A dialética da fé

O silêncio, romance do católico Shusaku Endo, narra a saga dos missionários jesuítas no Japão do século 17
Shusaku Endo, autor de “O silêncio”
01/08/2011

Japão, século 17. Expulsos pelos poderosos locais, padres jesuítas voltam ao país na tentativa de salvar o que resta da fé católica nas comunidades mais pobres. Não nutrem esperanças de resgatar a crença que foi hegemônica entre as classes mais abastadas, agora ferrenhos opositores dos católicos. Como missão suplementar os padres Sebastião Rodrigues e Francisco Garpe precisam saber o paradeiro de outro jesuíta, Cristovão Ferreira, que não se tem certeza se apostatou, morreu ou ainda está preso.

Todos os transtornos — tempestades, frios, prisões, fomes — que enfrentam os personagens do romance O silêncio, tensos por si só, são na verdade uma representação viva da pressão cotidiana da dialética da fé. O crente não consegue nunca uma prova concreta do objeto de sua crença. Acredita por fortes condições que encontra pelo caminho. Isso, no entanto, não o priva da dúvida.

No caso específico do catolicismo, toda esperança está guardada para uma passagem de glórias no céu, junto a Deus e a Jesus Cristo. O próprio Cristo provou o sacrifício e o martírio para demonstrar a bênção da vida celeste. No entanto podem os homens comuns, representados aqui pelos personagens de Shusaku Endo, suportar tais privações? A pergunta que perpassa todo o texto é o ponto de partida para toda a discussão que o romance incita.

A guerra permanente entre crença fervorosa, quase cega, e a apatia mística, ou mesmo a fúria anti-religiosa, já encantou outros autores. O mais festejado deles, Graham Greene, em um de seus mais conhecidos textos, O poder e a glória, trata da perseguição insana aos religiosos do México. No Brasil o mais recente exemplo desta discussão se dá no excelente romance O centésimo de Roma, de Max Mallmann. Shusaku Endo, por seu turno, traz cores novas ao debate ao deixar todos os sentimentos marcados pelos preceitos místicos de cada crença, livrando-os dos componentes políticos que terminam por infestar tais narrativas.

Lançado no final da década de 1960, O silêncio ganhou repercussão mundial a partir da tradução inglesa feita por William Johnston, professor da Universidade Sophia, de Tóquio, onde morou por quase toda a vida. Foi a partir deste texto que Mário Vilela fez a versão para o português. Aparentemente não houve perda substancial das discussões teológicas e filosóficas, pois Endo privilegia a descrição dos fatos ao invés de se valer de longas descrições, de diálogos infindos. E mesmo quando usa o recurso do diálogo o faz com uma singeleza que traz o debate ao nível mais primário do entendimento.

Neste aspecto se destaca a grande metáfora do silêncio. Constantemente os personagens são envolvidos na mais completa falta de som que brota das montanhas, do mar, das paredes de cabanas misérias, das grades da prisão. Também se questionam com freqüência sobre a ausência de respostas às angustiantes perguntas que fazem a Deus. O silêncio marca-lhe a carne, fragiliza suas certezas.

Ousadias modestas
Do ponto de vista meramente literário, Endo trabalha com ousadias modestas, mas profundamente significativas. A mais visível delas diz respeito ao foco narrativo. Há um começo quase burocrático, onde se conta, sem muita precisão histórica, da presença dos jesuítas no Japão e a viagem do protagonista Sebastião Rodrigues e seus companheiros, Francisco Garpe e João de Santa Marta. Logo esta narrativa se subverte numa reviravolta emotiva com as cartas escritas por Sebastião contando de sua peregrinação por montanhas, mares e aldeias miseráveis. Finalmente, numa outra guinada bem discreta, chega-se à narrativa na terceira pessoa, com um narrador onisciente. Todas estas mudanças, no entanto, dinamizam e enriquecem o romance.

Continuando a falar de ousadias, sua presença mais gritante está nos desafios à verossimilhança. Além de deitar pouca atenção à rígida verdade histórica, intencionalmente desrespeitando datas e seqüências de fatos, Endo brinca com o curso natural da vida. De um momento para outro Sebastião está dialogando em japonês fluente com os camponeses. Isso pode até melindrar o leitor mais atento, mas logo ele irá perceber a intenção do autor. Antes de se perder em detalhes às vezes inúteis ele optou por transgredir, mas tudo na defesa de seu objetivo primário, dissecar a cruel insanidade que envolve os debates intransigentes sobre as questões religiosas.

Até os personagens são criados a partir desta perspectivas religiosas. Os camponeses, fervorosos cristãos, trazem o perfil dos crentes iniciais, os que conviveram com o próprio Cristo, os que resistiram e enfrentaram a doentia repressão dos romanos. São resignados e se entregam ao sacrifício com um altruísmo digno de mártires.

No entanto, todas as contradições que envolvem os dramas religiosos sintetizam-se nas figuras de Sebastião, o padre em permanente conflito com o silêncio de Deus, Inoue, o samurai que foi cristão e se transformou no mais intenso perseguidor dos religiosos, e Kichifiro, um pária que veste andrajos e vive entre a traição e o arrependimento. Os três, em suas peles, representam a dura realidade da crença como uma construção íntima e intransferível.

Os cenários também estão envolvidos nesta guerra infinda entre o novo e o arcaico. Todo o país está degradado, em ruínas, as opulências estão cada vez mais limitadas ao espaço das elites, enquanto a natureza cresce em sua exuberância e magnitude. Parece que constantemente o autor nos avisa do poder construtivo de Deus e da capacidade destrutiva dos homens, mas, paradoxalmente, também a natureza se esmera em suas fúrias, com suas tempestades, suas ondas gigantes, enquanto a humanidade se avoluma na defesa da crença que fomenta.

Uma narrativa paradoxal, construída com mais falências que vitórias. Este jogo, por outro lado, é que faz apaixonante cada momento do livro. Pouco importa se seus heróis venceram ou falharam em tudo. O fundamental é a perseverança com que se entregam às paixões: Sebastião e a crença, Inoue e a repressão, Kichifiro e a traição. Todos têm uma sina e a cumprem com resignada determinação, sem negarem a dialética que incorporam.

Caso se busque na leitura de O silêncio um sentido para toda narrativa, naturalmente ele se prende a uma discussão que nunca acaba. Qual a função das crenças? Shusaku Endo não aponta verdades, nem caminhos, apenas nos mostra como tudo decorre. E aí repousa a grande qualidade de sua literatura, provocar os leitores a olhar sua intimidade, o que mais profundo abriga em seu âmago.

Uma leitura imprescindível e arrebatadora, enfim.

O silêncio
Shusaku Endo
Trad.: Mário Vilela
Planeta
284 págs.
Shusaku Endo
Nasceu em Tóquio, Japão, em 1923. Reconhecido como um dos mais importantes romancistas do século 20. Por toda vida teve uma relação de conflito com sua condição de católico. Sua obra questiona o passado histórico em contraste com o mundo moderno, explorando os dilemas existentes entre Ocidente e Oriente, fé e descrença, tradição e modernidade. Entre seus romances destacam-se Escândalo e O samurai. Escreveu também estudos teológicos, ensaios, peças de teatro e roteiros cinematográficos. Morreu em 1996.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

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