A melhor palavra para definir a tetralogia de Marcus Accioly formada por Sísifo, Íxion, Narciso e Érato talvez seja “monumento”, termo que lhe pode ser aplicado de diversas maneiras: para evidenciar o esforço do poeta ao erigi-lo, para caracterizar a relação com textos canônicos e, ainda, para se pensar o lugar possivelmente ocupado pela obra hoje, nesta sua segunda edição.
Lançados inicialmente entre os anos 1976 e 1990, os livros compõem, com Nordestinados (1971) e Latinoamérica (2001), os trabalhos mais reconhecidos do autor pernambucano, falecido em 2017, aos 74 anos. Escritos ao longo de um período de transformações na poesia brasileira, dão testemunho de movimentos que lhe foram contemporâneos, como a assimilação de segunda hora de procedimentos concretistas, o debate de caráter existencial realizado por diversos autores no período mais duro do regime militar e a celebração erótica em fins da década de 1980.
Sua marca mais constitutiva, porém, é a combinação entre erudição e experimentalismo. A mitologia grega, evidente desde o título de cada volume, é o ponto de partida para um extenso e ambicioso retorno a poetas, romancistas, dramaturgos, filósofos, entre outros pensadores, sobretudo ocidentais. A mediação fica por conta das formas poéticas, que o autor revisita, inventaria, questiona e atualiza, tomando-as como instrumento de sua reflexão sobre a experiência humana.
Para se ter uma noção mais clara da proposta e da dimensão do projeto, vale uma breve descrição de cada um dos volumes.
Sísifo (1976) realiza, desde a primeira estrofe, a busca pelo sublime, evocando, em intertexto com Camões, Dante, Virgílio e Homero, “comédias tragédias epopeias”. Graças a uma “chave” oferecida pelo autor no início do volume e às pistas iniciais do texto, o leitor não tem dificuldades para perceber que a figura mitológica é um arquétipo do poeta. Este, condenado, como Sísifo, a elevar uma pedra, deve fazê-lo de maneira metafórica, isto é, com os recursos da linguagem: “quando a pedra se eleva/ sobre o penhasco/ quando a pedra é só voz/ Sísifo é pássaro”.
Trata-se, assim, de uma verdadeira empreitada: o confronto do indivíduo com textos e formas, no qual o poeta assume em diversos momentos a primeira pessoa, buscando na tradição ocidental a razão e o sentido de seu esforço. O percurso, em dez cantos, vai da Irrealidade mitológica que intitula o primeiro à Reinvenção do mito que dá nome ao décimo, e inclui oitavas, dísticos, sonetos, poemas visuais, estruturas não verbais…
Tanto em Sísifo, que tem como horizonte a epopeia, como em Íxion (1978), que retoma a tragédia, Accioly associa gêneros e personagem incompatíveis, já que, para os gregos, textos épicos e trágicos destinam-se a homens e mulheres elevados. A condição de Sísifo é literalmente decaída, desde que foi condenado, após a morte, a uma tarefa interminável, impossível; Íxion, figura mitológica menos conhecida, é aquele que incorre em mais de um erro, mesmo depois de merecer a indulgência de Zeus. Por isso, é também condenado a um sofrimento cíclico e infindável.
Como afirma Wendel Santos em posfácio ao volume, a reconstrução de Íxion por Accioly desloca o sentido trágico original: enquanto para os gregos a matéria estava na fatalidade do destino, no livro do poeta pernambucano está em jogo a interioridade do protagonista. Em outras palavras, o mito interessa não pela dinâmica de transgressões, reparações, equilíbrios e punições que rege as ações de homens e deuses e o universo moral grego, mas pela possibilidade da investigação subjetiva. Daí, talvez, o próprio autor preferir classificar o trabalho do volume como “realismo tragidramático”.
Já Narciso (1984) é o volume mais evidentemente experimental. Em sua organização, não corresponde a nenhum gênero em particular, mas faz do espelho, elemento temático central ao mito, o elemento fundamental de sua estrutura. Suas dez partes são, de um lado, 1ª a 5ª Voz e, de outro, 1º a 5º Eco. O par amoroso do mito original, Eco e Narciso, dá assim origem a princípios complementares, como masculino e feminino, explorados ao longo de todo o livro.
Além do espelhamento entre versos, páginas e poemas, um dos recursos mais recorrentes são os parênteses, que introduzem uma segunda voz, como eco, no discurso poético. Esse procedimento é ampliado nos três primeiros poemas, que resultam, na verdade, de uma sobreposição de duas composições — realizadas a partir de recortes na página. Os textos se cruzam e entrecortam, assim, de diferentes maneiras, intensificando o efeito de polifonia.
Não à toa, um dos temas do livro é a possibilidade de comunicação. Um dos sonetos pergunta:
Eco é o mar
ou o mar é o eco que vive a chamar
o nome do que segue de viagem
afogado? Narciso quem te busca
com a Babel de uma língua tão confusa
que não entendes nunca tal mensagem?
Também central é o deslocamento operado no mito, pois, nas composições de Accioly, Narciso se vê não diante de um lago, mas do mar, o que lhe permite introduzir os temas da dissolução, da vastidão e da partida, além de integrar outras releituras, como a do nascimento de Afrodite, da lírica de Safo e do passado lusitano.
Por fim, Érato (1990) encerra a trilogia evocando a musa do título para celebrar, como afirma o poeta, a relação entre o “prazer-literário” e o “prazer-literal”. Assim, para além de poemas francamente eróticos, há aqueles que se regozijam com o texto, como o que embaralha os diferentes integrantes da tetralogia: “primeiro Sísifo/ segundo Íxion/ depois Narciso/ e agora Érato / (ó musa) o abismo/ é um sexo aberto”, conforme sua primeira estrofe.
Também aqui há uma profusão de referências. Já o experimentalismo formal se vincula a características mais superficiais: o prazer de brincar se revela, por exemplo, na maneira de organizar os poemas, ora numerados, ora identificados por letras. Estas tornam possível lê-los em diferentes percursos, de tal maneira que as letras da identificação acabam por formar uma frase. Outro exemplo digno de nota é a distribuição, na página, dos versos que compõem o poema 69: o leitor não deve ter dificuldades para imaginá-la.
A edificação
Por esta descrição dos quatro volumes, que sequer entra na particularidade das composições poéticas, é possível notar a estatura da tetralogia como projeto. Tendo atuado por 22 anos como professor de teoria literária na Universidade Federal de Pernambuco, Accioly mobiliza um catálogo amplo e heterogêneo de referências. Somente nas epígrafes, vai de Ésquilo a Eduardo Galeano, de Bhagavad Gita a Brecht, do Cântico dos cânticos a Hans Christian Andersen.
Torna-se claro, assim, que o trabalho poético tem um papel evidente de pesquisa, o que é corroborado pelo fato de, ao fim de cada volume, o autor oferecer ao leitor, em forma de notas, esclarecimentos e comentários sobre a composição. Não há, porém, didatismo — em Narciso e Érato há notas versificadas —, mas, talvez, desejo de indicar percursos e fornecer chaves de leitura.
Diante de uma empreitada dessa magnitude, é importante reconhecer, de um lado, o excelente trabalho editorial, que resulta na publicação conjunta dos quatro volumes, com o aparato completo idealizado pelo autor e as correções necessárias às primeiras edições. Mas é também inevitável questionar a quem pode se destinar, hoje, a tetralogia. Para além de leitores profissionais, os pesquisadores dedicados e capacitados que enfrentam a obra de Accioly na universidade, hoje, quando monumentos vêm sendo questionados e derrubados, quem poderá cruzar o pórtico e desvendar ou admirar, desde o interior, a sua estrutura?