Por onde andou meu coração é o livro das memórias de Maria Helena Cardoso, sua estréia na literatura em 1967, aos 64 anos de idade. Depois vieram Vida, vida, em 1973, e a obra derradeira, Sonata perdida, em 1979. A autora morreu em 1997, aos 94 anos.
O gênero memorialista é um texto dependente — depende do que o leitor vai retirar daquilo que lhe é revelado da vida de uma outra pessoa. Mas temos aquelas biografias que não se resumem ao umbigo do ilustre biografado e descortinam um universo dentro do qual foram urdidas. Daí o leitor será envolvido pelo contexto histórico e a biografia, memória, é revestida de história daquele microcosmos onde está situada a personagem, as dimensões da nação e suas facetas culturais, sociais, políticas e psicológicas. Entre esses caminhos, o leitor pode escolher um por onde conduzirá os demais aspectos de sua leitura. Tudo isso sobre o olhar vigilante do tempo a emprestar realismo às cenas. A memória traz ao leitor o recorte de um mundo que o tempo transformou, recria um mundo que não foi criado pela ficção, mundo onde o que importa é o ser humano e suas ambições, o ser humano e a luta pela sobrevivência, o homem diante das emoções, ora a impulsioná-lo, ora a atemorizá-lo. Digamos que orientado pelo que a autora conta, o leitor consiga visualizar o panorama econômico da época, também pode optar pela investigação dos gêneros e examinar o papel da mulher naquela sociedade. Desse modo dissipa-se a névoa do fuxico que envolve os gêneros memória, biografia e até mesmo história.
Maria Helena Cardoso erigiu sua autobiografia sobre elegantes pilares do afeto. Elegantes na forma, mas sem dar relevo aos pudores no que diz respeito ao material utilizado, visto que a essência do gênero está comprometida com o afeto.
Por onde andou meu coração é um livro em movimento, quem comanda essa viagem é o pai da autora, um sonhador que vivia em permanente trânsito. Uma pessoa daquelas que não permitem um cartão ponto a regular-lhe os sonhos. E as tentativas de concretização desses sonhos implicam em movimento que o leitor terá oportunidade de acompanhar.
Desde criança a autora vivia em seguidas mudanças; cigana involuntária, não consegue evitar os domínios da angústia e da melancolia. Mudanças implicam em perdas, materiais e afetivas, além do anúncio do desconhecido. As viagens do pai de Maria Helena serviam para dar-lhe a certeza cada vez maior de que aquele era seu destino. À medida que o tempo passava, maior era seu conhecimento sobre si mesmo, ancorado nessa busca implacável de ser dono de um pedaço de terra, de ser livre. Tamanha obsessão o leva a recalcar sentimentos primários como o medo e o amor. A cidade grande o incomoda, a família passa a viver na cidade enquanto ele torna cada vez maior o espaço entre uma visita e outra. Transforma-se num pai ausente. Se para determinados cientistas sociais, antropólogos e afins, a cidade grande desumaniza, depois do relato de Maria Helena, podemos afirmar o contrário.
As impressões da criança Maria Helena são de arrepiar, e o mais importante, embora o forte seja a questão afetiva, é que não vislumbramos a menor partícula de pieguice. E se você, leitor durão, por acaso se emocionar, lembrar que você também já sentiu algo parecido, não se preocupe, as emoções não são privilégio de a ou b; o importante é permitir que nos invadam.
Enganar a morte
Obrigatória em se tratando do gênero em que o tempo seja o controlador ou aquele que concede o espaço, a forte presença da morte (e seus estragos responsáveis pela melancólica tensão) não permite monotonia alguma ao longo das 572 páginas de Por onde andou meu coração. Ao narrar sem compromisso com a seqüência cronológica, a autora nos leva a crer que tal estratégia seja a tentativa de dar um nó no tempo, de enganar a morte, de se expor ao inesperado.
A história nos permite acompanhar o amadurecimento da autora, desde suas primeiras leituras, o fascínio exercido pelas bibliotecas, sua paixão pela música, para ser mais preciso, pela música clássica, e a necessidade de dividir esse conhecimento com seus amigos. Por onde andou meu coração não se resume à vida de Maria Helena ou de seus familiares, suas memórias se misturam com a de um povo da qual fez parte e de um tempo que os abrigou. A história tem seu início em 1904, quando Maria Helena deixa a Diamantina natal e junto com sua família muda para Curvelo; logo a cena muda para Belo Horizonte e, na seqüência, para o Rio de Janeiro, onde a família foi morar num lugar desprovido de todo e qualquer glamour. Não se demorariam naquele subúrbio, a zona sul seria o próximo endereço.
Importante é o fato de Maria Helena alongar seu olhar para além dos limites familiares: ela registra as cidades por onde passou como uma foto ou um documento que nos é dado a examinar e daí tirar lições. Desse modo a vida política ocupa lugar de destaque na narrativa e acontecimentos que chegaram a nós via sisudos livros de história agora nos são permitidos de forma terna e descontraída. Por favor, apressado leitor, não tente aproximar descontraída com vulgaridade, muito menos superficialidade, por favor!
Como alimentar um pensamento equivocado diante deste trecho, singelo exemplo, paciente leitor, veja:
Quem sabe aplacarei ainda esta grande saudade que não me larga, encontrando depois os que amei e que partiram antes de mim. É a minha esperança. Mas, se tudo não for, então a Vida é somente viver; e morrer, que é tudo, não é nada.
Agora, é quase regra você dizer que determinado livro também pode ser lido assim ou assado; levando-se sempre em conta a maioria do que é publicada, tanto faz que se inicie a leitura pelo começo ou pela página 34, vai dar no mesmo, quer dizer, vai dar em nada. De Por onde andou meu coração muitos dirão que pode ser lido como um romance, será que pode?
Digo que não. Está bem nítida a sinceridade da autora, seus sentimentos se misturam com os lugares, as coisas e as pessoas, com os anos passados, com as recordações e com os mortos, os seus mortos. E se ela morria um pouco com cada um deles conforme afirma, podemos discordar dizendo que também nela sobrevivia um pouco de cada um desses seus mortos. A morte, assustado leitor, é uma sábia compensadora.
A variedade de personagens é outro aspecto a imprimir ritmo à narrativa de Maria Helena Cardoso, os pais sempre lembrados com grande amor, os irmãos Fausto, Dauto, Nono (o escritor Lúcio Cardoso), as irmãs Zizina e Lourdes, as tias Senóre e Tidoce, os não aparentados Hans e Vito. Hans, o primeiro amor sério e a frustração, e Vito, amigo, a amizade mais sólida, amante da música clássica, a morte anunciada, o vazio, o sofrimento. O sofrimento que já lhe era tão íntimo.
Intimidade que começou quando ainda criança, numa das várias mudanças da sua família (da fazenda do Bananal para Montes Claros), vários quilômetros pelo sertão mineiro, ela conta:
Zizina, já grandinha, montava um burro mansinho, e Fausto e eu íamos em dois caixotes de querosene, com janelinha de tela de arame, pendurados, um de um lado e o outro, do outro lado da cangalha de um burro. […] Começou aí, bem cedo ainda, nosso aprendizado com o sofrimento.
O fato de ser um livro de memórias em que as tristezas, as decepções, as dores e as mágoas sejam assíduas freqüentadoras não faz de Por onde andou meu coração uma revanche, tampouco o torna um emblema do pessimismo. O que temos é a música como motor de uma vida, Hans e Vito têm a música em suas histórias, e onde a música ocupa espaço não sobra lugar para sentimento que não esteja comprometido com o seguir adiante.
Devo confessar, caro leitor, que não sou dos maiores apreciadores do gênero. Na maioria das vezes, as histórias interessam mais pelas intimidades reveladas que pelo valor literário, uma fofoca aqui, outra ali, e assim a mediocridade gasta seu miserável ócio. Por onde andou meu coração me permitiu outro olhar, se não me capturou definitivamente para o rol dos seus apreciadores, pelo menos para o círculo dos admiradores de Maria Helena Cardoso, me convidou a entrar. Entrei.