Há um certo refinamento, uma certa elegância na prosa de Silviano Santiago. Sua literatura se pauta pelo cosmopolitismo de quem aprendeu a caminhar pelo mundo da segunda metade do século 20, um mundo ferrado com a marca das revoluções. O reflexo dessas revoluções deu ousadia aos textos. E assim se chega a uma prosa elegante sim, mas formada por debates polêmicos e desafiadores, como a intensidade do sexo e a violência gratuita, passando pelas frustrações políticas.
Todas essas questões estão na gênese ficcional de Silviano. Isso pode ser observado na leitura de Contos antológicos, livro organizado por Wander Melo Miranda e que integra a coleção Obras antológicas da Nova Alexandria. A proposta da coleção que começou com Contos antológicos de Domingos Pellegrini é fazer um passeio por toda obra de um autor, pescando o que há de melhor nela. Isso dá uma excelente panorâmica da obra em questão. E assim é possível mensurar a evolução ou os deslizes de um autor, mesmo diante das chamadas obras antológicas.
No caso específico de Silviano Santiago notam-se algumas obsessões, muitas recorrências. A maestria está no fato de que tais obsessões não constroem uma obra repetitiva. Silviano sabe renovar-se mesmo insistindo em temas já percorridos. E isso, claro, é intencional. É como se o autor quisesse dizer que falamos, debatemos e vivemos os mesmos dramas, e isso desde sempre.
Os dramas de hoje, enfim, foram vividos também por nossos antepassados mais longínquos. Um exemplo é o preconceito. Aqui ele se apresenta em seu sentido lato. Em outras palavras, os preconceitos são mesmo conceitos preestabelecidos por nossos medos e fúrias. Isso fica claro logo de cara, no conto Futebol americano, que abre o livro. Enquanto “o carro seguia na direção de El Paso” o narrador, um contista, fala da atração por David, um jogador de futebol americano que segue ao seu lado mas é seu mais intenso oposto. O grande tema do diálogo dos personagens é uma metáfora entre dor e prazer — o prazer da atração mútua e a dor de suas contradições pessoais.
O homossexualismo, aliás, é recorrente na obra de Silviano. Nestes contos proliferam homossexuais. Mas não se trata de uma literatura gay, como pode parecer aos menos avisados. Silviano trabalha o tema como uma relação humana qualquer, com suas neuroses, suas desavenças, seus encontros, seus sonhos. Enfim, estamos falando de amor, talvez o mais complexo e literário dos sentimentos.
O maior indício desta intenção é a descrição das cenas de sexo. Tudo é sempre insinuado, sem qualquer tom explícito que possa chocar olhos e ouvidos mais sensíveis e marcados pelo preconceito. Volta aqui a elegância de um autor interessado mesmo em discutir o homem em sua inteireza. E aí entram todos os sentidos, pois todos os seus personagens parecem sempre em fuga da dor, em busca do prazer. E esta busca custa muitas feridas e muitas cicatrizes.
O primeiro livro de contos de Santiago, O banquete, foi publicado em 1970. Naquele tempo, ele já era um conceituado professor e crítico literário. Já tinha corrido parte do mundo. Essa experiência surge no livro como uma destacada característica que se perpetuará por toda sua obra. Dele, dois contos aqui publicados — O banquete e Traições — se voltam à discussão de outras artes, de outras culturas e de outros países, temas dos mais que caros no trabalho ficcional de Silviano. O primeiro conto olha a obra de André Gide de um prisma novo. Fala das armadilhas montadas pelos autores. Tema que também se mostra em Todas as coisas à sua vez, um preâmbulo do romance Em liberdade, talvez. O segundo conto se apóia em um passeio quase turístico por Nova York para debater a função da arte.
Neles se enfeixam as obsessões pelo olhar estrangeiro e pelos primados da arte. E aí se apresentam duas afirmações muito sólidas: a arte tem requisitos sociais, reacende fogueiras para que os homens não se entreguem à passividade. O estrangeiro precisa olhar os outros povos apoiados no mesmo patamar. É preciso sempre estar liberto do famoso complexo de vira-lata preconizado por Nelson Rodrigues.
Acertou quem apostou numa freqüência autobiográfica do ficcionista. Parece que todas as experiências vividas e lidas pelo escritor estão na pele dos personagens. E tais experiências se dividem entre Murilo Rubião e jazz. Cidadão aberto para o mundo, ele está sempre de volta a uma Minas que, já dizia Drummond, não há mais. A ele interessa o universo mítico tão explorado por Rubião sim, desde que embalado pelos acordes de Keith Jarret.
Assim os cenários se escrevem com aridez de desertos. Mesmo na exuberância natural da serra fluminense, tão forte no conto Uma casa no campo, em que tudo se mostra vivo, mas paradoxalmente muito seco. Outra vez surgem os desafios da metáfora. Seus personagens caminhando por navalhas, têm sentimentos fortes e personalísticos, sofrem com dramas tão profundos que deitam aridez por onde passam.
Não estamos diante de uma literatura fácil. A ficção de Silviano Santiago é intelectualizada e corajosa. Ao mesmo tempo em que busca no mundo o sentido da vida, volta à terra catando sossego. Só que sempre está diante da dor e do prazer. Letras escritas entre a academia e o sertão.