Toda mudança “no tempo” é uma mudança “no espaço”, lembra-nos Norbert Elias. Impossível ficar em desligamento no espaço enquanto o tempo escoa. O coração bate, respiramos, digerimos; células crescem, morrem. A mudança pode operar-se em nós num ritmo lento, mas nem por isso menos contínuo.
O tempo é como o vento. Não o vemos; vemos os ramos que ele sacode, a poeira que ele faz subir, nunca o vento mesmo. Sabemos também que a felicidade queima o tempo, que os dias felizes passam depressa, e que a miséria o alonga. A literatura é uma das formas de captar, sentir e exprimir esse tempo subjetivo (interior e psicológico).
Num romance separam-se sentido e vida, e, assim, o essencial e o temporal. Walter Benjamin se arriscou a dizer que toda a ação interna do romance não é outra coisa senão “a luta contra o poder do tempo”, da qual emergem recordações e expectativas. O mérito de A restauração das horas, de Paul Harding, reside exatamente no manejo do tempo.
Harding põe em foco alguns momentos formadores de três indivíduos — filho (George), pai (Howard) e avô (não nomeado). Interessam-lhe as lacunas da existência, não as infinitas formas de as preenchermos; e as reminiscências aparentemente miúdas que o protagonista George Crosby coleciona estão repletas de exatidão e poesia.
Horas antes de morrer, George começa a alucinar. Do leito (alugado) de hospital, posicionado no meio da sala de jantar de sua casa, ele assiste a desabamentos, implosões e rupturas. Vê ao redor fotos de formatura, recortes de jornal, ferramentas enferrujadas e engrenagens dos relógios que estivera consertando.
George olhou para o alto, três andares acima, vendo as vigas expostas do telhado e as capas gordas de isolante prateado que corriam entre elas. (…) O teto desabou, trazendo uma avalanche de madeira e pregos, tela de alcatrão, telhas, isolante. Ali estava o céu, coberto de nuvens de topo plano que pairavam feito uma frota de bigornas cruzando o azul.
Ordem e estabilidade
Os dados “objetivos” estão reduzidos ou em segundo plano. Nas primeiras páginas, em apenas 17 linhas, temos um resumo quase curricular da vida de George: casou-se, mudou-se, foi metodista, sobreviveu a ataques cardíacos, fez mestrado em pedagogia, voltava sempre ao norte para pescar, consertou relógios por 30 anos, mimou os netos, contraiu Parkinson, diabetes e, por último, o câncer de rim.
As informações constituintes do personagem Howard, pai de George, também são menos que básicas: ele ganhava a vida dirigindo uma carroça de madeira, transitando por estradinhas vicinais, vendendo material de limpeza e higiene pessoal. Funileiro, também consertava panelas de alumínio. “Andarilho, latoeiro, mas sobretudo baterista de escovas e esfregões.”
O pai de Howard (avô de George), um coadjuvante minimizado, é pastor com timbre de poeta. Do ponto de vista de Howard, os sermões do pastor eram “mansos e vagos”, e os fiéis caíam regularmente no sono, sentados nos bancos. “Não havia correspondência entre esses sermões ineptos e os escritos apaixonados, obsessivos, até, que ele produzia debaixo do teto inclinado.”
Harding funde os pontos de vista de quatro narradores (três personagens em primeira pessoa e um onisciente), fazendo com que todos transportem — e transmitam — a certeza de que somente o essencial permanece. Há material para um grande painel, para uma rica narrativa linear, para uma trama forte, que poderia ser potencializada, por exemplo, pelo drama da epilepsia de Howard, que aterrorizava esposa e filhos.
Mas o autor opta por uma direção nada convencional: o romance se desdobra de maneira impressionista, interconectando o passado e o presente, a vivência e a alucinação; e criando significado e ressonância emocional por meio de imagens poéticas e observações penetrantes, que transformam o tempo-espaço numa espiral psicológica.
Além da estrutura complexa, Harding luta por escapar da idéia que normalmente se tem de uma construção premeditada de personagens. As digressões oniscientes são tão econômicas que limitam a reflexão analítica. George e Howard são construídos com observações íntimas sobre dimensões muito particulares de suas respectivas existências.
Assim, somos levados a entender: o simbolismo contido no colapso do universo (a casa) de George, sujeito fascinado por ordem e estabilidade tanto quanto pelos relógios que restaura; e, por contraste, perceber que a harmonia de Howard com as florestas e os campos seria devastada — numa cena, aliás, bela e torturante — por um ataque epilético ocorrido em casa diante da família atônita.
Vaga solidez
Meus comentários podem dar a impressão de que pouco ou nada acontece em A restauração das horas. Não é verdade. Há algumas cenas impactantes e efetivas do ponto de vista narrativo. Aquela em que Kathleen, esposa de Howard, leva George ao hospital depois de ele ter sido mordido por Howard durante um ataque epilético, possui força bruta. As cenas de interação entre os membros da família ao redor da cama de George também são ricas em dramaticidade.
No entanto, estas e outras cenas representam momentos transitórios dentro do romance, da mesma maneira como talvez tenham ocorrido “na vida”. O que realmente importa, ou o que Paul Harding está buscando é o efeito cumulativo que aqueles pequenos momentos, aquelas observações, aqueles minifragmentos tiveram na vida de George e de Howard.
Harding é tão especioso quanto específico em suas escolhas, como se quisesse nos dizer que o tempo (dentro e fora do romance) é uma experiência imaginativa visceral. Ao dar ênfase na dimensão “configuracional” (no dizer de Paul Ricouer), a trama conecta também eventos psicológicos. Narrar e acompanhar uma história é se dar conta das ocorrências para delimitá-las.
O final está dentro do começo ou o começo está dentro do final? Não importa. O que importa é que a trama gera ação humana não apenas dentro do tempo como também dentro da memória de quem acompanha a narrativa. Trama e memória são elementos temporais em planos diversos: o plano de George/Howard, o de Harding, o da escrita, o do leitor etc.
Na verdade, Harding nos força a ler seu romance exatamente da maneira como ele o elaborou, o que pode ser visto como uma limitação técnica, na medida em que não nos é dada a oportunidade de criar demandas sobre o não escrito, sobre as lacunas não ocupadas, sobre as indeterminações não resolvidas e sobre os atos mal representados.
Neste sentido, o “pecado” cometido por Harding seria o excesso de coerência interna. Em termos lógicos, a subseqüente realização ou não realização de possibilidades que existem na história resulta inalcançável. A conexão dos eventos encerra-se numa zona de indeterminação tendente à totalidade, como se Harding houvesse moldado uma esfera sólida e hermética, porém vaga.
Como essa vaga solidez se manifesta? No exercício às vezes excessivo e prolongado de linguagem. Há frases que se esticam demasiadamente, licenças poéticas que aspiram a uma grandiloqüência desproporcional à extensão (apenas 150 páginas) do livro, floreios tão dispensáveis quanto dispersivos e, o que é pior: apesar do drama psicológico, George parece isento de dores, terrores e dúvidas, o que soa inverossímil.
Périplo de autor
Paul Harding foi alçado à fama com este seu romance de estréia antes rejeitado por todas as grandes editoras americanas ao longo de vários anos. Publicado por fim pela minúscula Bellevue Literary Press, associada à escola de medicina da Universidade de Nova York (NYU), surpreendeu o meio literário com a conquista do Pulitzer de ficção em 2010.
A restauração das horas, aliás, é o primeiro romance de uma pequena editora a vencer o Pulitzer de ficção desde Confederacy of Dunces (1981), de Percy Walker. Consta que Harding soube da conquista visitando o site do prêmio, pois se esqueceram de dar-lhe um telefonema para avisar. Ele era obscuro, sim, mas já havia sido elogiado em resenhas.
O autor, que foi baterista da banda Cold Water Flat, jamais imaginou que seria incensado; e menos ainda que a “operação boca a boca” liderada por sua editora o ajudaria a vender 7 mil exemplares antes do anúncio do prêmio, principalmente entre formadores de opinião.
A batalha era pela divulgação de uma obra que pode ser tudo, menos fácil. Uma história de recordações ruminadas, como esta, não costuma ser palatável para o americano médio. Na superfície, trata-se de um homem morrendo numa cidade da Nova Inglaterra. Mas, no fundo, é mais sobre Howard do que sobre George, se você ler com atenção.
A memória de George é flácida e aleatória. Antes do agravamento do câncer de rim, ele tentara ditar suas lembranças a um gravador. Começou com “meu nome é George Washington Crosby. Nasci em West Cove, Maine, no ano de 1915. Mudei-me para Enon, Massachussetts, em 1936”.
Depois de algumas estatísticas aleatórias, descobre-se que George só foi capaz de pensar em anedotas chulas e ligeiramente obscenas ligadas a façanhas fúteis durante a juventude. Ao ouvir sua própria voz nasalada e chorosa no gravador, ele ejeta a fita e a atira nas chamas que ardiam no fogão.
Descontínuas no espaço-tempo convencional, a maneira de George lembrar reflete a própria estruturação de Harding e vice-versa. O autor interrompe a narrativa periodicamente para criar descrições detalhadas (como um relojoeiro interrompendo um relógio mecânico com o intuito de repará-lo).
As inserções ocasionais de trechos de O horologista lógico (1783), obra atribuída ao (ficcional) Reverendo Kenner Davenport, ajuda a sustentar essa propensão interna da obra: “Nossos grandes relojoeiros aprendem que a poesia reside no processo humano de destilar a civilização da natureza desenfreada”.
Harding disse numa entrevista que estudou o tempo lendo (meta)físicos, filósofos e teólogos: “Estar inserido no tempo é fascinante, e isso se conecta à narração”, diz. “Narrativa nada mais é do que ‘isto aconteceu, depois aquilo aconteceu, e então aquilo outro’. Estamos ligados inevitavelmente a essa corrente.” No entanto, seu talento literário ainda não saltou da simplificação complicada para a simplicidade complexa.