A criança e a crítica

Peter Hunt traça caminhos entre literatura infantil e crítica literária
Peter Hunt, autor de “Crítica, teoria e literatura infantil”
01/12/2011

Ler, adulto, literatura infantil pode ser uma experiência de muito prazer. Para o adulto, o interesse por literatura infantil em geral surge em conseqüência do interesse pela criança, e não pela literatura: filhos, alunos, pacientes — estes enigmas — levam pais, professores, psicólogos à cata dos livros que possam formar as crianças e, quem sabe, fazê-las imaginar a vida sob o signo da arte. Como se sabe, esta mediação dos adultos (que, além de tudo, são os autores dos livros!) pode não levar em conta alguns prazeres perdidos da infância, pois, para o adulto, a infância é impossível (seja utópica ou terrível).

Por isso, é preciso considerar que, no limite, todo adulto lê literatura infantil como um crítico literário. Por um lado, a obra não lhe foi endereçada e o mundo da infância já se tornou, em algum grau, estranho. Por outro, o olhar de mediador desta literatura para alguma criança lhe pede um posicionamento diante do livro. O problema é que os instrumentos para exercer essa crítica, mesmo que intuitiva, são escassos.

É nesse emaranhado de problemas que se coloca o livro do professor inglês Peter Hunt, Crítica, teoria e literatura infantil, originalmente publicado em 1991 e recentemente traduzido para o português. Mais especificamente, Hunt coloca em questão a relação entre a literatura infantil e a crítica literária. Num estilo indagativo e muito bem organizado (que se costuma dizer “muito didático”), o autor traça, neste livro, um caminho de exploração bastante completo do livro infantil, abordando, capítulo a capítulo, o texto em seus aspectos estilísticos, narrativos e ideológicos, além da ilustração, da interferência das novas mídias e de preocupações mais teóricas, como a definição de literatura infantil.

O que costura o caminho do pensamento do crítico — ao longo do qual nos apresenta diversos livros da literatura infantil inglesa, quase todos traduzidos no Brasil — é a preocupação em não tornar as obras objeto de uma crítica literária que, historicamente, não foi elaborada para abordar tais obras. Essa preocupação faz com que o livro de Peter Hunt reverbere em discussões que extrapolam o âmbito estrito da literatura infantil, interessando à atividade da crítica em geral. A solução não está em produzir uma crítica literária infantil, especializada, mas em pôr em relação uma e outra: daí o título da obra, rigoroso, utilizar a conjunção “e”, em lugar da preposição “da”: crítica, teoria e literatura infantil.

Abrangente
Para Hunt, o fato de a literatura infantil interessar a um grupo de adultos maior do que os estudantes de literatura torna necessário que a sua crítica se faça em linguagem ao mesmo tempo interdisciplinar, pois precisa considerar os conhecimentos relativos à criança (da pedagogia, da psicologia e da família), e abrangente. De fato, o livro se escreve de modo, digamos assim, muito público: idéias muito bem explicadas, num texto limpo de referências teóricas (que estão agrupadas nas páginas finais do livro), que introduz o leitor ao mesmo tempo na literatura infantil e em conceitos da teoria literária.

Trata-se de uma preocupação central para a área, pois existe uma vaga idéia, que paira como nuvem idealizante, de que crítica, teoria, conceitos podem atrapalhar a leitura prazerosa, ainda mais no mundo infantil. Essa resistência — que aparece inclusive no discurso de diversos escritores, como mostra Hunt — é conseqüência da própria postura, mais ou menos consciente, de quem se coloca, sem estar, num lugar infantil, desejando preservar uma experiência de plenitude ou inocência que não suporta a dúvida ou a angústia. Daí que Crítica, teoria e literatura infantil é um livro fundamental para pensar a qualidade da literatura para a criança, partindo de um olhar adulto que busca o prazer — em todas as idades — nesse texto.

Por exemplo, o reconhecimento do discurso ideológico nos textos de literatura infantil é um dos temas do livro. Não se trata de enxergar conteúdo adulto invisível à criança: ao contrário, trata-se de explicitar conteúdos inaparentes (tanto à criança quanto a adultos), porém atuantes no texto. O fato de, no Brasil, o mercado da literatura infantil se desenvolver justamente no período da ditadura militar torna nossos livros um prato cheio para verificar as idéias de Peter Hunt. A obra de Ana Maria Machado é exemplar, nesse sentido, e é herdeira — como não poderia deixar de ser — da de Monteiro Lobato.

O que quero dizer (e imagino que Hunt concordaria) é que entre uma boneca de pano espevitada como protagonista e um boneco de madeira melancólico vai uma distância continental. O material mais frágil e o prazer em ser boneca contrastam com o Pinóquio, que idealiza sua metamorfose em menino, como um melancólico que tivesse perdido sua humanidade, mesmo sem nunca ter sido, antes, humano. São duas imagens da infância no mundo industrializado que perde a sensibilidade para a magia e o artesanato, mas trata-se de duas imagens distintas, uma muito européia — antropocêntrica e melancólica — e outra própria do Novo Mundo — que encontra a potência na simplicidade, na falta.

Este traço ideológico circula no tempo histórico em que, pela primeira vez, aparecem os personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo. A década de 1930 viu surgirem, além das Reinações de Narizinho, as principais interpretações modernas da formação sociocultural brasileira, com Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Ao lado delas, as narrativas de Emília funcionam como retratos desse Brasil colonial e agrário, que mantinha suas contradições entre a dona e a tia (Dona Benta e Tia Nastácia) e sua poesia com a boneca, a Cuca e o milho aristocrata (o Visconde de Sabugosa).

Assim, todo esse mundo mágico da literatura infantil é, ao mesmo tempo, cifra ou espelho do mundo histórico que a circunda, e a correlação entre um e outro é mais ou menos percebido por quem quer que se depare com tais textos, adulto ou criança. É desse modo que Hunt resolve o problema da destinação da crítica de literatura infantil: ela é produzida por adultos, para adultos, mas pode compreender o modo de ler de adultos e crianças.

Preconceitos de valor
Uma leitura como essa demonstra que o objetivo central do trabalho de Peter Hunt é colocar a literatura infantil em relação com a crítica literária — e, portanto, com a literatura adulta. Por isso, ao elaborar o conceito de literatura infantil, o crítico está atento ao desafio de lidar com preconceitos de valor. Ele escreve:

Precisamos adotar o conceito óbvio de que “literatura” é a escrita autorizada e priorizada por uma minoria influente. A noção de “cânone” ou “corrente principal” é uma construção social. Esse “cânone” tem sido influenciado pelas universidades e, para que a literatura infantil aceda a essa condição privilegiada, deve se tornar parte da estrutura de poder ou essa estrutura precisa mudar.

A integração à “estrutura de poder” ou a transformação dela só podem começar a ocorrer no momento em que se começa a jogar, de igual para igual, o jogo da crítica. E isso Hunt faz, assim como já o fazem ou fizeram diversos críticos e professores brasileiros, com o pioneirismo da poeta e professora Cecília Meireles (a excelente orelha de João Luís Ceccantini desenha um panorama da crítica da literatura infantil brasileira). No campo especializado da literatura infantil, essa crítica é feita; falta, como sugere Hunt, relacioná-la com a crítica literária (ponto).

Uma sugestiva e interessada relação aparece, pelo meio do livro, um pouco inesperadamente. Após estudar, com base em estudos de psicologia, a diferença de percepção da criança para o adulto diante de uma narrativa literária, Hunt se pergunta: “serão as crianças as verdadeiras ‘desconstrutoras’ de textos?” (A desconstrução é uma das principais correntes da teoria literária contemporânea.)

Nesse jogo de relações, o autor se arma de um às vezes excessivo cuidado metodológico, que começa por definir a literatura como aquilo que uma “minoria influente” chama de literatura, na linha inglesa muito próxima a Terry Eagleton (autor de um famoso compêndio de introdução à teoria da literatura), e chega à idéia de que é pouco útil afirmar sobre o efeito esperado de um texto sobre o leitor: “Críticos que escrevem sobre textos ‘engraçados’ ou ‘solidários’ na realidade estão apenas lidando com uma probabilidade”, afinal, outros leitores podem não ver a mínima graça ou solidariedade neles.

Essa é uma visão de mundo que lembra, em alguma medida, uma corrente filosófica de origem inglesa, o empirismo, que propunha a impossibilidade de conhecer o mundo tal qual ele é, pois nós o conhecemos apenas pela intermediação dos nossos sentidos, que não são instrumentos de conhecimento completamente seguros. Entre ser uma corrente filosófica e se tornar a visão de mundo há um passo além que justifica um discurso que pode parecer um pouco autoritário. Afinal, o relativismo dos sentidos ou do julgamento pode se transformar na “simples verdade de que algo é bom porque nós, autoeleitos, assim o dizemos”. Se a única e simples verdade diz que não há verdade, então o discurso crítico precisa assegurar que suas idéias não recaiam em nenhum ponto de verdade.

Posso estar simplificando em demasia este modo de pensar que fundamenta o livro de Peter Hunt, mas, diante dele, o leitor sente falta justamente de uma abordagem dos livros que seja crítica e, ao mesmo tempo, como dizer, um pouco mais literária. Ao comentar a percepção infantil da leitura, Hunt sugere: “A pergunta ‘Qual era seu livro favorito quando criança?’ bem pode ser respondida: ‘Era azul’.” Esse azul, que não se resume à cor da capa, mas diz respeito a uma experiência de leitura — para além da narrativa, do estilo, etc. — ainda não foi abordado, pelo menos dessa vez, nesta obra.

Crítica, teoria e literatura infantil
Peter Hunt
Trad.: Cid Knipel Moreira
Cosac Naify
316 págs.
Peter Hunt
Nasceu em 1945, na Inglaterra. Fundou o primeiro curso universitário de literatura infantil da Grã-Bretanha, na Cardiff University. Publicou diversos livros sobre literatura infantil. Crítica, teoria e literatura infantil, originalmente publicado em 1991, é o primeiro livro do autor traduzido no Brasil.
Luiz Guilherme Barbosa

É especialista em literatura.

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