocês façam o mesmo. No dorso dos domingos é um primor de conto. Algo maduro. Usando um vocabulário a mim pessoalmente caro, diria que o conto emana algo de Dostoievski, algo que não é apenas uma referência ou influência.

O personagem do conto, um homem que, quando criança, testemunhou o adultério da mãe com o próprio tio, é estruturado com a fina emoção que apenas um contista que jamais deixará de ser um bom poeta é capaz de compor. Não há no conto vestígio algum de violência. E até mesmo a mágoa e o ressentimento parecem surgir do alto, de algo que é admirável, numa incrível subversão de valores para o leitor. Em seu orgulho, o personagem é de uma honra descomunal.

É neste conto que Iacyr se supera. Ele sempre procura uma metáfora alguns pontos acima da banalidade. Por meio de uma manobra lexical, o contista consegue o que parece ser impossível: transforma a descrição de um suicídio em algo leve e até certo ponto admirável, por sua estética. Assim, a mais antiestética das mortes parece passar por um filtro:

“(…) a cabeça decotada pela bala do velho revólver.” (p.13)

Os contos seguintes, Tornar-se um andarilho e Apenas voltar não quebram o ritmo do livro. São de uma sensibilidade que castiga o leitor da primeira à última linha. Dono de imagens perfeitas, de alguém que parece conhecer os meandros da prosa e principalmente as curvas do lugar-comum nas quais derrapa a maioria dos que enveredam pelo gênero, Iacyr constrói personagens inadequados para suas vidas. Nada que não se leia com freqüência na prosa miserável dos neocamusianos (sic). A diferença está na chama, na centelha que guia os personagens e os torna vivos homens em busca de uma solução para suas vidas. Ah, como é bom ler personagens que não ficam apenas vendo barquinhos e fazendo considerações grotescas sobre a vida.

Implicância minha.
O fel dos fatos, apesar da estrutura falsamente ambígua e dialética, é outro dos pontos altos do livro. Trata-se de uma simples história de traição. À qual Iacyr dá contornos, vá lá, operísticos. No exagero, por mais paradoxal que isso possa parecer, o autor encontra o tom perfeito para o drama. Não há lugar para a pieguice, e sim para o genuíno desespero.

“Há escuridões não medidas, que calam fundo na alma da gente e jamais atingem os ocres do rosto.” (pp. 26)

E daí…

Bem, e daí vem o restante do livro. É exatamente a partir do conto que dá título à coletânea que o livro cai. Cai lenta e inexoravelmente naquilo que poderia ser evitado. Não que os textos devessem ser evitados. Nada disso. Mas levá-los a público agora foi definitivamente um erro. Porque são idéias paridas prematuramente, frases que uma leitura adicional sem dúvida melhoraria, dispensáveis parágrafos conclusivos. Contos como Holocausto, O sacrifício, Eis o tamanho de minha orfandade, A grande missão e Sina ficam devendo ao leitor. Para mim, Iacyr os escreveu correndo, na ânsia de completar um livro que fechasse a trinca falsamente hermética das cartas do baralho. Vocês precisam ver minha cara de decepção ao final de cada um deles. Decepção, eis a palavra. Tadinho de mim.

Como disse anteriormente, também há uma grave confusão no livro, a respeito daquilo que deve figurar como crônica e como conto. Muitos textos ali não têm fôlego para ser um conto. São, quando muito, um “retrato do cotidiano”, levemente poético, sensível, por certo, mas nada que vá além do dia em que foi escrito, nada que deva sobreviver muito ao embrulho do peixe derradeiro que é a finalidade de todo texto de jornal (inclusive este). Culpa de Iacyr, claro, porque o autor é sempre o culpado. Mas culpa também de um certo Mário, que botou na cabeça desta gente que o autor é soberano para decidir o que é e o que não é um conto. Vamos combinar que da próxima vez o leitor decide, sim? Se bem que o nível dos leitores não anda ajudando muito no julgamento do material bruto de ninguém. Então eu acabo dizendo. Eu. Tudo eu.

Trinca dos traídos
Iacyr Anderson Freitas
Nankin/Funalfa
127 págs.
Paulo Polzonoff Jr.
Rascunho