A delícia do ponto final

Os poemas de "Arremate", de Armando Freitas Filho, têm a finitude como espinha dorsal e fazem alusões aos heróis literários do autor octogenário
Armando Freitas Filho, autor de “Arremate”
01/05/2021

Era o fim, é o fim, mas o fim é demais também
Caetano Veloso

Arremate: ato ou efeito de arrematar. Término. Desfecho. Derradeiro acabamento antes do fim.

O último livro do poeta Armando Freitas Filho desde o título já anuncia a temática que perpassará — diretamente ou como pano de fundo — as cerca de 300 páginas de sua composição: a morte. A polissemia de último como “o mais recente” ou como “o livro derradeiro” deixemos em aberto.

A dedicatória “Para mim”, bem mais do que suposto aceno narcísico ao eu (que diz nunca ter sido muito alegre), sugere espécie de acerto de contas consigo mesmo, enquanto obreiro construtor que ora se afasta para observar a edificação erigida, ora se aproxima e passa a mão pela parede fresca a testar o tempo da massa corrida.

Em obra de tal porte (livro inédito com extensão de antologia) é de se esperar que a palavra-energia alterne a voltagem de seu sistema. Ainda que, por vezes, certo tom prosaico coloque resistência, a condução se mantém coerente e coesa, bem organizada em sua corrente. Alguns versos, inclusive, imprimem tamanha força que se tornam fonte de tensão maior do que o próprio sistema elétrico em que estão inseridos. Aliás, neste circuito, não há curto (ainda que o corpo insista nas falhas), apenas corte.

Sobre o eixo temático dos poemas, poderíamos imaginar que os 81 anos completos em 18 de fevereiro impusessem sobre o poeta a morte como fantasma que se aproxima e, por isso, a sensação de fim passando da vida para os versos. Contudo, Alfredo Ribeiro — que, junto a Laura Liuzzi, entrevistou o poeta para o site do Instituto Moreira Salles (IMS) — aponta o seguinte:

Armando Freitas Filho é um homem grave de nascença. Mais ou menos dos 8 aos 80, aprimorou com requintes de crueldade um traço de personalidade comum aos hipocondríacos de pedra como ele: o poeta, não é de hoje, pensa todos os dias na morte. De tão dramático, chega a ser cômico.

Ainda que seja leve em certos momentos, Arremate não se pretende cômico — esse viés fica salvo nas idiossincrasias de Armando reveladas nas entrevistas, principalmente audiovisuais. O tom dramático de fato predomina nas sete partes do livro.

Esse viver o morrer — espécie de antecipação da morte em si — que é tensionado ao longo da obra, mais do que tentativa de controle sobre o próprio fim, aponta para certa dramatização fetichizante da morte em que muitos de nós, precocemente ou em época propícia (qual seria esta?), adoramos imergir.

Mais do que a morte do eu lírico — que se transubstancia alegoricamente na imagem do próprio poeta, pelo correlato entre o dito em entrevistas e acenos em versos —, as existências de seus pares de escrita, seus companheiros de época e afeto e seus artistas de predileção são ponto central na composição da finitude como espinha dorsal de Arremate.

A boca aberta da estante
As duas primeiras seções — PINCEL LÁPIS TESOURA GOIVA LENTE MARTELO TELA e CANETAS MÚLTIPLAS — abordam figuras do meio artístico (na primeira) e do campo da palavra (na segunda) como tema mais de impacto do que de observação. Nelas, não chega a haver um tom ensaístico, mas analítico, revelando que muito de um poeta se inicia com o eu leitor, como alguém que absorve da matéria artística (da pena e da tela) tal encantamento que incita (e excita) em versos o transbordar de si.

Além de textos — de tons e objetivos variados — para Baudelaire, Bishop, Noll, Graciliano, Van Gogh, Hopper, Goeldi, Clarice, Rimbaud, vários são os poemas aos seus “mosqueteiros”, a saber: Manuel Bandeira, o primeiro; Carlos Drummond de Andrade, o segundo e seu maior interlocutor; João Cabral de Melo Neto, o terceiro. Há o quarto, mais jovem, espécie de D’Artagnan: Ferreira Gullar.

Muitas são as vozes evocadas ao longo dessas páginas que a nós, leitores dos mesmos objetos literários do poeta, são degustadas também pelo jogo, como se nos convidassem a participar da recriação das imagens, das escritas, das tramas apreciativas elaboradas pelo eu lírico. Uma delas, que sempre é central a Armando, é Ana Cristina Cesar — objeto de vários poemas, feita e refeita em misto de presença e escape, carne e mito, ficção e biografia.

Corpo carrasco
A terceira seção (CASA CORPO ADENTRO) aborda a relação casa/corpo em misto de memória e deterioração. Se biograficamente Armando menciona que sua casa faz as vezes de fortaleza (devido à sua personalidade retraída), o corpo — aos 80 anos e próximo da morte — se torna um traidor, por permitir a ruína de suas estruturas.

Alguns poemas abordam literalmente essa condição danificada, como em Triplos — que, pelo jogo temático-numérico, imediatamente remete às Dentaduras duplas de Drummond. Os versos de Armando falam de implantes dentários como gatilho reflexivo para a proximidade e a ironia do fim. O eu lírico se pergunta: “E o riso tão perfeito/ no fim da vida/ terá utilidade/ no quarto escuro/ do caixão, já que o morto/ não ri nunca?”.

Desse jogo associativo também as metáforas entre escrita e corpo são construídas. Em alguns poemas, como Escalada, o aspecto sexual é explícito, como se poema e orgasmo fossem construídos em uma crescente até culminarem na “altura/ conseguida, conquistada/ na delícia do ponto final”.

Em outros, vemos a matéria erótica de um corpo que não mais a sustenta, não mais é capaz de responder às pulsões do desejo que a mente fantasia. Desordem retrata, distantes, os corpos largados pela casa e, segundo consta, “Não houve sede bastante/ pois faltou deserto e exercício”. A falta de vazio e prática aponta para a imagem não da estiagem do desejo, mas, ao contrário, para a cena de corpos que não conseguem mais dar vazão à pulsão da pele.

“Me despeço do meu corpo/ aos poucos” — em Um em dois — ilumina o campo de batalha entre um eu e seu corpo, dissociados pelo tempo. Além da matéria física que se danifica com a idade, aqui corpo também é memória que falha.

Em busca da memória perdida aborda esse esquecimento contínuo que dá ao eu lírico a sensação de ser feito de lacunas. Em entrevista, Armando comenta que, certa vez, escreveu IML em vez de IMS (destinatário de seu arquivo); brinca com o próprio ato falho e comenta que as falhas se tornaram frequentes.

A escrita, como procedimento de várias demãos, permite um apuro discursivo que o corpo, ao contrário, impede. O corpo, pelos 80, força a falha. Aos “75 anos” já forçava, por isso, diz o eu lírico, “vivo pela metade”. Vale mencionar que uma das entradas para arremate no dicionário é o acabamento final de uma roupa, de modo que uma das dobras de sentido do título recai sobre a trama da vida perdendo o seu revestimento, seu arremate.

Quem lê tanta notícia?
Quase à Manuel Bandeira — primeiro mosqueteiro do autor —, encontramos, na quarta seção do livro, poemas “tirados” de notícias de jornal. Diferentemente do feminicida João Gostoso que se mata na lagoa Rodrigo de Freitas, os poemas de EM PAPEL JORNAL adensam no eu lírico o impacto do noticiário — sobretudo político-policial — encontrado nas páginas matinais. (A quem desconhece a história do poema de Bandeira, recomendo o texto O infortúnio de João Gostoso, publicado na revista Piauí em agosto de 2019.)

Armando Freitas Filho sempre se considerou um homem de esquerda. E se mantém. A despeito da possível aversão por parte de leitores alinhados ao obscurantismo bélico e reacionário, vemos nas páginas desta seção poemas que expõem a tristeza do dia em que a presidenta Dilma sofre um golpe parlamentar; que denunciam a prisão arbitrária do ex-presidente Lula da Silva; que apontam a especialidade de matar do “Mito Mitômano” que nos preside em cárcere sanitário; que denunciam jovens periféricos alvejados pela necropolítica do Estado; que claramente também se dedicam a Marielle (presente!).

Eu vou
No Fla x Flu que se tornou a esfera política em tempos de Steve Bannon, pós-verdade e fake news (cujo arremate de gado ironicamente sugere mais uma dobra), vale ressaltar que estar do lado certo do debate é outra dobra do título: um arremate certeiro. Estar contra a opressão virulenta e a favor do povo e dos oprimidos, nos versos e na voz cotidiana, é sempre um gol de placa que vale o papel do ingresso, da vida e das páginas do livro.

Arremate
Armando Freitas Filho
Companhia das Letras
301 págs.
Armando Freitas Filho
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1940. Entre outros trabalhos ligados à cultura, foi pesquisador na Fundação Biblioteca Nacional e assessor no gabinete da presidência da Funarte. Vencedor dos prêmios Jabuti, Rio de Literatura e APCA, teve sua obra poética reunida em Máquina de escrever (2003).
Ramon Ramos

É autor de Tinta (2012), Caroço (2013), A vulnerabilidade como procedimento (2018).

Rascunho