A escrita e o mundo

"Escrever é muito perigoso", de Olga Tokarczuk, reúne ensaios e conferências sobre processo criativo
Olga Tokarczuk, autora de “Escrever é muito perigoso”
01/10/2024

Mais do que um debate sobre a prática da escrita, Escrever é muito perigoso oferece boas reflexões sobre a relação dos artistas com o mundo. Essa proposta é bastante condizente com a literatura produzida pela polonesa Olga Tokarczuk e com a sua biografia.

O livro reúne doze textos, entre ensaios e conferências, incluindo seu discurso na cerimônia de entrega do prêmio Nobel de Literatura, que aconteceu em 2019. Olga Tokarczuk já tem livros publicados no Brasil, a exemplo de Sobre os ossos dos mortos (2019), A alma perdida (2020), Correntes (2021) e O senhor notável (2023). Embora a polonesa fale sobre seu processo criativo e a elaboração de personagens em Escrever é muito perigoso, a leitura prévia das obras não é uma condição para se interessar e compreender o que ela diz.

Isso acontece porque, ao construir esses relatos, a escritora provoca qualquer pessoa que se disponha a olhar criticamente para a vida e a escrever sobre ela. Pode-se dizer que a literatura e a escrita são os assuntos principais desse livro. Tokarczuk expõe suas perspectivas a respeito da construção de narrativas, dos tipos de narradores, de seus métodos e inspirações, e questiona algumas fórmulas ou “ondas” que consomem a produção literária contemporânea. No entanto, outros temas surgem a partir daí, como a relação da humanidade com a natureza e com a cultura, peça fundamental para o exercício da criatividade.

Uma das principais “bandeiras” que o livro defende ao falar sobre escrita é a originalidade. No discurso do prêmio Nobel, O narrador sensível, a autora cita alguns lugares-comuns nas histórias publicadas nos últimos anos e sugere a criação de novas maneiras de narrar o mundo. A originalidade é, de fato, uma característica importante nas obras de Tokarczuk, e parece ser um esforço constante seu o desvio de narrativas previsíveis. Quem leu Sobre os ossos dos mortos percebe esse caminho.

Nos três primeiros textos de Escrever é muito perigoso (Ognosia, Exercícios de alteridade e Máscaras dos animais), a escritora parece desenvolver esse mesmo argumento. Em Ognosia, por exemplo, ela chama a atenção para a importância do mistério e da imaginação em um ambiente onde tudo se tornou bastante “decifrável”, por assim dizer. Ou seja, hoje temos ferramentas para conhecer e pesquisar sobre coisas que antes só podíamos imaginar. Sem desconsiderar o avanço que isso representa, Tokarczuk reflete sobre as limitações que o excesso de informação pode trazer para o nosso potencial imaginativo. Vivemos orientados por calendários, mapas, relógios… e, principalmente, pelo consumo.

Crises
Na sequência, compreende-se ainda mais para onde Tokarczuk quer que voltemos nossa atenção: os humanos há tempos se enxergam como os seres mais importantes da Terra e dissociados do restante da natureza. Os prejuízos podem ser observados no tratamento que damos aos animais, aos recursos naturais e nas consequências disso para nós mesmos. A maneira como exploramos o planeta e nos movimentamos nele interfere na produção artística. Escrever é muito perigoso é uma obra construída durante a pandemia do coronavírus, iniciada em 2020. Está, portanto, dentro de uma perspectiva de crise (climática e política) e de transformação.

Em meio às reflexões sobre a atualidade, a escritora traz referências de obras de arte, cita escritores e outros artistas para reforçar os argumentos. Estão ali histórias sobre sua introdução à vida literária, desde a influência do trabalho do pai como bibliotecário até as leituras iniciais de romances de Jules Verne.

Outras referências frequentes são em relação à mitologia e à importância da tradução. No texto Os trabalhos de Hermes, ou como os tradutores salvam o mundo todos os dias, ela define tais profissionais como uma rede que ajuda a transportar informações dentro do organismo social, e conta sobre a importância desse trabalho no desenvolvimento da história humana desde a Antiguidade. Para ela, a tradução representa a autonomia do texto e liberta escritores da solidão inerente à profissão.

Não sei como exprimir a sensação de alívio que surge quando se pode dividir com alguém sua própria autoria. Fico feliz por me livrar, pelo menos parcialmente, da responsabilidade pelo texto que recaía, até então, apenas sobre mim, para o bem ou para o mal. Por não ter que enfrentar mais sozinha um crítico furioso, uma resenhista caprichosa, um jornalista sem gosto literário ou um moderador arrogante e seguro de si.

Com riqueza de referências e temas, esse é um ótimo livro para quem pensa em viver de literatura, sem deixar de lado assuntos como a formação da individualidade, o olhar para a natureza e para a alma humana.

Psicologia
A autora trabalhou como terapeuta antes de se dedicar à literatura. Essa mistura é perceptível em todos os textos, mas em especial em Dedo no sal, ou uma breve história das minhas leituras, quando conta sobre a primeira vez em que leu Freud. Ela afirma considerá-lo um romancista, principalmente por conta das descrições aprofundadas de suas pacientes.

Depois da leitura de Freud já nada era óbvio. O mistério — um dos domínios de Hermes — banalizado por Verne, reivindicado pela sombria literatura centro-europeia e latino-americana, regressou com força ainda maior, avassaladora e irresistível, e ainda por cima localizada muito perto: dentro de mim, de você, da cozinha, do quarto, das ruas.

A referência aos perigos de escrever está em Sobre o daimonion e outras motivações para escrever, em que ela fala sobre as características que podem ajudar a preparar alguém para a escrita, se é que isso é possível. Trata-se de um dos textos mais interessantes do livro, direcionado a jovens escritores e bastante reflexivo acerca da produção literária contemporânea. O que ela chama de “psicologia do processo criativo” reaparece na segunda parte da obra, As palestras de Łódź.

Por fim, é justo descrever o livro como uma homenagem à criatividade e à diversidade. Tokarczuk é enfática ao falar que não existe pior problema, no âmbito da criação, do que uma pessoa perder sua linguagem individual, assumindo uma linguagem coletiva. Aliado a isso, está o risco de olhar para a vida como algo estático e definitivo. Por isso, diz ela, a leitura é fundamental, pois nos ajuda a “assegurar que o nosso mundo é um de vários mundos possíveis e com certeza não nos foi dado de uma vez por todas”.

Escrever é muito perigoso
Olga Tokarczuk
Trad.: Gabriel Borowski
Todavia
264 págs.
Olga Tokarczuk
Nasceu em 1962 na Polônia. Seus livros Sobre os ossos dos mortos, Correntes e A alma perdida foram publicados no Brasil pela Todavia. Recebeu o prêmio Nobel de Literatura de 2018.
Gisele Barão

É jornalista

Rascunho