A derradeira parada do relógio

Com a morte de Autran Dourado, a literatura perde seu maior artífice dos últimos 50 anos
Autran Dourado por Fábio Abreu
01/11/2012

É sempre difícil dizer quando nasce o homem e seu espírito. As religiões e as ciências costumeiramente se digladiam para saber o momento em que se dá a vida — em si mesma ou não. Contudo, se definir o nascimento das coisas mais simples e unitárias pode ser uma das tarefas mais hercúleas (afinal o que institui algo como simples e unitário?), o que se deve dizer, por exemplo, do universo humano tão múltiplo e denso? Na literatura, como separar as múltiplas vivências de Bentinho, de Dom Casmurro? Na vida, como afirmar quando nascem Fernando Pessoa e seus heterônimos? Seriam as partes o todo ou o todo seria parte de um constructo maior que se vale de uma máscara, como qualquer outra, para representar a pantomima da vida?

A literatura é (lembremo-nos dos gregos) o palco consagrado aos confrontos das forças ativas e reativas as quais residem no homem e precisam se harmonizar a fim de que, na trégua, cheguem ao equilíbrio. Quando solitariamente uma dessas forças vence, o homem fica ou na máxima razão cética, ou na ilusória visão da realidade — ambas, em algum grau, manifestações de loucura. Não deve haver vencedores, mas sim um equilíbrio dos contrários, e, daí, a unidade.

E é na integralidade dessas forças que se ergue o nome de Waldomiro Autran Dourado, sem dúvidas um dos maiores romancistas do Ocidente. Nascido em Patos, Minas Gerais, em 1926, e silenciado para sempre para a ópera da vida em 30 de setembro de 2012, Autran Dourado deixa uma obra inestimável de reflexão sobre as potencialidades anímicas do sujeito, obra esta alicerçada sobre estética minuciosamente arquitetônica. Tal estética é fruto da lucidez criativa do estilo único (“o estilo é o homem”, como ele disse e desdisse) forjado à custa de uma vida toda destinada ao ofício de escritor. Mas, se morre o homem, fica a obra, e se na vida há algo que pode sobrevir à “indesejada das gentes” é a arte. A arte — e somente ela —, com sua função libertária, dá ao homem o sentido de todas as coisas.

No livro Gaiola aberta, memórias dos anos em que Autran foi secretário de imprensa do então presidente Juscelino Kubitschek, um diálogo com o escritor Silviano Santiago elucida um traço de sua poética. Com admirável projeção, Autran afirma, quase doze anos antes de morrer: “Quero que meus livros sejam lidos e entendidos, mesmo após a minha morte, quando já terei virado fumaça. Eles têm uma existência real, eu como pessoa não tenho a menor importância. Espero que eles perdurem no tempo. Não passei de um pássaro que foi em busca de sua gaiola”.

Por essa razão, diante da envergadura da obra, dizer que Autran foi taquígrafo e jornalista em Minas Gerais enquanto cursava Direito ou falar sobre sua breve associação ao Partido Comunista na juventude vale tanto quanto comentar sua morte. “Toda vida dá um romance. O importante é saber narrar, a matéria pouco importa” disse uma vez a JK. E, como diria Cecília Meireles, se o canto só se dá pela existência do instante e é “a asa ritmada” que o eterniza, fiquemos com a literatura de Autran Dourado. Afinal, já ensinou o velho bruxo, “a arte em si mesma é tudo, caro leitor”.

A ópera da vida
A formação literária de Autran Dourado começou muito cedo. Aos 17, tendo pronto um livro, apresenta-o ao escritor Godofredo Rangel, que assim lhe diz: “Felizmente você não é precoce. Guarde o livro e continue escrevendo, lendo, atualizando-se”. Quatro anos depois, fruto desse exercício, publica, em 1947, Teia, na revista Edifício. Na história, um jovem jornalista imiscui-se perigosamente numa trama envolvendo três mulheres, irmanadas por um misterioso fato passado: “Humildes presenças me acompanhariam, a ciciar compromissos. A teia se estenderia multiforme, até nós”. O protagonista se vê caindo numa teia que o distanciaria do mundo e o manteria preso, para sempre, naquela (i) realidade.

Três anos depois, mais maduro e agora com o auxílio de um editor, publica Sombra e Exílio (vencedor do Prêmio Mário Sette). Nessa novela, Rodrigo, após ser traído por sua esposa com seu irmão, reencontra a mulher após alguns anos. A traição o enclausura em si e o constrangimento do reencontro lhe chaga violentamente o coração. Reunidos, anos mais tarde, em Novelas de aprendizagem, esses dois textos desenvolvem as linhas de força da poética autraniana: o barroco das intercessões temáticas, a loucura, o enclausuramento, o silêncio, a revolta dos personagens contra o tempo e a teia que une todas as pessoas num único espaço e sentimento.

Marco importante na obra do mineiro, Novelas de aprendizagem mostra a formação de um indivíduo, à semelhança de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe. Em Autran, no entanto, para além da formação literária, haverá também a humanista, já que a construção do homem não parte das históricas condições externas, mas da existência interior que redundará num ser literário, ou seja, no produto das relações existentes entre o espaço da criação estética ou artística, a essência anímica do ser e o contexto social em que se insere. Tudo isso para criar, a partir da extensão do tema, uma obra monumental para a qual convergem, como num grande bordado, todos os pontos do símbolo.

Tal processo formativo é a máxima perseguida pelo autor: ser um escritor artesão. Em Breve manual de estilo e romance, transcrevendo uma conversa com Godofredo Rangel, este diz que “não se aprende com gigantes, mas com bons artesãos, com os que conhecem bem o ofício”. À época da conversa, já era Autran um esteta, sem que seu esteticismo seja sinônimo do formalismo marmóreo dos parnasianos ou na pragmática fechada da análise literária típica do formalismo russo. No mesmo livro, destacando a estrutura em detrimento (mas não esquecimento) da trama, Autran afirma que “o suspense e o enredo são coisas muito secundárias no romance, servem apenas para manter presa a atenção do leitor”.

Em 1952, lança Tempo de amar, análise radical das relações entre homem e religião, a partir da dicotômica distinção entre âmbitos psíquico e físico, arraigados em nossa civilização. Em Ópera dos fantoches, de 1994, os mesmos personagens de Tempo de amar retornam, agora não mais em Cercado Velho, mas na mítica cidade mineira de Duas Pontes, espaço que alocará, por toda a sua obra, as pluralidades de personagens interligados numa enorme teia. Ismael, o protagonista dos dois livros, pede ao narrador que conte sua vida para se reconhecer vivo. Considerava-se a si mesmo sem destino, preso ao tempo pretérito do qual não conseguia se desligar. Há, assim, no romance, uma implícita ode ao poder vivificante da literatura.

Ainda pelos anos 50, sendo secretário de imprensa de JK, aprendeu os meandros políticos do Brasil. Trabalhou, liderado por Álvaro Lins, ao lado de Cyro dos Anjos e Augusto Frederico Schmidt, além de ter conhecido nomes como Antônio Houaiss e Manuel Bandeira. Essa experiência gerou dois livros: o de memórias Gaiola aberta (2000) e o romance A serviço Del Rei (1984). Este último analisa tanto a política brasileira quanto o papel dos letrados, afirmando que “o político e o intelectual (uma rara, se não impossível, hoje acho, identificação)” instauram-se em excludentes realidades.

Em 1961, lança A Barca dos homens (vencedor do prêmio Fernando Chinaglia). No livro, as técnicas narrativas são ampliadas com a presença, não somente da multiplicidade de narradores, mas também de linhas narrativas ou de “uma narrativa geral (macronarrativa) que se constrói através de narrativas particulares (micronarrativas)”. Outro recurso aqui empreendido é o monólogo interior, que o mestre imaginário de Autran Dourado, Erasmo Rangel, explica ser “uma das técnicas literárias que usam a livre associação de idéias para exprimir e narrar o que se passa na região do espírito que não é articulada”. No intermitente monólogo interior do esquizofrênico Fortunato, haverá o fluxo desconexo de imagens que lhe representam o mundo interior: “não ouvia ninguém naquelas horas quando os olhos ficavam escuros, não enxergava nada, nem Tônho, depois se arrependia quando Tônho falava, quando da Almerinda zangou com ele, a única vem que o viu bravo, pensou que ia morrer, mais por causa dele a zanga passou, ele esqueceu, Tônho gostava dele…”.

Uma vida em segredo vem três anos depois e é suscitada a partir de um fato curioso. Conta Autran que a história veio pronta, originada de um sonho. Em A Poética do romance, ele diz que “daí em diante foi um trabalho (único até agora na minha vida de escritor) relativamente fácil. Em pouco mais de um mês tinha escrito a história que Gabriela da Conceição Fernandes me revelara. E vi que havia nela um mistério que eu devia e procurava esconder na escrita. Era uma vida simples, humilde, franciscanamente rica. O título veio como consequência — Uma vida em segredo”. Em 2002, o livro foi adaptado para o cinema pela diretora Suzana Amaral.

Ópera dos mortos (incluído pela Unesco na Coleção de Obras Representativas da Literatura Universal), de 1967, consagra de vez Autran Dourado como um dos maiores escritores brasileiros. Falando sobre a falência moral e econômica da família de Lucas Procópio Honório Cota, o autor, ao recuperar elementos da tradição grega, cria uma primorosa obra de profundo apuro estético. Esse livro irá compor a trilogia mineira junto com Lucas Procópio (1984) e Um Cavalheiro de antigamente (1992).

Ganhador do Prêmio Jabuti e do Prêmio Goethe de Literatura do Brasil, em 1981, pelo livro de contos As imaginações pecaminosas, Autran Dourado foi demonstrando um talento cunhado a partir de um esforço de lapidação de estilo, que não caía na cartilha do culto da inspiração do gênio romântico. No ano 2000, venceu a edição do Prêmio Camões, o mais importante em literatura portuguesa.

Diante da força representativa do autor e de sua envergadura poética, faremos aqui um breve estudo dos principais pontos da obra desse carpinteiro da literatura universal, sem, no entanto, deixar, também, de lhe prestar uma homenagem.

Um artista aprendiz
Na literatura brasileira, são raros os autores que fizeram genuinamente uma análise da própria obra, ou porque guardavam ainda a idéia do culto do gênio (que mantinha a obra num etéreo espaço que não poderia se abrir aos não iniciados), ou porque podiam cair na prática narcisística de promoção pessoal. Contudo, não se levou (como ainda não se leva) em consideração o ganho que a auto-análise propicia para os estudos literários. Na poesia, normalmente nos lembramos desse processo em Poema de sete faces, de Carlos Drummond, ou de quase toda a obra de João Cabral. A metalinguagem se torna fundamental à compreensão do sentido do texto e do processo criativo. Na prosa, vemos um Alencar em Como e por que sou romancista, ou um satírico Mário de Andrade em Macunaíma, no capítulo Carta pras Icamiabas. Em Autran Dourado isso é radicalizado. Sua ars poética é matéria tanto de ensaios (Breve manual de estilo e romance, Uma poética de romance: matéria de carpintaria, O meu mestre imaginário) quanto dos romances (Um artista aprendiz) e da biografia (Gaiola aberta). E, se ele nos ensina algo sobre a formação de sua obra, isto é a unidade. Unidade, não repetição; pois a argamassa está assentada no nível temático, geográfico e estrutural. Vejamos o desenvolvimento desse processo.

A decadência mineira
A trilogia Lucas Procópio, Um cavalheiro de antigamente e Ópera dos mortos é a narração trágica do processo de derrocada de Minas Geais de fim do século 19.

Lembremo-nos, primeiramente, de que o sentido grego de tragédia valoriza menos o enredo lógico do que as pulsões emocionais, de modo que a seqüência narrativa perde sua importância em detrimento do mergulho na existência anímica de cada personagem. Correlacionando isso à finalidade temática, vê-se, na trilogia, a paralisação do tempo como elemento criador de sentido. Assim, diante dessa irreversibilidade do tempo, os personagens, aprisionados no passado e rebeldes ao tempo futuro, são mortos-vivos. Em Ópera dos mortos, essa rebeldia e inconformismo com o decorrer das horas é simbolicamente representado pela parada dos relógios, que se dá após a morte dos membros da família Honório Cota.

No nível estrutural, representa-se essa condição dos personagens a partir dos verbos no passado, que mantêm o tempo e a vida da narrativa no mesmo espaço pretérito indefinido pela consciência de seus personagens, agentes nulificadores do presente. Autran, ainda em Uma poética de romance, afirma que a Ópera dos Mortos “não é apenas um livro do passado imperfeito, nele não há (só se foi por descuido) verbos no futuro. Como não há futuro para Rosalina. É sempre ‘vou fazer’, nunca ‘farei’. Dizer o futuro é afirmar-se, é sair do passado, do mundo dos mortos, é ser”.

Nesse cenário desvitalizado que representa o homem e o mundo, os personagens funcionam como metáforas. O corpo substantivo e objetivo do personagem se prestará a “solucionar plasticamente, ritmicamente, espacialmente, por exemplo, um problema que surge na consciência de um personagem e na consciência do outro”. Tal conotatividade no uso das funções corpóreas alude às representações internas de caracteres externos ao personagem e vice-versa, no que T.S Elliot chamou de “objetivo correlato”.

A formação desse intrincado jogo metafórico começa a ser construído com Lucas Procópio, passa por Um cavalheiro de antigamente até chegar a Ópera dos mortos. O primeiro livro narra a vida de Lucas Procópio, mostrando sua essência dual, já que ele se formou de duas pessoas distintas.

Na parte I, chamada “Pessoa”, há a imagem quixotesca de um Lucas Procópio, homem que, nos limites entre a loucura e a razão, saiu por Minas Gerais para tomar posse de suas terras. De personalidade exótica, tinha a ideia de que somente a poesia poderia salvar Minas do declínio e que apenas as antigas fidalguias restituiriam o brilho dos tempos antigórios: “mais tarde, depois dele ter se ido para longes paragens, é que pessoa de muita sabença, de vivência velha de livros de antigamente, explicou: aquela impressionante aparição vinha de outra era; a gente vivia num século, ele vinha de outro”.

Na parte II, chamada Persona, encontramos outro Lucas Procópio. Após assassinar o verdadeiro, Pedro Chaves assume sua riqueza e sua identidade. Impõe-se uma máscara. Agora rico, busca ser aceito na alta sociedade, por isso se casa com Isaltina, filha do falido Barão das Datas, Cristiano Sales. Eles têm três filhos: Isabel, Tereza e João Capistrano. Este último terá sua gênese contada em Um cavalheiro de antigamente.

Neste romance, observamos a formação personalística de João Capistrano e sua queda para a loucura, em parte decorrente da morte da irmã mais nova, Tereza: “é muito difícil saber o que modela a alma infantil e muitas vezes faz uma pessoa doente por dentro”. Outro acontecimento ainda dilaceraria mais a natureza de João. Crendo que a mãe fora uma adúltera, remói por mais de ano uma dúvida que só sana com o assassínio do divulgador da notícia. Após matá-lo, é absolvido e parece, assim, restabelecer o equilíbrio. A partir disso, irá recriar a imagem de sua família, principalmente o degradado retrato do pai, cuja essência lhe tinha sido abrandada pela mãe. Metaforicamente, realizará a fusão com o pai quando da construção de um sobrado, processo detalhadamente mostrado em Ópera dos mortos: “o que eu quero é juntar o meu com o do meu pai. Eu sou ele agora, no sangue, por dentro. Eu mais ele (…) Eu não quero um sobrado que fique assim feito uma casa em riba da outra. Eu quero uma casa só, inteira, eu e ele juntos para sempre”.

Ressaltem-se, ainda, a figura em que se torna João Capistrano e sua gênese múltipla: ele é filho da educação de Isaltina com a virulência de Lucas Procópio (Pedro Chaves). Algo, no entanto, não se extingue: a força nominal de sua gênese oriunda ainda de Lucas Procópio, o vero. O mesmo gérmen da loucura, o mesmo ar quixotesco, a mesma ilusão da realidade residem tanto em Lucas quanto em João, embora neste a natureza de loucura não lhe impila à vida, mas à solidão e à morte. Sua natureza, na verdade, será tripartida. Como em Cem anos de solidão, de Garcia Márquez, em que a sucessão dos nomes Aureliano e José Arcadio molda fundamentalmente uma estirpe, o mesmo se dá com os Honório Cota: tanto para João como para Rosalina, sua filha.

Em Ópera dos mortos, além do sobrado, também é fundamental a imagem do relógio e das voçorocas. As voçorocas funcionam como representante do tempo. Com poder autofágico, simbolizam o próprio comportamento de Rosalina. Na pluralização de sua essência, ela (Rosalina) deixa de ser, mata a si mesma por ser várias: “Foi quando ele descobriu (…) que havia não duas, mas três pessoas distintas numa só pessoa, ou melhor — duas donas Rosalinas que embora parecessem eram diferentes, a gente via, reparando bem, a primeira, a antiga, crispada e dura, a segunda, redonda e pacificada, tranquila no remanso dos gestos, e uma Rosalina solitária (…) que em nada se parecia com as outras duas a não ser pelo fato de morarem no mesmo corpo”.

A imagem do relógio marca tanto a revolta contra o tempo quanto o caráter pendular e labiríntico de Rosalina, sempre nos dois extremos, tal qual afirma Autran: “o pêndulo circular (tempo) é a forma primária do labirinto (espaço)”. Essa pluralidade labiríntica de existências é representada na imagem errante do pêndulo. Assim, ela é o pai de manhã, circunspecto e honrado; e é o avô à noite, telúrico e sexual. Entretanto, Rosalina ainda precisa ser ela mesma e os limites entre cada uma dessas mudanças. Em Lucas Procópio, a descrição de Isaltina, sua avó, é semelhante: “uma outra Isaltina germinava, crescia e nascia dentro dela”. São as sucessões de características herdadas de seus antepassados — de todos eles — que dá à família Honório Cota um caráter múltiplo.

A construção sinfônica de todos esses elementos num constructo labiríntico organizado é marca barroca na obra de Autran Dourado. Na arquitetura do sobrado, há a referência às clássicas colunas dóricas e coríntias (Lucas Procópio e João Capistrano, respectivamente) que se fundiram na barroca coluna salomônica (Rosalina). Tudo entranhado e encaixado à forma, fundamentado o todo à parte, e vice-versa.

O artesão
Na originalidade da estética artística e na concretude do agir, Autran Dourado busca a identidade única, resgatando, para isso, estilos e formas. A estrutura romanesca retoma, pois, os conceitos da tragédia e do drama de luto. O sentido de tragédia remonta ao verbo grego koptô, cujo significado era “bater no peito em sinal de luto”; daí se gerou o Kommos, canto em que um ator se unia ao coro para compartilhar uma emoção. Na narrativa autraniana, esse recurso gera o coro como narrador (expediente narrativo em que a voz do narrador se pluraliza para fazer a crítica do texto encenado).

Cumpre distinguir — antes do desenrolar desses conceitos — pluralização das vozes de polifonia narrativa. Na pluralização, várias vozes personificadas por um agente único contribuem para a formação de um narrador coletivo que enxerga a peça a partir do olhar geral. Tal ocorre com o verdadeiro coro grego, que ora aconselhava, ora criticava, ora interpretava partes da obra. Na polifonia, o procedimento é distinto. Aqui, já se percebe a confabulação de vozes que podem, além de se mostrarem dissonantes, ser interpretadas pelo narrador ou pelo personagem. Tais vozes, então, passam a corporificar a cisão e o dilaceramento da interioridade anímica na mesma medida que clarifica para o leitor uma diversidade de focos narrativos, porquanto extinguem a prevalência de uma única voz. Somente dessa forma o discurso literário pode encenar todas as ideologias vigentes na civilização.

Em Barca dos homens, no capítulo Beco das Mulheres, a prostituta Dorica resolve ter um filho, mesmo morando num bordel cuja proprietária era Eponina. A cafetina, caridosa, apesar de contrária à escolha da menina, continua acolhendo-a, enquanto esta não dá à luz. O narrador, aqui, encena as vozes das mulheres: “Dorica esperava a sua vez, foi por vontade própria, não quis aceitar os conselhos maternais de dona Eponina, porque dona Eponina era boa, sabia, apascentava as suas moças, o seu ganha-pão, até, que nem lhe cobrava nada, dava-lhe comida e aquele quarto no porão, porque ela não poderia mais os últimos meses receber homens, foi por vontade própria, disse, queria por toda força ter um filho, um filho só, mesmo que nascesse naquele lodo, que viesse de dentro dela”.

Em Ópera dos mortos, vemos a análise do coro quando se lê o sobrado: “O senhor atente depois para o velho sobrado com a memória, com o coração — imagine, mais do que com os olhos, os olhos são apenas conduto, o olhar é que importa. (…) Recue no tempo, nas calendas, a gente vai imaginando; chegue até ao tempo do coronel Honório (…) homem de que a gente se lembra por ouvir dizer, de passado escondido e muito tenebroso”.

O drama de luto é um ponto temático reincidente na obra autraniana. Mas façamos uma pequena viagem, antes. Vejamos por alguns segundos a estátua de Laocoonte, uma das mais admiradas obras dos antigos gregos. Sua imagem traz a contenção e a dor diante da morte iminente de seus filhos pela mortal serpente mandada por Posêidon. O corpo contraído esperando a morte contrasta com a fisionomia: a boca menos aberta do que pediria um grito de dor dilacerante ajusta-se à disposição semicerrada do cenho e da sobrancelha, indicando um lamento e uma profunda agonia. O equilíbrio dessa estátua se ajusta à representação da dor silenciosa e da morte em vida de que são encharcados os personagens autranianos.

Tais personagens subjazem à força inelutável e esmagadora do tempo. Em Sinos da agonia (Vencedor do Prêmio Paula Britto), de 1974, por exemplo, Januário é um personagem morto em efígie, ou seja, condenado a uma morte social que redundará na morte derradeira. Na construção do sentido de morte que se transforma em vida e vice-versa, Autran Dourado cita em Poética do romance um pensamento de Heidegger “Tudo que começa a viver já começa também a morrer, a caminhar para a morte, de maneira que morte é também vida”.

Para além do mestre imaginário
Se a crítica literária nos últimos anos deu menos atenção à obra de Autran Dourado do que sua qualidade artística merecia, isso nunca foi suficiente para a aceitação de modismos por parte do autor. Como profundo conhecedor da grande literatura, ele sempre soube que a verdadeira arte é um esforço pessoal constante na busca do estilo próprio, e que “a verdade, a beleza e o bem são o artista”, como diria Flaubert. Autran sobre isso ensinava aos mais jovens: “escolha o que você quer saber, o seu caminho. Dinheiro e notoriedade são bons, mas nem sempre, se você não quer fundar um banco ou viver no bem bom das colunas sociais. Não venda a sua alma ao diabo”. Com sua morte, Autran deixa a mulher, Lúcia Campos, filhos, netos e bisnetos, mas a orfandade e a saudade ficam, irremediavelmente, com todos nós.

Autran Dourado
Nasceu em Patos de Minas (MG) em 1926. Ainda na juventude, recebeu seu primeiro prêmio literário pelo conto O canivete do diabo. Estudou direito e trabalhou como jornalista, passando a maior parte de sua vida no Rio de Janeiro. Entre suas dezenas de obras, Ópera dos mortos (1967) foi listada pela Unesco como uma das mais representativas da literatura mundial. Em 2008, ganhou o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra. Faleceu em outubro de 2012.
Roberto de Andrade Lota
Rascunho