A (des)graça de (sobre)viver

Os portugueses Filipa Melo e Rui Zink importam conflitos que sangram nas páginas dos periódicos e fazem boa ficção
Filipa Melo: a solidão é imensa e para ela há poucos remédios
01/07/2004

A morte dá poemas para jovens.

Se somos mais os mortos do que os vivos
se já só posso amar tantos que amei
com as letras fingidas da memória

se mesmo tu
o meu amor sem tempo
também hás-de morrer na solidão
duma morte real e sem partilha

aos poemas da morte sobrou vida.
(Helder Macedo – Viagem de inverno)

“Drogas no rastro de mais um crime.” “Matou os pais e foi comemorar o aniversário.” “Empregado vinga desaforo com oito tiros no patrão.” “Assassinou a amante e foi buscar conforto na esposa.” “Corpo nos trilhos.” “Marido traído voltou para casa e se vingou no cunhado.” “Comentarista esportivo atropela e mata criança na saída do estádio.” “Some o carro da mulher morta no 34”…

Alguns dos títulos acima são reais e outros são inventados; ou quase. Podem embalar a espera de um ônibus ou ensombrar rostos até que o prato pedido chegue às nossas mãos em jantares domésticos à luz da televisão. As falcatruas (trans)nacionais também ensombram faces e o seu impacto pode ser maior que a dos assassinatos e taras dos nossos tempos. Os jornais amassados debaixo do braço, lidos em qualquer momento em que é possível vencer velhinhos e grávidas que lutam em desvantagem pelos seus bancos preferenciais, conferem enredos para o consumo imediato, sem reflexão. Sobre a indústria cultural, Alfredo Bosi já observou que seus apelos psicológicos são imediatos, tais como o sentimentalismo, a agressividade, o erotismo, o medo, o fetichismo, a curiosidade, que não exclui doses de realismo e conservadorismo, tais produtos excitam mesmo é o desejo de ver (Dialética da colonização).

Dois dos títulos que abrem este texto sintetizam o conflito de obras ficcionais que a editora Planeta acaba de trazer de terras lusitanas ao Brasil: o romance de estréia de Filipa Melo — Este é o meu corpo — e mais um de Rui Zink — O reserva. É fácil perceber nesses livros a importação de enredos das teratologias sociais que os periódicos de grande circulação nos mais diversos países ostentam, é mais interessante, porém, ver as possibilidades de reflexão que eles geram e que contrariam a sua matriz “criativa”.

No livro de Filipa Melo, tudo gira em torno do aparecimento de um corpo desfigurado às margens de um ribeiro. Há vários narradores, personagens que assumem o discurso e a terceira pessoa que se imiscui no pensamento de alguns, gerando bons momentos de discurso indireto livre. O narrador mais obstinado é o médico legista que examina o corpo de Eduarda, uma moça que havia parido e abandonado uma criança seis dias antes de ser morta. Conhecemos o pai da moça, que fica com o bebê, um amante platônico, outro efetivo, este o assassino, a esposa deste e outros. O belo primeiro capítulo deve ser novamente lido depois de encerrarmos a obra, pois ele provoca sutilmente uma reflexão sobre limites a partir de um caso trágico: é o pai da moça que encontra o seu corpo abandonado e avisa a polícia sem ter idéia de que se tratava de sua filha. Ele voltava do trabalho e lembrava-se do neto que conhecera no hospital. Na mesma cena, um cão é atraído ao corpo pela fome e é tragado pelas águas do mesmo ribeiro que contornava Eduarda. É bastante oportuno neste caso o trecho de Orhan Pamuk: “Você não pode embarcar de novo na vida, esta viagem de carro única, quando ela termina, mas se tem um livro na mão, por mais complexo e difícil que seja compreendê-lo, ao terminá-lo você pode, se quiser, voltar ao começo, ler de novo, e assim compreender aquilo que é difícil, assim compreendendo também a vida” (O castelo branco).

No livro de Filipa, a solidão é imensa e para ela há poucos remédios. António Cernelha dos Santos, pai da vítima, é viúvo e preenche a sua vida com pequenos rituais quotidianos. É da linhagem de muitos “heróis” de Lobo Antunes, homens famintos de ternura, incapazes de demonstrar o quanto amam e precisam do outro. Afastou os abraços da filha, mas herdou o neto, não a partir da morte dela, mas da confiança que sobrou do amor. O legista também é só, fala com os “seus” corpos literalmente e provoca sorrisos quando afirma isso em tribunais. Aliás, fala tanto que cansa e, sobre a sua lengalenga, talvez me vingue do cansaço agora… O assassino com nome de flor, Jacinto, não conseguia sequer considerar-se filho de quem era, sempre a esperar mães e pais bem-sucedidos que lhe arrancariam da servidão, casou de repente e passou a compartilhar o seu eu enorme com… ninguém. Há ainda Miguel que ama Eduarda há anos, sem ver possibilidade de comunicar-lhe o seu amor; Alda, esposa de Jacinto, que tem medo de se olhar ao espelho e descobrir de repente que tem sexo… Há Custódia, vizinha de António Cernelha e viúva também, mas ela descobre novas motivações para viver quando assume novo endereço, a casa do vizinho, e nova missão, cuidar da criança abandonada.

São belos os momentos em que a dor do pai que sobrevive à filha, ferindo as leis do senso comum, é sufocada baixinho no quarto — “Ai filha, que nunca mais te volto a ver” — para não acordar o neto que lembra tanto a pequena que ela foi e até ele mesmo, os mesmos olhos, que António só não desconfia serem os do assassino. Condenado aos gestos repetidos que suavizam o vazio da casa e do eu, o personagem vê a sua vida invadida por estranhos, a vizinha e o neto, só que eles ainda não preenchem as necessidades de afeto. A casa é a lembrança do fracasso de ser, aliás, o legista também não tem casa, só a sala onde investiga o silêncio, adeus conforto dos espaços amados, adeus Bachelard.

António Cernelha é um personagem rico, mas o preferido do romance é o médico legista. Metade da obra é dele, isto porque às narrações dos outros, alternam-se as suas. É aí que o problema surge, pequeno, porque o livro, apesar dos lugares-comuns e pieguices desse narrador, é bom. Há obviedades do tipo: “Porque desde então cada cadáver que vejo é como um espelho que me põem à frente, e que me lança, aos gritos, imobilizado na maca elevatória: ‘Olha a tua morte. Olha-a de frente porque a seguir és tu. (…) E eu não me esqueço de ninguém”. (p. 22). Sim, a morte, a indesejada das gentes, a única certeza… Abrir o corpo da outra desperta uma reflexão sobre como o personagem é transitório, nós, etc., etc., etc., o livro se chama Este é o meu corpo, é o de Eduarda, mas pode ser o dele, o nosso, etc., etc., etc. Só tenho 13 mil caracteres e a infelicidade de ter muitos exemplos como esse que mergulham no clichê, aliás, toda vez que esse narrador começa com um “como…” é uma canseira, as comparações sobrecarregam o texto, deixam-no sem mobilidade, obeso de detalhes inúteis (e que pegam como sarna…, pois acabei de falar as mesmas coisas de três formas diferentes, como se os leitores não fossem capazes de entender de primeira). É preciso dar mais crédito ao leitor, mas esse é só o romance de estréia de Filipa Melo.

O livro de Rui Zink — O reserva — testa a nossa tolerância para as crueldades que atravessam o nosso dia-a-dia. Um comentarista esportivo incompetente, que não consegue acertar os nomes dos reservas dos clubes de futebol em confronto, atropela e mata uma criança, Tiago, que era a força de coesão de uma família. A partir daí, entra em cena o ódio e a degradação emocional da mãe, a letargia do pai, a revolta adolescente do avô e de seus parceiros de bar (já explico a qualificação), a amoralidade do infrator/assassino involuntário (?), os expedientes das famílias, dos amigos e a concupiscência dos advogados de ambos os lados.

Tanto em O reserva, quanto em Este é o meu corpo, os crimes são cometidos por personagens que, saídos do seu meio ficcional, poderiam passar ao nosso lado na rua, filar o jornal na banca do bairro, enfrentar fila de banco, esperar mesa no restaurante, sem que os considerássemos necessariamente perigosos, personagens/pessoas “comuns” (depois dessas leituras, tenho medo disso…). O mais grave talvez seja perceber que ambos os assassinos são reintegrados na sociedade, sem qualquer punição. O assassino de Eduarda volta para a esposa, a polícia não consegue pegá-lo, e Paulo Gomes, o comentarista esportivo, recebe uma pena simbólica e lamenta mesmo ter ficado uns meses sem carro, o que dificultava sobremaneira as visitas à amante.

Os ditames da justiça bem como seus mecanismos são ineficientes nas obras e, em O reserva, isto soçobra em ironia amarga de se ler, como nas perguntas da juíza que arbitraria o caso aos pais: “Como lhe ocorriam os estudos na escola? Ah, sim, ainda não estava em idade escolar. (…) Era uma criança sossegada, estável, equilibrada? Inteligente, pouco, muito, nada?” (p. 169) ou “Ora bem, por causa disto tudo, desse deve haver, é preciso estabelecer um ratio, a fim de apurar aquilo que suponho é do vosso interesse… A indenização” (p. 170). Na verdade, consciente de que o poder político manobrava seus expedientes a fim de transformar o evento em caso exemplar, a juíza, também escolhida pelo mesmo poder, por razões pretensamente maternais, vira o jogo para desagradar a situação e transformar o caso em exemplar para si, a despeito dos envolvidos, é claro… A atuação dos advogados não é diferente, destaco a argumentação da defesa de Paulo Gomes que transformou o pai da criança e o avô em irresponsáveis por terem levado um menino de quatro anos a um jogo de futebol. Aliás, toda a máquina da justiça e da política é ironizada, pois a tolerância zero ambicionada pelos políticos tinha como móbil real contentar a União Européia.

Depois da morte da criança, o pai, Hélder Duarte, assume o discurso e poderíamos esperar o reino do patético, mas a dor é mesmo insuportável quando já nem dói… (p. 65) e confunde o raciocínio do personagem, de modo que as suas memórias se sobrepõem e se misturam a idéias e julgamentos tidos talvez como inoportunos para a situação de luto — “Aceitaria Groucho Marx ser sócio do Clube das Crianças Mortas?” (p. 69) —, mas que assaltam não só as pessoas de papel sempre nos momentos mais impróprios mesmo — “Por que é que estou a pensar isto?/ Boa pergunta./ Porque é que ainda estou a pensar?” (p. 69).

Afirmei que a criança mantinha a família coesa, mas é necessário acrescentar que essa liga estava sempre pronta a se corromper. Pai e avô relacionavam-se por causa/para o neto, que os agregava em uma teia de carinho perdida havia anos. O avô encontra nos seus pares decadentes, assim considerados no romance, apoio para uma vingança que acaba por extrapolar as suas ambições originais. Vemos tomar conta do país hostes de pichadores de automóveis estacionados em locais proibidos que começou com a destruição do carro de Paulo Gomes, levada a efeito por uma quadrilha de velhinhos “inocentes” de gabardinas.

Depois da morte de Tiago, também o casal Hélder e Cristina se desagregou, tanto que na saída de uma das seções do tribunal, Hélder acompanha Mila, amante de Paulo Gomes, a seu apartamento e lá o livro investe em uma nova linguagem para exemplificar a síntese, páginas antes, em discurso indireto livre, do narrador e de Mila: “Que ser amante era melhor do que ser esposa” (p. 119). O capítulo começa com uma imagem de mãos que se tocam e que deflagra nas páginas seguintes, em que a indefinição dos traços oferece indiscreta a contemplação de pernas, línguas, braços…, o desenho do pleno exercício de amar. Os agradecimentos do autor revelam que a aventura da escrita nunca foi trabalho solitário e para este capítulo em especial muito menos, nele o verbo cala, pois o ato é que se fez carne.

O romance insiste no tema da reserva que o intitula e talvez não devesse, um exemplo é quando Ema, esposa neurótica de Paulo Gomes, descobre que não ama mais o marido (amou algum dia?), pois ele se convertera em reserva para a principal estrela da sua vida, o filho que esperava…, outro, quando o narrador afirma que os livros são reservas dos jornais, autocomiseração da ironia pós-moderna, ou sei lá o que isso possa ser… A sombra de tragédia que cobre a narrativa antes da morte da criança — o estremecimento da mãe, pressentimento depois, ninhos de pássaros derrubados… também é demais. A história da calvice também poderia ter cessado no levantamento das diferenças entre Hélder e seu pai, mas não, a fotografia do autor revela as intenções recônditas da intromissão?

Em Uma história da leitura de Alberto Manguel, há uma fotografia que mostra leitores consultando uma biblioteca arrasada por um bombardeio. Sobre a cena, o autor do livro esclarece que os homens não estavam alienados da realidade à sua volta — “estão tentando persistir contra as adversidades óbvias (…); estão tentando encontrar uma vez mais — entre as ruínas, no reconhecimento surpreendente que a leitura às vezes concede — uma compreensão”. Os homens da foto talvez refutassem a desgraça de sobreviver e afirmassem com seu gesto o amor a um passado que não está atrás de nós, mas em nós, como já nos lembrou Alfredo Bosi, nos livros, com ou sem reservas. Bombardeios a bibliotecas, crimes passionais, tortura de prisioneiros de guerra, assassinatos de crianças que nos fazem pensar na possibilidade de devolver à vida o nosso bilhete de entrada…, os acontecimentos de um mundo, sem rima e sem solução? Filipa Melo e Rui Zink não são poetas, nem autores de auto-ajuda social. Cada um, ao importar seus conflitos das páginas dos periódicos que sangram, não faz curativo na nossa indignação. Que bom.

Este é o meu corpo
Filipa Melo
Planeta
134 págs.
O reserva
Rui Zink
Planeta
277 págs.
Marcella Lopes Guimarães

Professora Associada II de História Medieval na UFPR, membro permanente do PPGHIS/UFPR, Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 do CNPq. Escritora e criadora do blog Literistorias.

Rascunho