A doce face da violência

Em quase 500 romances publicados, Georges Simenon executou com maestria a linguagem contida que esconde fortes emoções
Ilustração: Ramon Muniz
01/06/2017

O que me atrai mais em nossa área é a violência por trás de faces respeitáveis, o funcionário público planejando como matar judeus mais eficientemente, o juiz falando com paixão sobre a necessidade da pena de morte, o garoto quieto e obediente que mata por diversão. Esses são casos extremos, mas se você quiser mostrar a violência que há por trás das faces suaves que a maioria de nós apresenta ao mundo, que melhor veículo você poderia ter que o romance policial?

A frase é de Julian Symons (1912-1994), romancista e poeta britânico, o grande responsável por elevar os romances policiais à categoria de literatura. Muitos autores de romance policial estão alinhados com a primeira parte da citação, mas mostrar a violência latente na maioria de nós é a marca de poucos. Georges Simenon é um deles, e com quase 500 romances publicados, pode-se dizer que praticava isso como uma religião. Não é trivial a tarefa de resenhar com justiça uma obra tão numerosa, personagens e enredos que não se repetem, de um autor três vezes biografado; é investigação digna do Comissário Jules Amedée François Maigret.

Georges Simenon nasceu em Liège, Bélgica francesa, em 1903 e muito cedo começou a trabalhar no Gazette de Liège, onde foi exposto pela primeira vez ao lado mais sórdido da cidade: política, brigas de bar, mortes em hotéis de porta de estação, investigações e palestras sobre técnica policial. Também teve a primeira experiência em produção e edição rápidas, que viriam a ser sua marca e a base do seu sucesso empreendedor. Em 1919, aos 16 anos portanto, escreveu Au Pont des Arches (Bénard, 1921), seu primeiro romance, e em 1930 publicou seu primeiro Maigret.

Sua vida pessoal prosseguia em alta rotação: teve três esposas, mas também longos e ruidosos romances com várias mulheres famosas. O número de supostas parceiras sexuais é assustador: 10 mil, segundo seus conhecidos, mas ele negava — dizia que não passaram de 1.200. Castelos, carros sob medida, lobos selvagens, viagens extravagantes, nada parecia excessivo para Simenon. Sabemos que em vez da superficialidade, essas vivências forneceram a matéria-prima de que se alimenta um escritor: centenas de personagens, uma só alma.

Entre 1921 e 1930, Simenon produziu novelas em um ritmo vertiginoso: trancava-se no escritório com seus cachimbos favoritos, e após oito ou dez dias enviava o manuscrito ao editor. Revisava minimamente, mas não falhava na criação. Cada enredo, completo, exibia personagens verossímeis, plenos de sutilezas, cadências e nuances do bem e do mal. E a sociedade que cercava os protagonistas confirmava as piores suspeitas do que o homem é capaz, do preconceito à indiferença, da mediocridade à ganância. Desde o início, a linguagem contida que esconde fortes emoções, a escolha de palavras e frases concisas e simples, a intensidade na montagem do cenário configuraram o estilo. A gafieira de dois tostões começa com uma alegria e um susto:

Um fim de tarde radiante. Um sol quase meloso nas ruas calmas da Rive Gauche. E em toda parte, nos rostos, nos mil ruídos familiares da rua, a alegria de viver.

No ar cristalino, os passos de Maigret ressoam nos paralelepípedos. Ele já sabe?”, Maigret pergunta ao guarda, “Ainda não”. “Ele” é o presidiário. O que ele não sabe é que seu recurso foi rejeitado, e que será enforcado na manhã seguinte. Ao contrapor o dia lindo, o ar cristalino com a sentença de morte, Simenon já deixa claro desde a primeira página que a beleza e o macabro convivem.

Influências
Sua ficção realista transmite uma impressão palpável das coisas, a ponto de causar no leitor um arrepio e uma ponta de culpa pelo voyeurismo inescapável. Por essa habilidade, Simenon foi comparado a Kafka e Nabokov. Mas as raízes da criação de Simenon datam dos gregos, ao menos em sua descrença no livre arbítrio e em suas montagens de curto intervalo de tempo, elenco reduzido e enredo de alta tensão. O ambiente é sempre urbano, a visão do interior de casas burguesas pernósticas, adensadas pelo entorno de vilarejos provincianos. Seus personagens são pessoas comuns, despretensiosas, solitárias, frequentemente incompetentes, vivendo a desesperança da rotina. A estrutura dos romances e novelas segue um padrão, não imposto por qualquer limitação externa, do autor, mas pela vida: em algum momento, o desesperado rompe com a rotina e o desfecho é sempre infeliz.

O pessimismo de Simenon ecoa sua época, o fascismo fermentado na década de 1930, a guerra nos anos 1940, o desânimo no pós-guerra. O existencialismo de Sartre e Camus permeiam os livros de Simenon, e o próprio Camus admitia ter aprendido com Simenon. O quarto azul contém um momento de grande aproximação a O estrangeiro. Tony Falcone, acusado de um assassinato e implicado em outro, é visto desde o início como culpado, o que transforma cada um de seus gestos e coincidências em sua vida em evidências que confirmam sua culpabilidade. Na sala de audiência faz um calor opressivo, o que facilita ainda a identificação da referência literária. Mas uma obra lembra mais a outra pelas palavras do réu, que em um gesto de polidez, ou para ganhar tempo, lança mão de expressões vagas, reticentes, que se voltam contra ele próprio e selam sua sentença.

André Gide, talvez o mais influente autor e editor francês, foi grande admirador da obra de Simenon, chamando-o de “possivelmente o maior e mais verdadeiro romancista de sua época”. Simenon era de fato bastante diferente de muitos grandes autores contemporâneos seus, porque considerava o avant-gardismo de Joyce e sutilezas de Henry James nada mais do que histeria. Orgulhava-se de sua prosa econômica, de sua habilidade em criar sensações tácteis com um vocabulário modesto e despojado. Dizia que ao terminar um romance, sacudia o manuscrito para que os últimos adjetivos caíssem do texto. Escrevia para todos, qualquer um podia ler sua obra. Era o que Roland Barthes chamou de “escrita ao grau zero”: fria, controlada, mas pulsando com paixão.

Técnica
A técnica ia além da concisão. O ritmo era muito veloz, beirando o selvagem; os cenários eram específicos, com detalhes cruciais e imagens inesquecíveis:

Pouco antes, quando ainda se entregavam ao amor selvagem, aqueles rumores os alcançavam, formavam um todo com seus corpos, sua saliva, seu suor, o branco da barriga de Andrée e o tom mais moreno da pele dele, o raio de luz em forma de losango que dividia o quarto em dois, o azul das paredes, um reflexo móvel no espelho e o cheiro do hotel, um cheiro ainda rural, o do vinho e das aguardentes servidas na primeira sala, do ragu refogando na panela, do colchão enfim, de crina vegetal, um pouco mofado.

O cheiro do colchão é um exemplo dos detalhes que colocam Simenon na categoria dos grandes. Escrevia romances policiais curtos, os casos eram fechados em menos de duzentas páginas, mas dessas, no mínimo cento e cinquenta eram dedicadas à questão de saber-se não se o réu é culpado mas sim do que ele é culpado. Henry Miller escreveu, a respeito de Simenon: “Eu não imaginava que fosse possível ao mesmo tempo ser tão popular e escrever tão bem”. De fato, foi traduzido a 55 idiomas, foram feitas 53 adaptações cinematográficas e incontáveis versões televisivas de sua obra. Para o público brasileiro, além de inúmeras edições antigas, há novas edições de vários Maigrets e romans durs da Companhia das Letras, com traduções cuidadosas de André Telles (duas vezes Prêmio Jabuti) e Eduardo Brandão (também tradutor de Bolaño).

Maigrets
Após produzir, por 10 anos, romances e novelas policiais, resolveu dedicar-se a desenvolver seu inspetor Maigret, o que fez ininterruptamente por dois anos com sucesso ilimitado. Mas ao final desse tempo, resolveu que os “Maigrets” não estavam à altura da sua força literária, e entre 1935 e 1941, voltou-se para os romances duros, de maior densidade e permanência. Mudou de ideia novamente após alguns anos, e recomeçou a produzir Maigrets com renovada intensidade.

“Se quiseres pintar um bambu, comece por tornar-se, você mesmo, o bambu”, dizia um antigo pintor chinês. Simenon imaginava-se na pele de gente comum, que por acaso comete atos irracionais, violentos ou até criminosos. Aqui sim, compartilhava com Joyce uma fascinação incansável com seres humanos e seus sentimentos, motivos, intrigas. Não amava seus personagens — amor não tinha nada a ver com sua literatura — mas interessava-se genuinamente por eles. Não era o ser social que o intrigava, e sim o homem nu. Simenon dizia querer descobrir o que o homem via quando seus captores o obrigavam a se olhar no espelho. Logo após ser confrontada por Maigret, Anna Peeters, que assassinara Marguerite em Maigret entre os flamengos, muda de atitude: Ela agora parecia orgulhosa de seu gesto. Reivindicava toda a responsabilidade. Assumia a premeditação. Essa personagem, que nas primeiras 120 páginas mantinha uma postura e discurso de inocência, ao ver-se descoberta, desnuda-se de tudo que não é sua essência.

O autor também não se esquivava do espelho quando era sua vez. Após a morte da mãe, com quem teve uma relação difícil, escreveu o brutalmente honesto Carta para minha mãe. Há exemplos dolorosos:

[…] você teve um gesto que, de um lado, me magoou muito, mas por outro, obrigou-me a te admirar. Na minha escrivaninha você deixou um envelope com todo o dinheiro que eu havia enviado a você, mês após mês, durante esses cinquenta anos. Você não queria ser pobre, queria garantir-se um fim digno, mas não queria dever nada a ninguém , nem mesmo e acima de tudo a teu filho.

Apesar da velocidade de produção, Simenon utilizava recursos literários sofisticados que o distanciavam do padrão na literatura policial. No caso dos Maigrets, as narrativas são quase sempre em terceira pessoa, onde se vê o que o protagonista vê. Os romances abrem com um corpo que cai e pouco antes do final, descobre-se quem é o culpado, mas não é o enredo que acelera o coração do leitor. O desenlace não impressiona o inspetor, porque o culpado tanto pode ser quem se suspeita desde o início como alguém inteiramente novo no elenco. Julian Symons afirmava que os Maigrets não eram de fato romances policiais, porque a Simenon pouco interessava a investigação do crime. Enquanto seus “colegas”, igualmente imortais, Sherlock Holmes e Hercule Poirot, lançavam mão de truques e surpresas para extrair confissões, Maigret fazia o papel de espelho mediante o qual o culpado se desnudava. Sua linguagem é simples e direta, o que dá ao narrador uma pretensa objetividade. Com isso, o leitor é surpreendido com as múltiplas dimensões dos personagens e suas vidas orquestradas pela subjetividade.

Quando observamos o trabalho de Maigret, não vemos a violência escancarada, nunca testemunhamos o crime, apenas sentimos a comichão inicial para resolvê-lo, mas ao final a emoção é de tristeza, nunca de triunfo. O que interessa a Maigret — o que interessava a Simenon — são os personagens e o mundo em que se movimentam. O assunto central nos Maigret é o próprio Maigret, já que o vemos com mais clareza do que qualquer personagem.

Romans durs
Simenon afirmou várias vezes que merecia o Prêmio Nobel, mas não por seu carro-chefe, os Maigrets e sim por seus romans durs. Segundo ele explicou em suas memórias,

Assim como os grandes naturalistas, eu gostaria de enfocar certos mecanismos humanos. Não as grandes paixões. Não questões de moral e ética. Só estudar a maquinária menor que pode parecer secundária. É isso que tento fazer em meus livros.Por essa razão escolho personagens que são comuns em vez de excepcionais… o homem nu em contraponto ao homem vestido.

Os romances duros seguem um enredo básico linear: um homem (ou mulher) em crise abandona sua vida — seu emprego, família ou cidade, ou tudo isso — e entrega-se a alguma obsessão. O crime é cometido quando essa pessoa chega ao seu limite. De acordo com John Banville, os melhores romans durs de Simenon figuram também entre os melhores romances do século 20. A causa do crime é desvendada através da investigação psicológica dos envolvidos. A conclusão, apesar de lógica, não é necessariamente reflexo da ação no enredo, mas sim do estado mental dos personagens. As aparências do cotidiano são desconstruídas sem cerimônia por Maigret. O catalisador pode ser um evento inesperado ou um impulso que saiu não se sabe de onde. Os enredos são duplos: o que corre pela superfície contribui, mas não determina o final. A verdade é revelada aos poucos, o que contribui para o suspense, mas não há como evitar a tragédia: tudo é destino, afinal. Para Simenon, seres humanos são a soma de seus impulsos e comportamentos; o hábito não os limita. Ninguém é autor de sua própria vida; a crença de que são responsáveis por suas ações é uma ilusão. Se existe uma ideia central em seus romances duros, é a irresponsabilidade. É no pessimismo, na certeza de que não há redenção possível que reside a dureza desses romances.

Nos Maigrets não há como evitar o crime, mas o comissário oferece uma forma de redenção. Em sua profunda aceitação da ambiguidade inerente ao homem está a expectativa da predestinação, porém longe de qualquer crença religiosa. Trata-se do destino individual, onde um investigador-confessor pode ter um papel preponderante. Em mais de um romance, Maigret pergunta: “Detetives não são às vezes restauradores de destinos?”. Em toda sua literatura, a religião não entra como questão. Tanto Maigret como Simenon foram criados em famílias católicas conservadoras, e ambos deixaram a religião para trás na adolescência, mas Maigret é um homem fiel à moral e à ética, que ajuda aos que encontra em seu trabalho a fazerem as pazes com seu destino.

Destino
Mas Georges Simenon viveu em um mundo religioso, uma sociedade que não perde uma oportunidade para falar do pecado — do outro, de preferência. Quando terminou a Ocupação (nazista), a comissão de expurgos do sindicato de escritores franceses debruçou-se sobre o histórico de Simenon, o que o assustou tremendamente. Alguns autores, pela recomendação da comissão, foram impedidos de publicar, o que o levou a emigrar em 1945, assim que pôde, aos Estados Unidos, com toda sua família. Isso porque durante a Guerra o autor já famoso tinha dado passos tanto na direção do nazismo como da Resistência. Por um lado, assinou contratos milionários com uma empresa sabidamente operada pelos nazistas para produzir quatro filmes de seus livros. Ao mesmo tempo, dedicava muita energia a um centro de refugiados. Alan Riding, autor de Paris a festa continuou, uma das obras mais equilibradas sobre a vida cultural durante a Ocupação, concluiu que Simenon não era nem colaboracionista nem parte da Resistência, era simplesmente um oportunista.

A preocupação com valores democráticos atualmente gera menos likes do que a acusação de misoginia, repetida periodicamente contra Simenon. Do ponto de vista literário — o único passível de discussão — ele criou grandes personagens femininas, algumas tão fortes que causam medo com seu simples andar. Se umas sofrem abuso de seus homens, e outras os dominam ou matam, é porque a literatura é feita da vida. Em seus livros, sexo não tem uma abordagem romântica e sim naturalista, analítica, sem juízo de valor. Seria esperado que feministas aplaudissem a energia potencial erótica que Simenon depositava em algumas de suas personagens femininas.

Em suas obras, não há sexo frágil, há princípios frágeis. O crime não tem nada de extraordinário, nem em seus perpetradores, nem em seus juízes. Em A gafieira de dois tostões, a polícia bloqueia o acesso a uma casa onde houve um assassinato. Isso irrita os vizinhos, especialmente por um crime tão insignificante que mal saiu no jornal. Em Maigret e o matador, quatro homens jogam cartas em um café e escutam uma comoção do lado de fora. Da porta, percebem que se trata de um assassinato, mas não saem, porque está chovendo. Trata-se de culpa, dos limites borrados entre culpa e indiferença, entre culpa e obsessão, da dificuldade de estabelecer-se a culpa sem sombra de dúvida.

O comissário Maigret aparece em menos de 100 dos quase 500 romances de Simenon, mas sua forma de pensar permeia a obra toda, como se Maigret soprasse a Simenon o que tem visto e aprendido. Assim como o autor, a obra não dá respostas, exceto talvez a de que não há respostas. Somente Maigret seria capaz de desvendar Simenon.

 

Prateleira Simenon *

Maigret entre os flamengos

Um crime na Holanda

A gafieira de dois tostões

O quarto azul

O finado Sr. Gallet

O caso Saint-Fiacre

Sombras na Place des Vosges

A dançarina do cabaré

A neve estava suja

A cabeça de um homem

Inferno a bordo

A noite da encruzilhada

O cachorro amarelo

O enforcado de Saint-Pholien

Pietr, o letão

O cavalariço da Providence

*Todos publicados recentemente pela Companhia das Letras.

Georges Joseph Christian Simenon
Nasceu em Liège (Bélgica), em 1903. Publicou quase 500 livros. Seu personagem mais conhecido é o comissário Jules Maigret, que aparece em cerca de 80 de seus romances. Além do número de traduções, que não para de crescer, dezenas de livros seus foram levados ao cinema e à televisão. Viveu na América do Norte no pós-guerra, época em que atingiu seu ápice literário, segundo críticos e ele próprio. Na década de 1980, parou de escrever ficção, e ditou 12 volumes de memórias. Faleceu aos 86 anos, na Suíça.
Vivian Schlesinger

Escritora, tradutora e mediadora de debates literários. Autora do livro de poemas Papaya na madrugada.

Rascunho