Para além da tristeza e do desamparo, o luto é capaz de proporcionar, em muitas das vezes, um olhar mais aguçado e provavelmente mais crítico a respeito da pessoa que se foi. A angústia dá lugar a novas percepções e as origens de traumas podem, enfim, ser encaradas de maneira crua, embora não menos dolorosa.
É esse olhar corajoso para o passado que Memória de ninguém, romance de estreia de Helena Machado, proporciona com bastante maturidade, em uma narrativa envolvente e bem estruturada.
Na história, a protagonista enfrenta uma crise existencial após a morte do pai, quando se dá conta de todo o vazio que a cerca. Seus fracassos amorosos, traumas de infância, sonhos não realizados e relações familiares desgastadas parecem se impor de uma hora para a outra, rumo a uma combustão já anunciada.
Memórias “esquecidas” voltam à tona e exigem da personagem um acerto de contas, tanto com o passado quanto com o presente. Ela se vê em um ponto sem retorno após perceber que cada memória desbloqueada vem acompanhada de outra e outra, numa espiral que ainda parece longe do fim.
Nesse cenário, sua mãe e suas irmãs mais novas — as gêmeas Maria Júlia e Maria Juliana — não são exatamente uma referência de apoio, mas também não se aproximam da crueldade ou da indiferença. Esse, aliás, é um dos muitos pontos altos do romance, que foge de dicotomias banais como “bem x mal” e apresenta personagens complexos, bem construídos e com motivações próprias.
As gêmeas demonstram isso muito bem, pois cada uma tem sua própria dinâmica com a família e ocupa um papel relevante para a narrativa. Maria Juliana, por exemplo, é uma espécie de alvo para o desprezo e a frustração de seu pai ao longo de toda a vida, tudo porque nasceu alguns segundos depois de Maria Júlia e, assim, frustrou as expectativas de quem esperava o tão sonhado filho homem. Maria Júlia, por outro lado, é o maior orgulho do pai, a filha doutora.
Moacir e Juan, homens com quem a protagonista se envolve ao longo do romance, também são bons exemplos, embora revelem mais sobre a personagem central do que sobre si mesmos, graças a um processo transferencial muito bem elaborado pela autora.
O primeiro é um homem mais velho, com quem a personagem tem uma relação duradoura, em meio a idas e vindas. Moacir é inseguro, bastante ciumento e deposita em seu par a responsabilidade de fazê-lo feliz e jamais abandoná-lo.
O segundo é um argentino, com quem a protagonista se envolve durante uma viagem, numa paixão avassaladora e um tanto quanto adolescente. Juan se contrapõe a Moacir em muitos aspectos (inclusive físicos) e, talvez por isso, tenha despertado o interesse da personagem, em sua busca inconsciente por uma nova identidade.
Passado e presente entrelaçados
Em uma narrativa não linear sem pontas soltas, Helena Machado mostra que já tem uma voz literária bem definida nesse romance de estreia. A experiência como roteirista e dramaturga (inclusive premiada pelas peças Sexton e Aos peixes) contribui com os diálogos marcantes e as descrições de cenários.
Porém, o que mais chama a atenção é a rara habilidade de fazer com que passado e presente se entrelacem, numa fluidez que torna a interrupção da leitura um grande desafio. O fluxo de consciência faz com que confissões surjam em meio a relatos banais do cotidiano, o que obriga a protagonista a lidar com as lembranças que tentava, a todo custo, esconder de si mesma.
Helena Machado ainda demonstra criatividade ao “criar” novos adjetivos e ao explorar a linguagem de maneira profunda, a ponto de construir uma atmosfera poética mesmo quando aborda os acontecimentos mais dolorosos da trama.
Também merecem atenção os momentos em que a autora brinca com as palavras ao colocá-las como elementos gráficos do texto, o que reforça a ideia de movimento e ainda faz alusão à poesia concretista.
Outro ponto que se destaca é a maneira com que a escritora consegue intercalar longos períodos a frases curtas, sem que isso coloque em risco a fluidez da narrativa, uma vez que as sentenças menores funcionam como um respiro em meio a uma prosa bastante intensa. Respiro aqui, vale dizer, não significa alívio. Não é isso que o romance propõe. Sua preocupação é explorar silêncios, desenterrar lembranças e remexer no “deixa pra lá, isso já passou”.
Relações familiares e machismo
A narrativa foge de idealizações, toca nas feridas e evidencia sentimentos contrastantes tão comuns aos núcleos familiares. A protagonista percebe que é possível se preocupar, amar e, ao mesmo tempo, reconhecer os danos causados pelos pais. No seu caso, a ambivalência é mais perceptível na relação com a mãe, que não a protegeu em momentos de desemparo e a deixou exposta à malícia de alguns homens.
Os abusos que sofreu de ex-namorados da mãe se somam a outras violências comuns às mulheres, como a pressão para perder peso, algo que a protagonista e suas irmãs vivenciaram desde a infância, graças aos comentários maldosos da própria mãe.
A personagem central também se envolveu com homens que a enxergavam como uma figura materna, responsável por protegê-los de todo o mal e amá-los incondicionalmente.
Ao incorporar esses temas ao romance, a autora demonstra que a violência acompanha as mulheres desde a infância e, muitas vezes, vem de quem deveria protegê-las. Mostra também que uma situação financeira confortável não é capaz de evitar abusos físicos e psicológicos e que mesmo membros de uma família aparentemente funcional podem colocar numa criança a responsabilidade dos atos de adultos mal-intencionados.
Ponto de virada
Memória de ninguém é bastante original — e até mesmo ousado — ao abordar o luto sem que a trama fique presa exclusivamente à melancolia. Na obra de Helena Machado os mais diversos sentimentos ganham espaço e se confundem, mesmo quando opostos.
A morte do pai não é o que dá origem à crise existencial, mas sim o que permite que a protagonista enxergue com clareza sua situação de desamparo e insatisfação. Aqui o sofrimento possibilita tanto um olhar atento e demorado para dentro de si quanto o início da vivência do luto de tantas coisas mortas já há muito tempo.
De certa forma, a morte do pai é o que traz à tona muitos outros traumas, ao mesmo tempo em que faz com que a personagem finalmente se perceba como uma mulher de quase 40 anos cercada de dúvidas, questões mal resolvidas e gritos presos na garganta.
É a partir disso que compreende para onde foram todos os seus silêncios e busca entender o que fazer com cada um deles. Percebe que a memória de ninguém pertence a tudo e a todos e que pessoa alguma parte por inteiro, afinal, “os fantasmas podem até envelhecer, mas não morrem jamais”.