A desarmonia dos extremos

"Solução de dois estados", de Michel Laub, utiliza a história de irmãos com visões opostas de mundo para discutir a polarização do Brasil contemporâneo
Michel Laub, autor de “Solução de dois estados”
23/02/2021

O argumento da estupenda série de televisão Fauda está baseado nas ações de um grupo de agentes secretos judeus que se passam por árabes para combater o terrorismo na Cisjordânia. Um dos momentos mais emblemáticos ocorre logo no início: disfarçados de entregadores de doces para um casamento, os agentes são desmascarados em plena festa, têm de bater em retirada e uma troca de tiros culmina com a morte do noivo, única vítima do incidente. O objetivo da ação era a captura de um notório terrorista do Hamas que se supunha morto mas que havia reaparecido recentemente e cuja presença na festa era esperada por seu parentesco com o noivo.

Não resta dúvida de que ali havia terroristas, além de gente disposta a defendê-los. Mas tratava-se enfim da celebração de um casamento que seguia todos os ritos sagrados da tradição islâmica e do qual o noivo restou morto e a noiva, viúva. Alguns episódios adiante, o próprio terrorista cuja caçada havia provocado a tragédia refere-se a ela como um exemplo da inexistência de solução para um conflito em que o sangue derramado é o da própria família. Vale então o olho por olho, o dente por dente, o sangue de uma família compensado com o sangue da outra, um círculo vicioso de ódio que nunca termina, só cresce, alimentado por mais sangue e mais violência.

Ao virar a última página do romance Solução de dois estados, que mostra outra vez um Michel Laub ocupado com um potente drama de natureza familiar, um desavisado leitor vai naturalmente chegar à mesma questão que tem sido posta ao autor por ocasião do lançamento da obra: o porquê da escolha desse título para uma obra em nada relacionada com a questão palestina. Há por certo o fato de Laub ter ascendência judaica, e, ainda que entre seus sete romances já publicados haja um único até agora cuja temática se relaciona explicitamente a essa condição, há sempre a expectativa de que um judeu queira falar sobre o que acontece em Israel. Mas a pergunta pode ter apenas o saudável e singelo objetivo de provocar a discussão sobre o que se torna óbvio a partir da leitura do romance a quem tenha um mínimo de conhecimento sobre a origem dos conflitos que fustigam hoje o Oriente Médio.

Argumento do livro
Vamos devagar com esse andor e voltar por um instante ao argumento do livro: no Brasil dos dias atuais, os irmãos Raquel e Alexandre Tommazzi estão rompidos há muitos anos. Os negócios do pai haviam ruído com o confisco da poupança no Plano Collor, mas ele continuou a custear os estudos de Belas Artes da filha na Europa. O filho, por sua vez, teve de encontrar uma solução para sua vida sem apoio algum do patrimônio familiar, que a crise financeira havia dilapidado.

De volta ao Brasil, Raquel usa a obesidade mórbida — pesa 130 quilos — e a autodepreciação em obras performáticas e vídeos pornográficos que têm a intenção de denunciar a violência. Alexandre torna-se dono de uma rede de academias de ginástica e mantém vínculos com um pastor evangélico que lhe abre as portas a um mundo de negócios tão lucrativos quanto terrivelmente suspeitos.

Num seminário sobre arte e política que acontece num hotel em São Paulo, Raquel prepara-se para fazer uma de suas performances quando o palco é invadido e um homem ligado a seu irmão a espanca brutalmente. O episódio repercute na classe artística e motiva a vinda ao Brasil de uma cineasta alemã que está filmando um documentário sobre a violência brasileira. A própria cineasta havia perdido o marido num assalto à mão armada no Rio, anos antes, e a violência é um tema recorrente em seu trabalho.

Ao longo dos anos, Laub vem se libertando das estruturas mais ortodoxas de narrativa longa para experimentar soluções formais que emulam a contemporaneidade e suas múltiplas possibilidades de interlocução com a literatura. Os parágrafos curtos e numerados de Diário da queda (2011), onde duas histórias se intercalam e se imbricam, levam o leitor a pensar em listas e esquemas e também na linguagem concisa das redes sociais. Em O tribunal da quinta-feira (2016), a narrativa se estrutura a partir de troca de e-mails e mensagens por celular. Solução de dois estados é basicamente a reunião dos longos depoimentos prestados por Raquel e Alexandre à cineasta, alternando-se em grupos intitulados material bruto, material pré-editado e extras/material a inserir.

Choques narrativos
Nunca há nada de óbvio num romance de Michel Laub. A construção de Solução de dois estados é um trabalho de arquitetura que exige grande perícia, algo que Laub demonstra ter e que se consolida a cada novo livro. Raquel e Alexandre nutrem um pelo outro um ódio profundo cujas razões vão sendo paulatinamente reveladas pelos depoimentos que prestam. Suas raízes remontam a questões familiares mal resolvidas, mas não só a essas. Um espelho da desagregação da família Tommazzi, que funciona também como poderosa lente de aumento, é o cenário político brasileiro desde o Plano Collor até os dias de hoje, culminando com a polarização que dividiu o país nas eleições presidenciais de 2018.

Alexandre venceu a penúria e enriqueceu com a ajuda da Igreja Evangélica; é hoje um conservador, homem de bem, defensor da família e dos bons costumes e, é claro, odeia artistas, intelectuais e toda sorte de minoria e diversidade, tudo o que a irmã representa com seu corpo que não se encaixa em padrão algum, sua arte degenerada, sua vocação para viver às custas do trabalho dos outros. Ela, por sua vez, acusa o irmão de ser miliciano e de ter sujeitado a mãe a seus interesses mesquinhos após a morte do pai, um golpe duríssimo para todos.

O leitor é convidado não só a assistir mas também a tomar partido no formidável embate criado pela alternância dos depoimentos dos irmãos. O problema é que a razão parece estar ora com um, ora com outro, num jogo em que as narrativas vão se chocando ao ponto de se anularem mutuamente. Os contentores não estão frente a frente, é a cineasta quem os provoca com suas perguntas, e ela também acaba virando alvo da mágoa que os irmãos sentem um pelo outro e que já se transformou em ódio: Alexandre e Raquel atacam a entrevistadora na impossibilidade de agredirem-se entre si no momento em que prestam os respectivos depoimentos.

O mais fascinante da história, contudo, para além da peculiaridade da forma ou da querela familiar belamente apresentada e conduzida, está na ótica pela qual Laub observa a deletéria polarização que dividiu o país entre extrema direita e extrema esquerda. Alexandre e Raquel representam cada qual um desses dois polos e a forma como eles, nascidos na mesma família e partilhando os mesmos problemas, conseguiram se estabelecer e vingar, cada qual num extremo, odiando-se reciprocamente. Bem antes das questões ideológicas — a maioria dos que hoje se apressam em usar termos como “fascista” e “comunista” ou mesmo “esquerdista” e “direitista” para alvejar um oponente não tem a menor ideia a que eles realmente se referem —, as divergências nascem de questões bem mais prosaicas que, assim como na Palestina, o componente do sangue só faz agravar.

Solução de dois estados é mais uma obra notável de Michel Laub que, além da excelente literatura que sempre é, clama à reflexão num momento especialmente oportuno. O que mais podemos querer de um romance em tempos tão bicudos?

Solução de dois estados
Michel Laub
Companhia das Letras
248 págs.
Michel Laub
Nasceu em Porto Alegre (RS), em 1973, e vive em São Paulo (SP). Escritor e jornalista, é autor de sete romances e de uma coletânea de contos. Já foi publicado em 13 países e dez idiomas e ganhou prêmios no Brasil e no Exterior.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

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