Em 1939, o navio europeu Saint Louis cruzava o Oceano Atlântico rumo a Cuba. Novecentos e trinta e sete judeus a bordo sonhavam com uma nova vida na América, enquanto fugiam da perseguição nazista. É com esse fôlego otimista que o cubano Leonardo Padura abre Hereges.
Entre os que buscavam se salvar das mazelas da Segunda Guerra, estavam o pai, a mãe e a irmã do menino Daniel Kaminsky, já estabelecido na ilha graças ao apoio do tio Pepe Carteira, com quem morava. O garoto, um dos personagens centrais da história, logo descobre que a esperança de rever seus familiares mais próximos não duraria muito: naquele mesmo período, o presidente Federico Laredo Brú — aliado político de Fulgêncio Batista — editaria a legislação do país, proibindo a entrada de estrangeiros.
Após a negociação que mantém o transatlântico no porto de Havana por alguns dias, o navio tenta desembarcar nos Estados Unidos e no Canadá, mas acaba retornando à Europa e, embora refugiados sejam aceitos no Reino Unido, na Bélgica, na França e nos Países Baixos, a Alemanha avança também nestes territórios no ano seguinte e massacra a maior parte dos judeus dali.
Durante a semana em que o navio aporta em Cuba, o ascético Pepe Carteira loca um pequeno barco para tentar se aproximar dos parentes do sobrinho e consegue entender por códigos que eles tentavam subornar os oficiais para o desembarque com um quadro pintado no século 17 atribuído a Rembrandt. O problema é que eles são enganados por trapaceiros que ficam com a relíquia e não viabilizam a entrada da família.
Quanto à obra, também nada mais se ouve sobre ela. E esse mistério se torna tão pesado para Daniel, que o jovem se permite esquecer suas raízes familiares como forma de se defender da dor de perder pessoas tão especiais.
Uma reviravolta, no entanto, impulsiona um dos pontos mais fantásticos do enredo: a busca intrigante por esse elo perdido e abandonado. Elias, filho de Kaminsky, decide, alguns anos depois, encontrar o quadro roubado. Assim, talvez fosse possível descobrir a relação do artista holandês com suas origens, resgatar ao menos parte da memória dos seus antepassados e entender o que acontecera ao certo naquele dia triste em que embrulharam numa proibição impiedosa toda a fé de seus avós e sua tia.
É aí que entra em cena o investigador Mário Conde, personagem tão completo e interessante que, não por acaso, aparece em mais de uma obra de Padura. Conde aceita o desafio de encontrar o que ficou por dizer na história do quadro em troca de um bom dinheiro.
Liberdade e heresia
A liberdade constitui o eixo central da obra e é a partir dela que o romance discute a tradição, o pertencimento, a disciplina e a culpa, como fardo ou como fortaleza, mas sempre como fundadoras e constituidoras do sujeito que, seja em exercício de ruptura ou de adaptação, se reconhece e se faz histórico. Esse é o movimento no qual reside o arbítrio humano, que nos faz mais ou menos livres e, assim, mais ou menos hereges.
Conde representa o sujeito que, lutando cotidianamente para morar e comer em um sistema social contraditório — do qual, diga-se de passagem, o escritor anuncia a falência —, apega-se ao imediato e, embora ateu, aspira a uma transcendência perpassada pela religiosidade, ora embasada pelo modelo cristão, ora por cultos, como a Santeria. Isso denuncia o fracasso do ateísmo prescritivo (também um mandamento). Na corda-bamba entre o secular e o sagrado, o personagem subverte as duas esferas. Havendo dinheiro para driblar o fardo do cotidiano com um tanto de rum, cerveja e boa comida ao lado dos amigos de décadas, tudo estaria resolvido. Ao seu modo, o detetive encontra seu anseio de liberdade no imperativo da sobrevivência, no imediatismo, nas próprias fraquezas.
Outro exemplo de heresia como sinônimo de liberdade aparece na caracterização de Tamara. Companheira de Conde por décadas, a mulher prefere abrir mão de morar sob o mesmo teto do detetive a se casar com ele de papel passado. Isso chega a confundir até mesmo Conde, para quem o casamento é uma saída óbvia, capaz de facilitar muitos aspectos da vida social.
Estrutura
Apesar da importância da história dos Kaminsky exposta no núcleo ao qual o autor chama de o Livro de Daniel, Hereges possui outras três frentes contadas em terceira pessoa, também com referências ao Velho testamento, que se fundem e endossam a narrativa: O livro de Elias, O livro de Judith e, ao fim, Gênesis.
O livro de Daniel apresenta a trama central ao leitor e revela como Daniel Kaminsky renunciou ao judaísmo ao ter que encarar o retorno dos pais e da irmã do porto de Havana às mãos nazistas. Daniel se conforma cada vez mais como cubano: se essa decisão pode tirar de seus ombros o fardo de ser judeu e a culpa por ser o único sobrevivente da família, é a melhor a ser tomada.
Em O livro de Judith, o narrador relata outro caso no qual o Conde se envolve: o desaparecimento de uma adolescente esperta chamada Judith. O mistério aos poucos se encaixa de forma inusitada e genial nos segredos que envolvem o quadro perdido de Rembrandt.
Cabe destaque, neste núcleo, a menção a uma juventude intelectualizada representada por Judith — a educação cubana dá um grande salto nos anos pós-Revolução — que passa a refletir sobre suas próprias trajetórias de vida e não se reconhece na utopia de uma Havana enferrujada e descascada. Apesar de, ou justamente pelo embargo econômico, Padura apresenta uma geração que opera o movimento de contestação ao coletivo e ao político, ao passo que procura uma conformação com as novidades continentais — que, desse lado do muro, nada têm de novo.
O livro de Elias fala de um judeu com o mesmo nome do filho de Daniel que tinha muito interesse em ser pintor, ainda que sua religião proibisse essa atividade. De tanto persistir nessa ideia, consegue ser aprendiz de um grande artista. Aos poucos, esse núcleo também se une a todos os outros e um complexo quebra-cabeça vai tomando forma.
Para preservar possíveis surpresas, deixo o Gênesis em segredo. Garanto que vai valer a pena correr cada capítulo para chegar a um final que se intitula “o princípio”. Quer coisa mais subversiva?
Não é demais lembrar que Padura tem muito disso, aliás. E sua inclinação à transgressão da palavra também o faz livre. Ao expor tanta heresia escondida sob as mais diversas contradições humanas, umedecendo o que poderia ser apenas um seco romance policial agitado ou um opaco romance histórico cheio de dados jogados, o cubano deixa mais uma marca na literatura latino-americana mediante seu próprio jeito de ser herege.