A epopéia burguesa

Resenha do livro "A ascensão do romance", de Ian Watt
Ian Watt, autor de “A ascensão do romance”
01/05/2011

Tendo implodido os pilares de coletividade e sobriedade clássicas, a era moderna trouxe consigo um ideal de arte pouco afeito às amarras de gênero. Na condição de filho dileto dessa mentalidade transgressora, o romance já nasceu, portanto, sob o signo da liberdade — razão pela qual é desafiador precisar as bases formais que o regem. Por certo atraídos pela natureza movediça do gênero, teóricos se debruçaram sobre o tema e produziram obras centrais, como é o caso de A ascensão do romance, de Ian Watt, cujo relançamento em versão de bolso é um convite aos amantes da “epopéia burguesa”, como definiu Lukács.

O estudo se detém na análise das obras de Daniel Defoe (1660-1731), Samuel Richardson (1689-1761) e Henry Fielding (1707-1754) — tríade inglesa pioneira do chamado realismo formal. O termo, cunhado por Watt, representa o conjunto de procedimentos responsáveis pela consolidação do romance tal qual o ocidente o conheceria no século 19. Embora inevitável a princípio, a associação do realismo formal com a “vérité humaine” dos franceses revela-se frágil, pois o realismo do romance reside antes na maneira como se constrói o retrato desapaixonado da experiência humana do que na mera preocupação em fazê-lo. E o que nortearia esse método? A primazia da experiência individual, a particularização de tempo, local e pessoal (em contraposição aos tipos humanos genéricos filiados a uma dada tradição literária) e uma seqüência natural de ações, tudo conjugado em um estilo literário o mais próximo possível do objeto descrito.

Há de se destacar inicialmente a preocupação de Watt em oferecer ao leitor uma visão plural daquele período de inflexão da literatura ocidental. Ao efetuar o intercâmbio entre filosofia, história e literatura, o autor nos mostra como o surgimento dessa tríade de romancistas não se deve ao acaso, tampouco à mera genialidade. Vemos, por exemplo, o papel decisivo da filosofia, na medida em que o romance se tornou a forma mais bem acabada da concepção descartiana da busca da verdade a partir do plano individual. Do ponto de vista histórico, assistimos como a ascensão da classe média londrina pós-Revolução Gloriosa de 1689 permitiu o surgimento de um público leitor interessado em formas mais fáceis de entretenimento literário (razão pela qual o romance foi considerado um gênero menor àquela época).

Tal pano de fundo histórico-filosófico-social está subordinado àquele que é o maior mérito do livro: o engenhoso trabalho de literatura comparada empreendido por Ian Watt. Para além de semelhanças rasteiras, o crítico inglês parte sobretudo das diferenças entre Defoe, Richardson e Fielding e mostra de que modo elas se tornaram decisivas para a história do romance. Se a contribuição principal de Defoe foi trazer para o romance a tensão entre o puritanismo e a tendência à secularização assentada no progresso material, ele não o fez sem cometer falhas técnicas no tratamento do enredo — deficiência que Richardson contornou ao centrar seus romances em uma única ação. Se o mesmo Richardson, ao mergulhar na individualidade e psicologia de seus personagens, priorizou o indivíduo em relação à estrutura global da obra (dada a simplicidade do enredo), Fielding fez exatamente o oposto ao enfatizar a força social e deste modo subordinar seus personagens a um enredo complexo e minuciosamente arquitetado no intuito de corrigir eventuais acidentes e restabelecer a ordem de classes.

Deste modo, temos a oportunidade de enxergar a fundo de que maneira os principais romancistas ingleses do século 18 prepararam o caminho para que seus sucessores elevassem o gênero romance ao ápice do realismo formal. Se é ponto pacífico que Stendhal, Balzac e Flaubert são figuras maiores que seus predecessores, é igualmente inconteste o débito do trio de ouro da literatura francesa para com Defoe, Richardson e Fielding.

A ascensão do romance
Ian Watt
Trad.: Hikdegard Feist
Companhia das Letras
352 págs.
Wilker Sousa

É escritor, jornalista e mestre em Teoria Literária pela USP. Em 2016, foi premiado no concurso Paulo Leminski de contos. É autor de as digitais das sombras (Patuá). Como jornalista, foi editor de literatura da revista Cult.

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