Mentirosos. Assim poderia ser chamada a maior parte dos críticos que resenharam o livro Olhos de Madeira para jornais e suplementos brasileiros.
Mas longe de mim querer ofender os colegas. Apenas e tão somente quero, desde o princípio, me classificar na mesma categoria que estou incutindo a eles. Afinal de contas, esta resenha — ou este rascunho, como preferirei — em papel jornal muito pouco ou quase nada dirá sobre o conteúdo do livro do historiador italiano Carlo Ginzburg.
Fragmento de um diálogo:
– Alô.
– Alô?
– Escuta, meu rapaz, você não vai mandar o texto, não?
– Olha, veja bem, é que, sabe o que é? Esse livro é composto de nove ensaios sobre a distância. A complexidade de seu conteúdo é muito grande; as referências são diversas. Não acho que vá conseguir terminar a tempo.
– Humpf. Eu já imaginava. E para quando vai conseguir?
– Me dá um mês. Em um mês eu te mando.
– Certo.
Um mês se passou e eu bem que tentei destrinchar ao máximo as idéias interligadas dos ensaios de Ginzburg ao Rascunho. Tive, possivelmente, mais tempo do que a maioria dos críticos e resenhistas farsantes que escreveram sobre a mesma obra em outros jornais. Não interessa. Os olhos de madeira são meus ao conseguir enxergar apenas instantes de lógica de uma obra bem servida de idéias e, conseqüentemente, complexidades.
Então me entreguei à farsa compactuada pelos colegas críticos e assumo que meus escritos sobre a obra não passam de um rascunho. Talvez viesse a ser melhor elaborado com mais reflexão e aprendizado. Não é o caso. Assim como não quero desprestigiar meu trabalho. Talvez o olhar inocente e ignóbil sobre as letras de Ginzburg simplesmente reforce sua tese de distância entre culturas e comunidades, criando, assim, um cenário que se encaixe a um tipo de leitor de primeira viagem.
Basta de elucubrações
Conheci Ginzburg em 1998, através de O Queijo e os Vermes. Não tive oportunidade de ler o livro, mas, como é de praxe, li alguma coisa a seu respeito e discuti com amigos. O Queijo, um dos seis livros do historiador publicados no Brasil, representa com exatidão o que é seu conceito de “micro-história”. O escritor se apropria da história de um único personagem na tentativa de representar o todo. Afinal, usando suas palavras: “Com um microscópio se pode ver e examinar até um elefante”.
O Queijo… é um livro mais romanceado que Olhos de Madeira. O título deste é uma referência à obra de Collodi, Pinóquio, e remete à imagem da criação que vislumbra o trabalho do próprio criador. “Grandes olhos de madeira, por que olham para mim?”, diria o carpinteiro Gepetto à sua criação.
Os ensaios de Olhos… buscam jogar luzes sobre elos entre diferentes momentos da história da civilização e o pensamento do homem ocidental. Ginzburg se vale de um sem número de referenciais para provar que o conflito de gerações se deve —com certa obviedade, até — à distância entre os homens.
O ensaio que me pareceu mais representativo sobre a obra é o primeiro, Estranhamento, em que o autor fala justamente sobre o estranhamento (na falta de um sinônimo) do homem ao entrar em contato com o modo de pensamento de outros de sua espécie que viveram em épocas diferentes.
Mais tarde, os textos tornam-se uma sucessão de reflexões sobre a dicotomia entre judaísmo e cristianismo, passando pelos diferentes usos do mito na civilização e culminando em uma passagem do Papa por uma sinagoga em Roma.
Não seria produtivo criar uma espécie de “resumo comentado” sobre os ensaios que compõem Olhos. O texto de Ginzburg é praticamente palatável, mas construído sob a forma do ensaio formal, recheado de citações e notas que pouco dizem aos não-estudiosos do assunto. O cerne da questão na minha leitura pueril do livro, é que o conhecimento despejado pelo historiador nas páginas da obra muitas vezes passa à guisa daquilo a que ela possivelmente se propõe, que é (talvez) despertar o pensamento do leitor sobre a incapacidade do homem em entender sua própria ritualística através do tempo.
E por quê tal dificuldade? Bem, Ginzburg é, simplesmente, um dos maiores nomes em sua área, senão o maior. Seria como discutir música com Mário de Andrade ou até, ha ha, magia com Paulo Coelho. Então esta leitura crítica não está disposta sobre o conteúdo da obra, mas na maneira que o leitor comum se dará com ela.
Os maiores exemplo estão, novamente, nos diversos textos que se seguiram após a publicação do livro no Brasil. Resenhas e resenhas absolutamente superficiais sobre uma obra tão complexa, que detinham-se em fragmentos do pensamento do autor. Uma ofensa, quase! Não, que nada, apenas a dificuldade jornalística de se depreender um punhado de idéias em três mil caracteres.
Então não deixa de ser no mínimo curioso que o fenômeno maior sobre qual Ginzburg discorre — a distância — seja especificamente o objeto da impressão que eu tive ao terminar o livro. Me senti distante deste grande historiador ao estar afastado de grande parte do conhecimento disposto por ele em suas páginas. E de que serve um conhecimento encarcerado pelas grades da ignorância?
Bem, não quero supor que o leitor seja tão ignorante quanto eu. Espero que não seja. Mas a minha tese é de que as “grades da ignorância” podem ser também as grades da inteligência, à medida que um intelecto fantástico como o de Ginzburg se afasta de mentes menos privilegiadas por si só.
Um dos resenhistas brasileiros que interpretou Ginzburg aos jornais disse que “quem tiver nervos fortes para resistir ao turbilhão de referências será recompensado. Ao fim de cada texto, o leitor volta a pisar em terra firme carregando consigo várias boas idéias”. Mas não. Não adianta o leitor se colocar em uma maratona e seguir em frente para, no fim, chegar ao bálsamo da sabedoria. É inútil se deparar com uma série de imagens desconhecidas, observá-las, e no fim repetir “ah, agora eu entendi”. Elas permanecerão desconhecidas, a menos que o interesse do leitor seja destrinchar cada partícula do pensamento — mas isso é trabalho para outro dia.
Então não basta reverenciar a obra de Ginzburg. Como qualquer outra, ela é passível de crítica, e a crítica se faz sobre a maneira que o autor escolhe em discutir seus temas. Não tenho dúvidas de que uma série de acadêmicos se regozijará com os textos do historiador. Mas lamento em saber que grande parte do seu público perderá porções do que, não tenho dúvidas, é de uma importância ímpar.
Não posso deixar de afirmar que a grande literatura é uma literatura simples. Há pouco citei Mário de Andrade, dos maiores críticos musicais que se viu, para mencionar apenas uma de suas facetas. Para “respirar” entre os ensaios de Ginzburg, tive à mão os “Contos Novos” de Mário. É engraçado. Na contracapa do livro, o nobre Alceu Amoroso Lima fala sobre a inventividade de Mário em lançar uma escrita genuinamente brasileira no começo do século 20. E ela está lá, esperando que os mais destreinados olhos a devorem com a facilidade que uma criança come um algodão-doce. A Carlo Ginzburg, quem dedico este rascunho, seria mais justo oferecer — sem ironias — uma bela rapadura.