A dor de olhar para trás

"Memória de ninguém", romance de estreia de Helena Machado, aborda os muitos traumas potencializados pelo luto
Helena Machado, autora de “Memória de ninguém”. Foto: Camila Loreta
01/11/2022

Para além da tristeza e do desamparo, o luto é capaz de proporcionar, em muitas das vezes, um olhar mais aguçado e provavelmente mais crítico a respeito da pessoa que se foi. A angústia dá lugar a novas percepções e as origens de traumas podem, enfim, ser encaradas de maneira crua, embora não menos dolorosa.

É esse olhar corajoso para o passado que Memória de ninguém, romance de estreia de Helena Machado, proporciona com bastante maturidade, em uma narrativa envolvente e bem estruturada.

Na história, a protagonista enfrenta uma crise existencial após a morte do pai, quando se dá conta de todo o vazio que a cerca. Seus fracassos amorosos, traumas de infância, sonhos não realizados e relações familiares desgastadas parecem se impor de uma hora para a outra, rumo a uma combustão já anunciada.

Memórias “esquecidas” voltam à tona e exigem da personagem um acerto de contas, tanto com o passado quanto com o presente. Ela se vê em um ponto sem retorno após perceber que cada memória desbloqueada vem acompanhada de outra e outra, numa espiral que ainda parece longe do fim.

Nesse cenário, sua mãe e suas irmãs mais novas — as gêmeas Maria Júlia e Maria Juliana — não são exatamente uma referência de apoio, mas também não se aproximam da crueldade ou da indiferença. Esse, aliás, é um dos muitos pontos altos do romance, que foge de dicotomias banais como “bem x mal” e apresenta personagens complexos, bem construídos e com motivações próprias.

As gêmeas demonstram isso muito bem, pois cada uma tem sua própria dinâmica com a família e ocupa um papel relevante para a narrativa. Maria Juliana, por exemplo, é uma espécie de alvo para o desprezo e a frustração de seu pai ao longo de toda a vida, tudo porque nasceu alguns segundos depois de Maria Júlia e, assim, frustrou as expectativas de quem esperava o tão sonhado filho homem. Maria Júlia, por outro lado, é o maior orgulho do pai, a filha doutora.

Moacir e Juan, homens com quem a protagonista se envolve ao longo do romance, também são bons exemplos, embora revelem mais sobre a personagem central do que sobre si mesmos, graças a um processo transferencial muito bem elaborado pela autora.

O primeiro é um homem mais velho, com quem a personagem tem uma relação duradoura, em meio a idas e vindas. Moacir é inseguro, bastante ciumento e deposita em seu par a responsabilidade de fazê-lo feliz e jamais abandoná-lo.

O segundo é um argentino, com quem a protagonista se envolve durante uma viagem, numa paixão avassaladora e um tanto quanto adolescente. Juan se contrapõe a Moacir em muitos aspectos (inclusive físicos) e, talvez por isso, tenha despertado o interesse da personagem, em sua busca inconsciente por uma nova identidade.

Passado e presente entrelaçados
Em uma narrativa não linear sem pontas soltas, Helena Machado mostra que já tem uma voz literária bem definida nesse romance de estreia. A experiência como roteirista e dramaturga (inclusive premiada pelas peças Sexton e Aos peixes) contribui com os diálogos marcantes e as descrições de cenários.

Porém, o que mais chama a atenção é a rara habilidade de fazer com que passado e presente se entrelacem, numa fluidez que torna a interrupção da leitura um grande desafio. O fluxo de consciência faz com que confissões surjam em meio a relatos banais do cotidiano, o que obriga a protagonista a lidar com as lembranças que tentava, a todo custo, esconder de si mesma.

Helena Machado ainda demonstra criatividade ao “criar” novos adjetivos e ao explorar a linguagem de maneira profunda, a ponto de construir uma atmosfera poética mesmo quando aborda os acontecimentos mais dolorosos da trama.

Também merecem atenção os momentos em que a autora brinca com as palavras ao colocá-las como elementos gráficos do texto, o que reforça a ideia de movimento e ainda faz alusão à poesia concretista.

Outro ponto que se destaca é a maneira com que a escritora consegue intercalar longos períodos a frases curtas, sem que isso coloque em risco a fluidez da narrativa, uma vez que as sentenças menores funcionam como um respiro em meio a uma prosa bastante intensa. Respiro aqui, vale dizer, não significa alívio. Não é isso que o romance propõe. Sua preocupação é explorar silêncios, desenterrar lembranças e remexer no “deixa pra lá, isso já passou”.

Relações familiares e machismo
A narrativa foge de idealizações, toca nas feridas e evidencia sentimentos contrastantes tão comuns aos núcleos familiares. A protagonista percebe que é possível se preocupar, amar e, ao mesmo tempo, reconhecer os danos causados pelos pais. No seu caso, a ambivalência é mais perceptível na relação com a mãe, que não a protegeu em momentos de desemparo e a deixou exposta à malícia de alguns homens.

Os abusos que sofreu de ex-namorados da mãe se somam a outras violências comuns às mulheres, como a pressão para perder peso, algo que a protagonista e suas irmãs vivenciaram desde a infância, graças aos comentários maldosos da própria mãe.

A personagem central também se envolveu com homens que a enxergavam como uma figura materna, responsável por protegê-los de todo o mal e amá-los incondicionalmente.

Ao incorporar esses temas ao romance, a autora demonstra que a violência acompanha as mulheres desde a infância e, muitas vezes, vem de quem deveria protegê-las. Mostra também que uma situação financeira confortável não é capaz de evitar abusos físicos e psicológicos e que mesmo membros de uma família aparentemente funcional podem colocar numa criança a responsabilidade dos atos de adultos mal-intencionados.

Ponto de virada
Memória de ninguém é bastante original — e até mesmo ousado — ao abordar o luto sem que a trama fique presa exclusivamente à melancolia. Na obra de Helena Machado os mais diversos sentimentos ganham espaço e se confundem, mesmo quando opostos.

A morte do pai não é o que dá origem à crise existencial, mas sim o que permite que a protagonista enxergue com clareza sua situação de desamparo e insatisfação. Aqui o sofrimento possibilita tanto um olhar atento e demorado para dentro de si quanto o início da vivência do luto de tantas coisas mortas já há muito tempo.

De certa forma, a morte do pai é o que traz à tona muitos outros traumas, ao mesmo tempo em que faz com que a personagem finalmente se perceba como uma mulher de quase 40 anos cercada de dúvidas, questões mal resolvidas e gritos presos na garganta.

É a partir disso que compreende para onde foram todos os seus silêncios e busca entender o que fazer com cada um deles. Percebe que a memória de ninguém pertence a tudo e a todos e que pessoa alguma parte por inteiro, afinal, “os fantasmas podem até envelhecer, mas não morrem jamais”.

Memória de ninguém
Helena Machado
Nós
272 págs.
Helena Machado
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), é bacharel em Comunicação Social pela UFRJ, atriz, roteirista e dramaturga. Memória de ninguém é seu romance de estreia.
Bruno Inácio

É jornalista e escritor. Autor de Desprazeres existenciais em colapso (contos) e Desemprego e outras heresias (romance)

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