A desesperança dos sem futuro

"Te vendo um cachorro", de Juan Pablo Villalobos, apresenta um idoso narrando as tragédias individuais e coletivas do México
Juan Pablo Villalobos, autor de “Te vendo um cachorro”
24/03/2016

Pequeno, porém de prosa intensa e ágil, o romance Te vendo um cachorro é o terceiro de uma trilogia sobre o México, país de origem de Juan Pablo Villalobos, nascido na Guadalajara de 1973, escritor que concluiu doutorado em Teoria Literária, residiu por oito anos em Barcelona e depois seguiu para Campinas (SP), onde se casou com uma brasileira e com quem teve dois filhos “meio mexicanos, meio brasileiros”. Atualmente vive radicado em Barcelona novamente.

Villalobos é um autor incomum, que apresenta um texto conciso, direto e bastante visual, sendo considerado na Alemanha como uma das vozes representativas da narco-literatura. Seus temas se concentram nos problemas do México, mas que ele considera também presentes em toda a América Latina, incluindo o Brasil: a desigualdade social extrema, o sistema de justiça fracassado, corrupção endêmica, violência e falta de valores morais e éticos da classe política. Representante de uma geração jovem, nascida na década de 1970, suas obsessões são pela memória e pelo esquecimento, por buscar a surpresa diante do óbvio, contar o outro lado da história e, como não poderia deixar de mencionar, pela ridicularização do poder.

Se em Festa no covil (2011) Villalobos encarna-se no menino Tochtli, e no segundo livro desta série mexicana, Se vivêssemos em um lugar normal (2013), sua narrativa reaparece no adulto Orestes, é neste Te vendo um cachorro que o autor retrata as entranhas de seu país de origem a partir da perspectiva de um idoso de 78 anos, pintor frustrado, ex-taqueiro e alcoólatra convicto, que calculava em bebida o tanto de tempo e dinheiro que lhe faltava até a morte.

Como uma crônica da velhice, Villalobos mostra em Teo, seu personagem principal, o cansaço e a estagnação de um povo que não se livra de seus vícios coletivos eternos e de suas instituições de igual maneira eternamente fracassadas. Estabelecendo uma espécie de redemoinho de cinismo e ironia, um moto-contínuo de sarcasmo e desesperança, o autor torna, além da conta, repetitivas algumas passagens. Pode se calcular que ele tenha feito mesmo de propósito, exibindo-as irritantes como um tique nervoso de um doente mental, ou insuportáveis como as manias de um velho, as mesmas piadas macabras que se repetem indefinidamente pelo livro, pela vida de Teo e também pelo cotidiano do México e pela história da América como um todo.

Essa desesperança de Villalobos e, por consequência, do próprio Teo, se inicia desde a infância, e antes de tudo, na sua picuinha com os cachorros de estimação, já que todos eles se transformariam em futuros tacos, dado que na visão de Teo, um taqueiro por acidente, os tacos feitos de carne de cachorro seriam realmente os mais saborosos.

Tudo em Te vendo um cachorro é humor noir, cinismo, sarcasmo.

Tempos perdidos
A picuinha se estende aos moradores de seu prédio, diariamente reunidos em torno de discussões literárias sem futuro ou utilidade prática — como dito, uma aposentadoria transformada numa espécie de jardim de infância — e que durante o recorte do romance se concentrou nos sete tomos do legendário Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, volumes a que Teo se referia como os Tempos perdidos. O próprio nome do livro discutido, talvez, seria mais um indicativo revelador daquilo a que se dedicavam os vizinhos e o povo mexicano em geral: a busca sem êxito daquilo que já se perdeu e de um futuro que nunca mais voltaria a poder ser.

O tom de desespero é permanente e é exibido pelo protagonista na indiferença ao ser considerado por todos um escritor, embora nunca tivesse escrito nada além de algumas anotações e desenhos em um caderno que mantinha em sua cabeceira. Também se apresenta na empolgação com que Teo recebe um jovem religioso, um militante e uma idealista protetora dos animais e busca convertê-los à sua ideologia niilista e torta, moldá-los segundo seus próprios vícios e torpezas, transmitir-lhes suas amarguras e derrotas, contestar sua fé, rasgar sua inocência e gozar por empréstimo com as suas primeiras conquistas sexuais. Nada melhor para alguém amargurado do que capturar tempo e futuro, converter em ruína as esperanças alheias.

Nesse viés desanimador, sobressai a narrativa precisa do autor, suas metáforas, suas cenas bem urdidas e uma criatividade a toda prova. Quem, além de Villalobos na pele de seu Teo, lembraria de citar trechos da Teoria estética, de Theodor Adorno, para fugir de ligações de telemarketing? Criaria a dona de uma mercearia especializada na venda de tomates estragados? Ou, então, imaginaria a técnica de assassinar cães dando-lhes meias de nylon para que se enroscassem em suas entranhas? Quem, ainda, conceberia a possibilidade de matar baratas com Trova cubana no último volume?

Tudo em Te vendo um cachorro é humor noir, cinismo, sarcasmo. Entre outras passagens hilárias, sobressaem os furtos sistemáticos aos mercados, o contrabando de bebidas alcoólicas, a utilização de livros de teoria literária como armas contra baratas — uso mais produtivo do que o comum apoio para pés de mesas desalinhadas — e a chantagem de engavetar uma denúncia de crime contra animais em troca de uma oficina literária dada aos domingos em um boteco ao inspetor de polícia local em sua crise de meia idade.

Em tempos de Narcos e Lava-jatos, séries televisivas e reais que nos inspiram o desejo de saciar a curiosidade com o próximo capítulo para ver no que vai dar, assistimos a narrativas ambiciosas — reais e ficcionais — que perpassam todo o passado recente da América Latina e mostram seu legado na atualidade, uma chance de nos debruçarmos sobre os erros das últimas décadas do século 20. Do mesmo modo, a prosa de Villalobos desafia o leitor a reavivar a memória, abdicar do esquecimento seletivo, questionar antigas certezas, enfrentar nossas escolhas individuais e coletivas, discutir o passado sem medo e sem a higienização do politicamente correto, trazer à tona os corpos de todos aqueles esquecidos “que sumiram na guerra contra as drogas” dos últimos anos, enfim, reavaliar profunda e amplamente macro-decisões políticas, posturas, conceitos e ideologias.

Na história de México e Colômbia entrevemos algo também próprio do Brasil, vislumbramos semelhanças de destino e sorte de nações que carregam os mesmos tiques, as mesmas manias e picuinhas. Assim, em tempos de Te vendo um cachorro, lembramos que é necessário partir em busca do tempo perdido e fechamos o livro conscientes de não nos perdermos dos nossos volumes preciosos de Teoria estética ou de Notas de literatura como armas poderosas contra nossos piores medos.

Te vendo um cachorro
Juan Pablo Villalobos
Trad.: Sérgio Molina
Companhia das Letras
242 págs.
Juan Pablo Villalobos
Nasceu em Guadalajara, México, em 1973, e viveu oito anos em Barcelona, antes de morar alguns anos em Campinas (SP) e retornar a Barcelona. Formado em marketing e literatura espanhola, trabalhou em pesquisa de mercado e publicou livros de turismo, assim como críticas literária e cinematográfica. Finalista do prêmio de Autor Estreante do The Guardian (2011), escreve nas revistas Letras Libres, Gatopardo e Granta, nos jornais brasileiros Estadão e Folha de S Paulo, além de outros blogs literários. Traduziu Todos os cachorros são azuis, de Rodrigo Souza Leão, e O drible, de Sérgio Rodrigues, para o espanhol.
Paula Cajaty

É poeta. Autora de Afrodite in verso.

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