Pode-se afirmar que as 44 narrativas curtas que compõem o livro de Simone Magno, A lua depois do gravador, são um instrumento para se especular sobre o sentimento e, muito particularmente, o sentimento amoroso. Estruturado no interior de um dos códigos atuais de comunicação, a escrita se insinua como posts de um blog feminino e à semelhança de almanaques dirigidos a mulheres. Contudo, a construção estrutural do livro se distingue das modalidades midiáticas de largo alcance e, assim, a narrativa renuncia à abordagem de assuntos sobre moda e cosméticos — próprios desses veículos — e abraça uma finalidade específica: anotar, de modo simpático e sem afetação, considerações leves acerca de fatos corriqueiros do cotidiano, sempre em torno dos encontros e desencontros amorosos e suas conseqüências existenciais. Sublinhe-se, antes de mais nada, que não há na obra pretensões reflexivas, apenas uma apreciação geral do tema. Aproximando-se de um público específico, o movimento da escrita cativa a jovem leitora pela despretensiosa linguagem e pelo tom ameno. A proposta da obra, assim, não se lança à desconstrução do signo literário. Ao contrário: deseja apenas usufruir o direito de escrever e de construir seu público, sem prévia ostentação de credenciais estética ou ideológica.
É preciso possuir tais referentes (uma escrita para revista feminina) para não exigir do livro mais do que ele se propõe a formular. Explico-me. Na epígrafe, a simples menção à autora Clarice Lispector assinala um efeito sobre a leitura: demarca um sinal de cultura e identifica-se com a imagem de uma escrita feminina e de um perfil de autor similar ao da enigmática escritora. Definindo epígrafe como o anúncio do padrão do texto e a proposição da rede de referências deste, o efeito perverso dele reside na possibilidade de gerar a expectativa de uma obra mais reflexiva, por assim dizer. Somos acostumados a pensar em Clarice Lispector pela imagem de um estilo denso e intimista e a referência movimenta expectativas similares no leitor, que aguarda uma produção com maior complexidade e amadurecimento no trato da temática amorosa. Não é exatamente isso que ocorre ali. A narrativa se tece em flashes que captam brandamente o discurso amoroso, sem o problematizar. Por outro lado, é forçoso assinalar o quanto a exploração deste discurso no trabalho de Simone Magno está em harmonia com a técnica de escrita delineada, também ela, em flashes.
Há duas linhas melódicas no enredo, ambas intrinsecamente relacionadas. A primeira se projeta para o encontro (bem como o seu duplo, o desencontro) entre “você” e “ele”; a segunda se interessa por traçar o caminho de introspecção de “você”, personagem central. Assim, o conto de abertura, Encontros mágicos, percorre a fugacidade dos enlaces e registra a questão central de todo o livro: a valorização da idéia de um amor verdadeiro. Afirmando a busca pelo complemento, “você” manifesta-se sempre à espera de que “ele” venha e fique, expectativa propensa à decepção, como no fechamento do conto Construção: “Ele te deixou na praça ele te deixou”. Modelada à Hollywood, a obra persegue a mística do arrebatamento amoroso, com base na crença segundo a qual uma “atração súbita e avassaladora” possa ocorrer a qualquer instante. De volta ao primeiro dos contos, a cena apresenta em detalhe esse ideário: “Ele te azarou no lobby do hotel (…). O que teria sido um encontro formal de negócios virou mais um encontro mágico em sua vida”.
Incômodo
Encontrar o amor é de importância capital no desenvolvimento do livro e na própria estrutura discursiva. Decorre daí o incômodo causado no leitor adulto pela superficialidade do trato com o assunto. Isto porque escrever obra literária é produzir, de modo inventivo e criativo, modelos experimentados na escrita e na vida. É possível, como apontei, reconhecer na abertura do livro uma concepção de amor hollywoodiana. Esta noção, por sua vez, se pauta pelo princípio do erotismo romântico, confeccionado por amplas referências, inclusive a shakespeariana e a dos trovadores. A força ideológica do amor romântico se insinua tanto na modulação quanto na expectativa do sentimento afetivo em jogo, de tal forma que até o cenário, palco das ações, reproduza a sensação de encantamento:
Vocês se beijaram muito na praia, ele lambeu seus pés cheios de areia, vocês foram tomar café da manhã num hotel chiquérrimo, descalços e com roupas de véspera, vocês comeram muito e riram muito. Por um segundo se olharam e entenderam, foi ali o começo de tudo.
O espaço erótico é cinematográfico e projeta a idealização de felicidade plena, remarcada por certos índices materiais propícios a caracterizarem a qualidade dos prazeres, a natureza das sensações e a autenticidade amorosa do encontro. Tal perspectiva se repetirá em Sonho da praia, cujo cenário paradisíaco (“uma praia no sul da França”) retoma os clichês já desenhados outrora por Sidney Sheldon, autor de best-sellers, como se sabe. A idealização de um amor absoluto se identifica do mesmo modo no segundo conto, Verdades, no qual a sentimentalidade é assumida como energia diretora. “Você está de frente para o espelho”, “Você se surpreende com muitas coisas”. Trata-se da referida segunda linha do enredo: a composição intimista. O narrador não se distancia do “você”, sobre quem narra e cujas inquietações acompanha, exprimindo-as pela busca da identidade, a qual se subordina ao tema principal, isto é, a complementaridade do ser em relação ao outro, viabilizado pelo amor. Desse prisma, constituir-se como sujeito feminino é mostrar-se dependente e passivo, parâmetro identificado notadamente em Ele com ela, Invasão de privacidade e Paixão platônica, dentre outros. Ao contrário do que se supõe pelos acontecimentos vividos, o sistema de ações e suas repercussões no pensamento de “você” delineiam o perfil de quem espera, expõem o desejo por “ser escolhida”, ainda que pela sorte, repassando a brincadeira infantil do bem-me-quer-mal-me-quer.
Do ângulo da tessitura de uma narrativa pontuada por anotações, o livro organiza-se, intercalando o intimismo e a busca pelo outro. Ou, melhor dizendo, o tom do livro é construir o perfil de mulher contemporânea, dividida entre o sucesso e a necessidade premente de viver o amor, incluindo sua versão incondicional, a maternidade. Anula-se, com isso, a particularidade do ser amado, exceção feita ao bad boy Sandro, morto abruptamente. O que se ama é a imagem do amor, a abstração da ideia amorosa. O ser amado é secundário. Aí está o miolo do trabalho de Simone Magno: de estrutura enxuta e linguagem acessível, a sua narrativa persegue a felicidade como quimera e acentua a vocação para amar. Nele, insinua-se como base o “amor cristão”, o “dom supremo”, revisitado desde Camões em seus sonetos e até por Renato Russo, que transformou em música o trecho bíblico de I Coríntios 13. De antemão, isto em si não é propriamente bom ou ruim. O problema se coloca no livro em questão pela aparente ausência de percepção crítica do móvel das idéias e pelo não enfrentamento do tema, restringindo-se aos clichês repassados pela cultura de massa. O tema amoroso é complexo porque simultaneamente estético, social e existencial. Reconhecer-se nessa encruzilhada e encará-la talvez permita um maior alcance e reflexão por parte da autora. De um lado, o ponto forte da obra reside na concepção de escrita pautada pela velocidade dos tempos modernos e de existência pontuada pela fragilidade dos laços humanos. De outro, o mito do amor romântico e todo seu tratamento estético, erótico e ideológico exigem maior densidade ou se fragilizam como acabamento artístico e filosófico. Em épocas pasteurizadas como a nossa, a sugestão para Simone Magno é expandir os limites ensaiados, mergulhando na complexidade da sua proposta, mas conservando a sensibilidade predominante da sua narrativa.
3 Perguntas – Simone Magno
• Por que iniciar a carreira literária com um livro de contos?
Não é bem um início, lancei um livro de poesia, Avelã pirata, em 1988 — que, aliás, acaba de ser relançado, em formato digital, pela KindleBookBr. Embora tenha passado um bom tempo sem publicar, nunca deixei de escrever. Os contos de A lua depois do gravador têm a ver com a minha poesia, a linguagem traz elementos em comum, a própria forma curta da narrativa, com pontuação livre, comprova isso. O livro traz histórias que venho escrevendo há alguns anos. Fiz uma seleção privilegiando aqueles episódios que abordam o amor de todas as formas, amor entre homem e mulher, entre mãe e filha, filha e pai, irmãos, amigos, mulher e mulher, homem e homem, enfim, o amor em sua plenitude, com as delícias e os dissabores. E não nego: tem muito de autobiográfico em boa parte deles.
• Como foi o seu primeiro contato com a literatura? E o que ela representa atualmente em sua vida?
Desde os cinco anos de idade, nunca me vi longe dos livros. Uma das minhas lembranças mais fortes foi na primeira série (hoje, segundo ano do Ensino Fundamental). Estudava em escola pública, e a professora me deu um livro de presente no fim do ano por ser a melhor aluna da turma. Aquilo foi o máximo, me deu uma dimensão da importância do livro, foi mesmo um troféu. E uma vez uma redação minha, já na adolescência, foi parar em uma prova de português. Era um conto tão hermético que nem eu mesma sabia interpretá-lo… Eu sempre quis escrever, sempre quis ser escritora, mas não pensava em ter um contato com a literatura tão de perto, como faço na coluna diária sobre livros que mantenho na rádio CBN. É um privilégio e um prazer em dobro.
• O que você espera alcançar com sua escrita?
Busco, ao menos, viver grandes sensações, mas ainda acredito que a literatura possa mudar o mundo. Escrever me dá mais segurança. É assim que tiro forças e ainda tenho a oportunidade de acertar contas com a minha história. Nem sempre é fácil, mas vale a pena. Atualmente tenho um livro infantil pronto e outro em finalização, e começo a rascunhar um romance. Vamos ver onde isso vai dar. Tenho muitas idéias, o problema é querer tudo ao mesmo tempo agora.