A escolha de Teresa

Romance de estreia da poeta Micheliny Verunschk traz a história labiríntica de uma beata suicida
Micheliny Verunschk, autora de “Nossa Teresa — vida e morte de uma santa suicida”
28/08/2015

Este é um livro circular; retângulo só na forma. Circular porque, depois do ponto final, o desejo imediato é o de começar tudo de novo, refazendo os trechos em outros arranjos. A história descrita em poucas linhas fala de Teresa, a moça vidente que opera milagres e é canonizada como Beata Teresa de V. — a cidade dos suicidas. Ela mesma, uma pecadora.

Teresa era cópia fiel de outras jovens santas também representadas com os mesmos ícones, rosas, cruzes, rosários entre os dedos, olhos voltados para o alto, um contorno de sorriso antecipando o êxtase. Entretanto, nenhuma das antecessoras teria faixas remendando os pulsos.

O desejo de ouvir a história na ordem de começo, meio e fim (ou qualquer ordem que fosse) é inteiramente frustrado a cada capítulo na medida em que o narrador não quer ser amigo do leitor, não deseja o desejo deste, que pode achar cansativo o labirinto de Creta. Aliás, o labirinto como metáfora sugerida é um acerto.

No conflito dos desejos entre aquele que narra (também um personagem) e aquele que lê, aparecem relatos vários e fragmentos dispersos de histórias antigas que são intercalados pelo enredo central — ah, queremos Teresa! — nascido por entre lapsos de linhas confusas. “Tudo o que depende da linguagem se move sem que se possa determinar fielmente o seu roteiro”, diz o texto.

No miolo do labirinto, misturam-se vários relatos, como a de Saulo de Tarso, que ficou cego e foi conduzido a Damasco. Mas nenhum deles é reproduzido com compostura evangélica; esfarela-se a reverência. Se o leitor se assustar, tanto melhor. A aposta é quebrar os santos de barro para que, na liberdade das imagens, nasça o texto-surpresa.

Não se quer uma mente controlável, eis o projeto. Nada de induzir à pena ao remorso, ao pudor, ou ao júbilo. E o pecado? Fala-se de suicídio, sim, mas é bom lembrar também que, no embaralhar dos sentidos e dos valores, pecado não é tirar a própria vida, mas a santidade, a austeridade e a obediência.

É por esta estrada cheia de viesses labirínticos, de reorganização de antigas estruturas históricas, de recomposição de crenças, que caminha a história de beata Teresa, cuja autorização para a exumação canônica veio a partir de Dom Petrus, um certo Simão de que havia entrado antes na história. Diferentemente de Santa de Lisieux, a beata brasileira não deixou bilhete algum, sequer uma linha. Apenas dissera, em uma manhã, ao ouvido de Simão, depois feito Petrus: “Um anjo sussurrou para mim que pela minha morte serei santa e por meio dela serás papa”.

Biblioteca dos suicidas
Poderia ter deixado um bilhete — avisa o narrador. Assim, afastariam as hipóteses de assassinato, e seu texto seria documento para ser guardado a sete chaves na sucursal de uma biblioteca imaginária — a biblioteca dos suicidas, que abrigaria as mensagens encadernadas, catalogadas, organizadas por tema (morte por tiro, defenestração, envenenamento, enforcamento, asfixia por gás), sexo, idade, motivos aparentes (desilusão amorosa, dívida, problemas familiares, desajuste social) e, claro, tudo estaria ligado em rede compondo uma árvore com infográficos, fotografias, inclusive as relações entre os suicidas e a geografia.

Na desordem proposital, quebrando novamente a expectativa do leitor que imaginava saber mais sobre Teresa, seguem-se vários trechos, pequenos bilhetes cheios de adeus, de vários suicidas de diversas idades, diferentes histórias, motivos e azedumes. Uns pedem perdão, outros se justificam. E Teresa? Como recuperar sua história se ela não deixou bilhete? De que modo biografar? Como garantir confiabilidade à narrativa? O desafio está, não nas mãos de quem narra, mas no coração de quem ouve:

O leitor ou ouvinte não tem escapatória. Ele precisa se pôr às cegas por um ato de vontade e, simplesmente, acreditar, como o navegante que conduz sua barca ao porto sempre de costas para seu ponto de chegada.

Como surge Teresa, então? Aos pedaços e de forma retorcida, sem nenhuma nitidez.

Teresa é um espelho partido. Cada fragmento contém Teresa total, mas o ajuntamento de todos os pedaços nunca poderia dizer de fato quem ela é ou foi. Podemos tentar recompô-la, como um exercício. Mas, salvo engano, ao final deste teremos tantas Teresas nas mãos que não poderemos distinguir aquela que queremos. E sempre há que se querer uma em detrimento da outra e a que queremos nunca será aquela que nos acompanha. A vida não é uma novela. Seria, antes, como tenho dito, um novelo.

O fio que se desenrola na primeira frase é a linha que o leitor precisará segurar para (não) se perder em meio à poeira iluminada que polvilha a infância da personagem, mas depois embaça a leitura. A todo o instante, o narrador interrompe a história para inserir outras vozes e outros fios… A memória é porosa e jamais consegue solidificar-se a não ser em forma de invenção.

Os desenhos biográficos de Teresa ganham os vagos contornos da família — o pai, leitor de Faulkner, e a mãe, atleta. Juntos foram se instalar em V. — a cidade. Eles não se sentiam nada confortáveis com a ideia de santidade da filha. E muitos foram os duelos entre eles e a Igreja… Isso importa? Tanto menos quanto o que se entende por milagres, que ocupam boa parte de um dos capítulos, assim como a chegada dos peregrinos 30 anos depois. Mas e Teresa? Queremos saber de Teresa.

Ela tinha êxtases. Iluminações. Luminescências. Os religiosos demoraram a perceber o que eram aqueles estalos de luz. Um cheiro de flor sempre acompanhava a menina como uma aia, um bicho de estimação, ou coisa do tipo. Um cheiro de santidade, de inocência, que nenhum incenso ou mirra poderiam igualar. Um cheiro indecifrável.

As descrições da personagem são poéticas; o texto é, antes de tudo, o primeiro romance de uma ótima poeta, é bom lembrar. E nisso só há grandeza. A narrativa se enriquece tremendamente quando a experiência de um outro gênero faz colidir parágrafos. Micheliny tem ritmo e empresta surpresa ao texto longo. Não conseguiria fazer diferente, sem aborrecer ao leitor e a si mesma, parece dizer sobretudo quando escreve: “Narrar significa fazer escolhas”.

Nossa Teresa — vida e morte de uma santa suicida

Micheliny Verunschk
Patuá
188 págs.
Micheliny Verunschk
É autora dos livros Geografia íntima do deserto (Landy, 2003 — finalista do prêmio Portugal Telecom de 2014), O observador e o nada (Edições Bagaço, 2003), A cartografia da noite (Lumme Editor, 2010), e b de bruxa (Mariposa Cartonera, 2014). É doutoranda em Comunicação e semiótica e mestre em Literatura e crítica literária, ambos pela PUC-SP.
Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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