A escritura como tatuagem

“Arte de descomponer un ordre y componer un desor-dre” (Severo Sarduy)
01/01/2002

A escritura como tatuagem: inscrever sentenças na página, adereços rituais de cerimônia mágica. Sentir a carnadura das palavras, em gozo bacante; ceder a seus jogos, permutações de cores e linhas como a pele do tigre ou a loucura de um deus. Espaço entre som e luz, sentido e mistério, o barroco faz da arquitetura verbal uma forma de delírio visionário. Não por acaso, fala-se em poética do êxtase e utopia do estético. Conforme J. Rousset, essa arte inquieta se alimenta de “um gérmen de hostilidade contra a obra acabada, inimigo de qualquer forma estável; ela é impelida por seu próprio demônio a se superar sempre e a desfazer sua forma no exato momento em que a inventa, para se alçar em direção a outra forma”. A saturação de signos, na prosódia barroca, opera a ruptura com os próprios limites do compreensível; esse tumulto intencional, dentro da função poética, produz verdadeiros labirintos verbais, jardins de espelhos deformados. Tempo, espaço e movimento são anulados, dissolvidos, e a noção do eu perde-se no mar das palavras, numa espécie de desprendimento, aniquilação ou mergulho no infinito. O desejo do excessivo, do ilimitado, pecado luciferino, motivou a inquisição da crítica contra esse “artesanato furioso” (Marino), condenado à exclusão e ao exílio. Somente no século 20, graças aos esforços de poetas como García Lorca o barroco recuperou o seu lugar de honra, após séculos de silêncio ou maledicência. A cólera da crítica contra essa arte de ruídos e rutilâncias teve um forte motivo: foi o primeiro ensaio de uma linguagem poética absoluta, retomado depois no simbolismo. Todos os traços do barroco apresentados até aqui o afastam nitidamente da tradição clássica e de seu avatar, o realismo, ainda presente no romance e no cinema. Tarefa mais árdua é compreender sua relação com a modernidade. A poesia, no século 20, aproximou-se dos processos fabris, elegendo o “moderno” como paradigma, em oposição ao “belo”. Buscou a síntese, a palavra exata, incorporando a visão mecanicista de mundo projetada por Smith e Marx contra o lirismo e a metafísica. A afirmação da poesia como arte industrial está presente em Maiakovski, Apollinaire, Oswald de Andrade, Augusto de Campos. No Admirável Mundo Novo da máquina e da técnica, porém, problemas como a Guerra, a Fome, a Doença e a Morte continuam a infligir dor; a reação inevitável seria questionar a idéia de progresso, em sua essência ideológica e em suas representações. O neobarroco, com certeza, é uma resposta à modernidade.

O termo surgiu pela primeira vez em artigo de Severo Sarduy, publicado em 1972, quase meio século após a célebre conferência de Lorca, ponto de partida para a revalorização de Góngora. O neobarroco não é uma escola, não possui princípios normativos como o verso livre ou as palavras em liberdade. Para Eduardo Glissant, é “uma maneira de viver a unidade-diversidade do mundo”; Néstor Perlongher o define como “um estado de espírito coletivo que marca o clima, caracteriza uma época”. O neobarroco não é uma vanguarda; não se preocupa em ser novidade. Ele se apropria de fórmulas anteriores, remodelando-as, como argila, para compor o seu discurso; dá um novo sentido a estruturas consolidadas, como o soneto, a novela, o romance, perturbando-as. O ponto de contato entre o neobarroco e a vanguarda está na busca de vastos oceanos de linguagem pura, polifonia de vocábulos. No lugar da mímesis aristotélica, do registro preciso, fotográfico da paisagem exterior, esta é recriada e retalhada como objeto de linguagem, numa reinvenção da natureza mediante o olhar. Assim, no poema Estação da Fábula, Eduardo Milán nos diz: “aí se afogam as palavras / brancas / vermelhas / em branco: como morada / água / tintas movendo / (peixes) / focos: / fronte e lâmpada / luz de- / movendo-se peixes / (tintas)”. Esta fracionada fanopéia, que evidencia o caráter construído da paisagem-escritura, está presente também em peças de lírica imprevista e ácida delicadeza, como Água de Bordas Lúbricas, de Coral Bracho: “Água de medusas, água láctea, sinuosa, / água de bordas lúbricas; espessura vidrificante — Deliqüescência / entre contornos deleitosos. Água — água suntuosa / de involução, de languidez”. Nesta rebelião de vocábulos, ou conjuração sussurrada, a sintaxe não é abolida, mas antes refundada nos parâmetros de uma lógica particular e secreta, que ordena som e sentido; ela cumpre uma função estrutural na organização do poema, seguindo as veleidades de uma gramática onírica. José Kozer, por exemplo, desarticula o discurso linear com o uso da elipse, dos parêntesis, travessões, anáforas, resultando em belos e singulares objetos textuais. Sua pesquisa verbal, minuciosa, surpreende pela somatória de termos da antiga literatura castelhana, do repertório místico, de afluentes coloquiais e regionais, ampliando o idioma espanhol numa língua mesclada, mestiça. O jogo de amarelinha com as palavras, racional e lúdico, sensual e conceitual, que caracteriza essa estranha confraria vai em sentido contrário à escrita automática do surrealismo, e também à estética clean dos comerciais de TV. Entramos aqui no território do exagero, desmedida, desmesura: uma arte refinada, como a esgrima, a heráldica ou a falcoaria, numa época regida pela ditadura banalizante do mercado e da mídia.

FORMA TRANSISTÓRICA — Uma questão que ocupa ainda certos críticos é a pertinência (ou não) de se falar em barroco, ou neobarroco, para além dos cânones do Século de Ouro, com sua métrica e sua mitologia. Para tais vozes, o barroco é a estética de uma época específica — o século 17, era da Contra-Reforma, do absolutismo e da navegação, irrepetível e confinada a seu momento histórico. Esse tema já foi discutido por autores como Ernst Curtius, para quem o barroco é cíclico, ressurgindo em períodos de saturação de classicismo. Néstor Perlongher, nessa mesma linha de investigação, entende o barroco como forma transistórica, que reapareceria em momentos caóticos, convulsivos. Numa época em que “tudo é grito, tudo desordem, tudo confusão” (Vieira), o terreno estaria fértil para essa arte do caos, da crise, da conturbação. Não é estranho, assim, que tenha renascido na América Latina, continente perturbado pelo jogo de claro-escuro entre o arcaico e o moderno, a subnutrição e a informática. Ele incorpora esse conflito em seus processos textuais, assume o caráter inquieto do contexto social, via linguagem, fazendo do tecido estético um ícone da loucura que vivemos. Nessa operação, recupera a fala do Outro, do excluído, do marginal. José Kozer incorpora elementos chineses e japoneses, referências à Cabala e aos místicos medievais; Néstor Perlongher voltou-se ao xamanismo e à sapiência visionária; Severo Sarduy enfocou os travestis e o submundo. O herói é o Outro, aquele que é belo porque é diferente de mim. Ao esvaziar o eu lírico, narciso em flor, amplia o sujeito numa figuração transcendente de vazio, totalidade e êxtase, fazendo da poesia uma experiência quase mística (recordando o adágio de Lezama Lima, para quem a poesia era uma forma de “conhecimento absoluto”, capaz de substituir a religião).

Renunciando à idéia de linha evolutiva da vanguarda e também à concepção de progresso histórico da esquerda marxista, os poetas neobarrocos assumem a incessante metamorfose, rio de Heráclito, borboleta de Chuang Tzu, jardim de camaleões. Roberto Echavarren, no poema O Napoleão de Ingres, por exemplo, faz uma collage de signos de diferentes culturas, épocas e lugares para descrever um retrato do imperador francês: “A cor da seda, sua textura / são quase metálicos: um zepelin pelo céu / azul-da-prússia, um dragão chinês / voando em seu troar de metais”. Assim também José Kozer, no poema Auto-Retrato: “sou o verdadeiro eu: um eu / Cibola, eu Hespérides, sou argivo sou argivo (gritou). / (…) um íbis amarelo / sobre fundo negro três ideogramas”. Essa montagem de recortes, que contraria as distinções entre os territórios de espaço-tempo, recorda, sem dúvida, os contrapontos antitéticos do movimento tropicalista, de Caetano Veloso e Gilberto Gil (em canções como Tropicália e Geléia Geral), e aponta para novas possibilidades de concepção do mundo, para além dos parâmetros cartesianos tradicionais e do conceito de história como um processo lógico e linear, sujeito às leis de qualquer determinismo, social-darwiniano ou dialético.

A história, se é ampliada numa dimensão universal, totalizante e epifânica, também é concentrada, em movimento paralelo, à sua unidade mínima, o corpo humano. Severo Sarduy, cultor da lírica do bizarro, investigou as relações entre o corpo biológico e o textual, definindo o poeta como um tatuador, e a literatura, como arte da tatuagem, signos unificados na pele do papel. Seguindo essa mesma linha, mas aprofundando o viés sádico da metáfora erótica, Lamborghini irá reivindicar o talhe, o corte de lâmina: a escritura como incisão, mutilação (o que nos faz lembrar, sem dúvida, de Buñuel, na conhecida seqüência do olho em O Cão Andaluz, e também de Lautréamont): assim, em El Niño Proletário, o poeta faz um raconto cruel de amor homoerótico, onde o momento do gozo coincide com a perfuração da perna do amante por uma faca, até expor seus ossos. A junção do tema amoroso com o grotesco, o escatológico, longe de remeter ao épater le bourgeois, revela outra camada de leitura ou percepção da escritura e do mundo, que questiona todas as polarizações, todos os conceitos preconcebidos. A androginia, ou superação da dicotomia masculino-feminino, é outra obsessão constante em vários desses autores, que têm como única certeza a indeterminação, o transformar-se, o travestir-se: nada é o que aparenta, no infinito lance de mutações do universo.

Claudio Daniel

É poeta e tradutor.

Rascunho