O projeto literário de um escritor muitas vezes se confunde com a própria estrutura da ficção. Em alguns casos, notamos o surgimento de um protagonista cuja jornada se destaca como a do herói, em especial porque suas características são tão fora do comum que ele nem mesmo fazia parte do imaginário de quem acompanha aquele contexto. Esse é o caso do escritor carioca Paulo Lins, de quem a Planeta acaba de publicar Desde que o samba é samba. A obra encerra mais de dez anos de silêncio por parte de Paulo Lins, levado à condição de grande revelação literária no final dos anos 1990, por ocasião do livro Cidade de Deus. A essa altura, o título é dessas obras consumidas mundo afora como parte de press kit para um guia rápido sobre a história da violência urbana no país. Sim, depois que o livro virou filme, com o auxílio do autor na adaptação para o cinema, a obra se tornou um paradigma da produção cinematográfica nacional. Já o livro de Lins não ficou por menos: críticos como Roberto Schwarz observaram a qualidade do texto do romancista no que havia de mais genuíno: em linhas gerais, a passagem para a ficção de uma condição social degradada. De fato, aquele livro de Lins produzia esse efeito de sentido e, como se vê, conquistava não só o leitorado das margens, mas o público sofisticado da academia.
De lá para cá, após muita expectativa, além de participações em programas sobre violência urbana e até mesmo em debates em telejornais, Paulo Lins não havia mais publicado (em tempo: atuou como roteirista na última década). E Desde que o samba é samba pode ser visto, de várias formas, como uma resposta em fogo mais brando àqueles que esperavam outra obra de grandes proporções como Cidade de Deus. Essa comparação pode ser e é cruel, haja vista o sucesso e a repercussão daquele livro. Todavia, parece lícito colocar essas obras lado a lado, uma vez que, depois de tanto tempo, é de se esperar uma espécie de continuidade da trajetória autoral — e não se quer dizer aqui seqüência — iniciada com aquele primeiro romance.
Amarras da realidade
No livro, o autor retoma a temática da favela (que alguém poderá qualificar como desgastada), não para expor o cenário idealizado da Rio+20 ou das UPPs, tampouco para denunciar o retorno da violência e do tráfico de drogas; antes, prefere resgatar o Rio antigo, notabilizado pelos cardeais do samba, bem como as festas populares, simbolizadas, aqui, pelos terreiros de candomblé. Nada de equivocado ou fora de tom quanto à escolha. Em verdade, é mesmo interessante observar o caminho percorrido por Lins na abordagem do tema, algo entre o pesquisador e o cronista que observa e relata ao leitor contemporâneo os usos e os costumes daquela época. Uma tese subjacente ao romance: o autor aponta que os casos relacionados à violência já existiam naquele Rio de Janeiro de 1920. Tão importante quanto isso é o indicador, sugerido pelo autor, de que essa violência naquele tempo era mais naïf. De modo semelhante, o autor resgata outra tese sobre o desenvolvimento das comunidades no Rio de Janeiro: as mudanças promovidas pelo então prefeito Pereira Passos no início do século 20, cuja conseqüência pode ser percebida no trecho que segue:
Depois de uma semana, levantou cedo para tirar os documentos que faltavam e levá-los ao Departamento de Pessoal do Cais do Porto, feliz da vida com a alegria que a esposa e a sogra demonstravam por ele ter arrumado emprego. Ivete queria sair daquela casa de cômodos no alto da ladeira, morar na Rua do Matoso, lugar de rico. Pobre é que mora no morro ou então em casa de cômodos. É, iria morar na rua em que passavam as lotações, os bondes, rua de comércio de ponta a ponta. O casamento foi bom para subir na vida, pois juntando o dinheiro da lavagem de roupa da mãe, o salário de Brancura, que passaria a fiscal logo, logo, e seu dinheiro de professora primária, que começaria a receber assim que se formasse, daria para pagar o aluguel de um bom apartamento.
No fragmento acima — e, em certa medida, ao longo do romance —, Paulo Lins fundamenta a trajetória dos personagens à lógica centro-periferia, o que faz a cabeça de críticos como o já citado Roberto Schwarz, por sua vez autor, entre outros, de Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. Nele, o pensador mostra o quanto da obra de Machado serve para a análise de certo movimento das classes sociais no Brasil. Na obra de Lins, o que existe é invenção literária servindo como continuidade de linha de pesquisa acadêmica. Em outras palavras, o argumento é extremamente refinado; todavia, o texto se torna menos contundente se comparado com outra construção carente de fontes e pesquisa histórica. É bem verdade que Paulo Lins cumpre o seu papel de tornar o texto mais impuro, seja na forma (com os palavrões), seja com os personagens que destoam de certa narrativa “pequeno-burguesa”. E ele é competente, sim, ao propor uma história que desafia o senso comum dos leitores sobre o tema. Dito de outra maneira, o impasse de Desde que o samba é samba não está nas premissas ideológicas que fundamentam o livro e pautam o discurso de seu autor, sobretudo porque esse argumento é o que faz a cabeça da intelligentsia no país.
E qual é o motivo de impasse na obra de Paulo Lins? Reside precisamente no fato de que, por obedecer a diversos detalhes de reconstrução histórica e ao mesmo tempo atender aos rigores da sociologia de turno, a obra perde o aspecto inexato da imaginação, o espaço de inventividade que o escritor pode percorrer sem as amarras do texto de não-ficção, podendo, a depender do caso, inventá-los. Correndo o risco de o paralelo soar como trocadilho infame, o território demarcado aqui impediu que o autor, mais uma vez, se destacasse no campo em que foi mais elogiado: a superação de uma realidade a ponto de inventá-la no imaginário do leitor. Tal como está escrito, o público tem acesso agora a uma leitura correta, precisa e bem escrita sobre o Rio de Janeiro dos anos 20. Agora, essa experiência intelectual não supera o impacto fundador da literatura, que, para o bem ou para o mal, nem sempre atende a todos os critérios da reconstrução de época.
Em Desde que o samba é samba, Paulo Lins retorna aos morros cariocas e, mérito elementar desse seu novo romance, não repete o livro anterior. Pelo contrário, pois, ao escrever sobre os acontecimentos do início do século, mostra ao leitor sua habilidade como narrador. Ocorre que, homem de seu tempo, faz da literatura um trampolim para a concepção de uma tese sobre a história das camadas excluídas do Rio de Janeiro. O lastro da crítica acerca de sua obra pode, sim, ter assuntado o projeto estético do autor: de escritor que não pertencia ao imaginário da literatura, tornou-se agora um dos representantes da explicação oficial da narrativa sobre violência, pobreza e exclusão.