A cosmopoética da presença

Livros de Marcelo Ariel trazem abordagens profundas da psicanálise, filosofia, história, teatro, xamanismo e poesia
Marcelo Ariel, autor de “A água veio do sol, disse o breu” Foto: Acervo Pessoal
01/12/2024

Há muitas possibilidades de leituras dos textos de Marcelo Ariel. E apenas um dos seus livros já daria margem para conexões e reflexões infindáveis, porque sua escrita traz abordagens profundas da psicanálise, filosofia, história, teatro, xamanismo, poesia, além de inúmeras referências das mais diversas vertentes artísticas. Portanto, a proposta deste texto soa até pretensiosa, pois a ideia é discorrer sobre dois de seus livros: A água veio do sol, disse o breu (poemas) e Afastar-se para perto: ficção–vida, uma continuação de Nascer é um incêndio ao contrário, publicado em 2020.

Não é uma tarefa fácil estabelecer os critérios de seleção para o que é mais urgente ou pertinente falar de cada um desses livros, embora eles tenham uma essência comum, temas recorrentes (quase obsessivos) e uma linguagem sempre, acima de tudo, poética. É preciso evocar vozes e uma espécie de “selvageria” anterior à escrita, além de encontrar a voz do próprio autor, que está presente em cada palavra. Nos textos de Marcelo Ariel não há cisão entre pensamento e escrita, ou entre poesia e corpo. E começando aqui a evocar uma das vozes tão cara ao autor, o poeta Ricardo Aleixo, trata-se de uma “poesia política por definição porque nós estamos num mundo de anulação radical da sensibilidade”.

A água veio do sol, disse o breu propõe capturar e reorganizar “antimundos”, fundados na infância e no sonho, uma reorganização contra o tempo cronológico, convocando o tempo vivo da duração, como experiência dos dados acumulados que afloram à memória vindos do inconsciente, energia movente da poesia e do corpo, como “espiral ambivalente”.

[…]
E este “sonho acordado” acessível através da janela de ônibus dos seus olhos
exige uma grande generosidade e igual tristeza pulverizada
por isso a migração das nuvens para o lago invertido dos olhos
conversa com o pensamento dos órgãos
e chega até o inconsciente que é parte das florestas e não apenas deste corpo
Por isso a energia do poema é ambígua, se movendo
em uma espiral ambivalente
buscando de novo o mundo
E outras imagens que estão tentando fecundar com o tempo: a ultravida a ser transfigurada
depois desse olhar.

Encontros
Nessa mesma reorganização que o poeta não perde de vista, os poemas convocam encontros, os nomes surgem nada aleatórios. E se unem a esta comunidade, certos conteúdos e experiências do passado individual entrelaçados com o passado coletivo, como no poema/sonho A oitava asa de Michael Jackson e suas aparições em sons, visões e outras fantasmagorias, trazendo ao morro Dona Marta, além de Michael Jackson, John Coltrane, Stevie Wonder, Spike Lee, Gilberto Gil, Diana Ross, Miles Davis.

Do passado coletivo, presente ainda e sempre como imagem sobrevivente na contemporaneidade, o poema Primeira classe-vagas faz emergirem da invisibilidade algumas “cosmomortes” que compartilhamos no espetáculo diário das mídias, como a do menino sírio refugiado Aylan Kurdi, encontrado morto numa praia da Turquia.

[…]
ninguém ouviu a canção de ninar
dentro de uma baleia
do menino deitado na areia
invisível como sonhos
o mar agora estava calmo
após o despertar
não é doce morrer no mar

E me refiro a imagens sobreviventes porque há uma recorrência de temas e alusões nos textos de Marcelo Ariel que devem muito a Walter Benjamin e, dessa fonte, são inúmeras as chaves de leitura, desde o estudo de Benjamin sobre alguns temas em Baudelaire até as Teses sobre o conceito de história. Mas vou propor uma outra dobra aqui com Didi-Huberman, que aborda a ideia de sintoma a partir dessa rememoração de um passado coletivo que não foi contado, mas que pode exsurgir investido de poderes da “fantasia inconsciente em ação”, um “símbolo escrito na areia da carne”, uma sobrevivência. Marcelo Ariel dá voz na sua poesia ao mutismo do sujeito supostamente falante. É uma forma de comunicação que se estabelece a partir do sintoma.

E de novo Benjamin, que expunha uma rivalidade histórica entre as formas da comunicação. De um lado a informação e a crescente atrofia da experiência. De outro, a narração que integra o acontecimento à vida do narrador (individual), para passá-lo aos ouvintes (coletivo), como experiência.

Nessa experiência, Ariel conflagra os encontros mais inusitados, com duplas como do poeta cabo-verdiano João Vário com o amazonense dramaturgo Francisco Carlos. E ecoa suas vozes nos versos confabulando uma conversa onírica com Max Ernst, Antonin Artaud, Godard, Aikanã com Farnese de Andrade, Hélio Oiticica, Amanayé com Blaise Cendrars e Isadora Duncan, Apinayé com Eduardo Viveiros de Castro ou Araweté com o esqueleto de Steve Jobs transfigurado em 200.000 formigas gigantes entrando no mar radioativo da Amazônia. Após a história de todas as tribos queimarem no Memorial da América Latina, ele anuncia uma queda como espécie de renascimento no “foda-se que Jader Eisbel tatuou com neblina preta e vermelha na pele do mercado”. O poema apresenta o fruto da árvore em extinção, esse “átomo do triunfo da Contra-história”, reescrevendo e reinventado sobrevivências em um ato insurrecional da poesia.

Franz Kafka ganha minicontos e os poemas recebem nomes-vaticínios, no cortejo infinito de possibilidades desta rede, como Heba Abu Nada, Vicente Franz Cecim, Óssip Mandelstam, Björk, Rimbaud. O devir da poesia vem dessas vozes soterradas e compartilhadas, vem das flores do mal, do Photomaton Davi Kopenawa.

Todos estão no ar e ninguém está na Terra e por isso o devir-indígena é o ato insurrecional por excelência, em suas dimensões nomádicas ele também está entrelaçado com o devir negro, embora muitos prefiram dizer o oposto por acreditarem que há um enraizamento ôntico de um lado e um desenraizamento ôntico de outro. Vejo tudo como devires complementares.

A segunda parte do livro, intitulada É isto um eu?, começa com dez aforismos para o filósofo italiano Franco Bifo Berardi, pensador do mundo da contrarrevolução político-social do neoliberalismo, da mutação tecnológica digital em todas as esferas e da consequente e galopante demência em massa. E aqui o poeta conclama a todos que despertem desse estado de coisas, utilizando como ferramentas a multiplicidade e riqueza ontológica da feminilidade e as éticas de amizade. Traz nos versos uma esperança nas práticas poéticas que imantam práticas políticas, capazes de irradiar com suas sensíveis singularidades um logos erótico, inapreensível pelos símbolos do poder.

Há um claro projeto proposto e, de novo, urgente, para derrubar sistemas entrópicos produtores de desigualdades e erguer forças verticais dos sistemas não-entrópicos que operam de modo selvático, ou seja, como energias do inconsciente pessoal. E insiste, as forças só podem operar se estiverem plantadas nessas singularidades coletivas que criam tempos e recompõem operações de revolta, proliferando, assim, a “resselvagização dos sistemas”.

Sem gênero definido
Quanto ao livro Afastar-se para perto: ficção-vida, começo por dizer que não há uma classificação de gênero definida. É dividido em três partes: Livro um – Raskh ou o nó de fumaça é o nó do sonho; Livro dois – O triunfo de Cubatão – Narrativas e livro e Livro três – A prática do poema como um arco entre o céu e a terra. São ensaios, notas, aforismos, monólogos teatrais, entrevistas inventadas e demais narrativas da ficção-vida de Marcelo Ariel.

No primeiro livro, composto por notas postadas nas redes sociais e transfiguradas em uma poiesis da comunicação em 2021, no cenário da pandemia de covid-19 e desesperança do fascismo contínuo e explícito, em sintonia com o ultraliberalismo. E mais uma vez, a aparição do anjo da história de Benjamin e o oceano de agoras ou instantes-já de Clarice Lispector como conceito de tempo, persistindo a ambivalência da poesia.

É interessante como o autor conjuga um tempo histórico deflagrado pela queda incontornável e, ainda assim, elabora uma comunicação xamânica, como uma saída viável, e sempre imanente, quando se trata de optar por essa outra dimensão de tempo ou de transmigrar a alma para uma árvore, planta ou pedra, transmigração enunciada pelo significado do título na palavra persa Raskh.

E o autor não é nada inocente em suas propostas de poiesis da comunicação. A quem comunica Marcelo Ariel e demais artistas e pensadores de sua rede de resselvagização do sistema? Quanto à literatura, um dos ensaios críticos do livro afirma que o mercado editorial é totalmente refratário à diferenciação (leia-se alteridade). Tudo é planejado e maquiado para atender às estratégias de vendas, a partir de tendências falsamente inclusivas. Pois bem. Não se trata de seguir as demandas do “eu-mercado”, mas sim seguir existindo nessa tensão com o mercado. Trata-se de escrever (ou criar qualquer obra) para os leitores e as leitoras da diferenciação, “os estranhos”. E trazendo uma imagem de Baudelaire, Ariel cita flores que nascem e florescem debaixo da terra, fortalecidas pelas águas dos rios soterrados, as flores do lodo, as flores do mal, como os livros de Vicente Franz Cecim e de Maria Gabriela Llansol.

Não são poucos os que mais uma vez são conclamados: William Blake, Cruz e Sousa, Carolina Maria de Jesus, Hélio Oiticica, Virgínia Bicudo, Björk, Hilda Hilst, Espinosa, Rimbaud, Shakespeare, Pagu, Ailton Krenak, Antonin Artaud e muitas outras e outros. E os encontros inusitados e não burocratizados se repetem, o que dá também um tom divertido e leve de fantasia e nonsense aos textos, colocando juntos Philip Roth e a série Breaking Bad e Lautréamont com Twin Peaks. Reafirmo o que defendi no início desta resenha, há uma mesma essência, percebe-se uma continuidade de temas, um inconsciente que expõe sintomas. E de repente, os filmes de Glauber aparecem em diálogo e interseção com a criação do inconsciente descolonial de Francisco Carlos, Fanon, Senghor, Pasolini e outras emanações de uma “filosofia selvagem”.

Esses encontros todos e as referências que não param de surgir em cada narrativa inventada ou em fragmentos do inconsciente (que também são narrativas inventadas) são coerentes com um projeto claro de uma escrita que se coloca contra a burocratização e neurotização dos afetos. São vozes que se unem para romper com as projeções de poder sintomaticamente binárias, engendradas no ressentimento e nas armadilhas de identidade.

A rosa é o grão da voz estelar, quando escrevi num poema “onde você tentou estar/ a rosa negra” tentei elaborar uma metáfora sonora cósmica. Nós negros somos as rosas estelares da historicidade, esmagadas, soterradas, desabrochando debaixo da terra (um modo de dizer povos indígenas). A lógica do diálogo profundo que tenho com artistas como Negro Leo, Alice & John Coltrane é a de um deserto que atravessa um profeta, falamos a língua do deserto, onde cantam todas as rosas negras antes de florescer.

Entrevistas e depoimentos
Na segunda parte, O triunfo de Cubatão, as narrativas acontecem em diálogos, entrevistas, depoimentos, um conto em forma de ensaio-monólogo, três paródias de Franz Kafka e Walter Benjamin falando sobre Hilda Hilst na USP com perguntas sobre o entrelaçamento entre o pensamento filosófico mais afinado com a poesia e o discurso poético dos místicos. Uma leitura para ser feita com atenção e prazer, encontros para desfrutar e muitas reflexões filosóficas abertas para serem completadas e contempladas pelos estranhos leitores.

Paro minha caminhada para examinar uma espada de grama repleta de gotas de orvalho, uma anticolonização. A fotossíntese é certamente algo melhor do que a ideia de um deus, esta obsessão que temos na origem como busca de um sentido para coisas que necessariamente não necessitam de um sentido, não havendo uma origem comum a tudo e todas as coisas, isto apenas comprova a potência do encoberto.

Por fim, e com a forte sensação de estar voltando ao começo, o livro três, A prática do poema como um arco entre o céu e a terra é uma defesa da poesia como perda do contorno do próprio corpo, mistura possível com outros corpos e com o mundo. A frase síntese desse livro seria “pelo poema o corpo de mundifica”. É como se a transmigração se concretizasse para renascer árvore, planta ou pedra.

Aqui Ariel propõe exercícios de escrita poética. Num gesto de generosidade — e de novo coerente com sua ideia anunciada na poesia de fundar uma comunicação não-cronológica e desburocratizada —, ele nos apresenta modos de “pré-sentir” o poema, sendo que esta seria a maneira de sentir a extensão do corpo que é o mundo e a experiência de alteridade, pura imanência. E por caminhos da inconsciência, ele propõe um susto da consciência, uma percepção do corpo sem um “eu”, um corpo imã, fonte magnética do poema quando mundo.

O poeta explica:

[…] ao perdermos um pouco o contorno, o poema nos encontra, ele nasce nas bordas tensionadas da língua que na maior parte das vezes já é um pensamento do mundo se deslocando para o poético que é sua fonte de contorno, o mundo como sabe quem sente em profundidade ganha contornos de sonho quando abrimos mão de nosso contorno.

A água veio do sol, disse o breu e Afastar-se para perto: ficção–vida, livros sobre os quais discorri tentando apreender a linguagem poética da comunicação reivindicada por Marcelo Ariel, fazem parte de um projeto de investigação e leitura, simultâneos a um trabalho constante com a escrita. É sobretudo um projeto de desfazer os contornos, também, das fronteiras entre poesia, filosofia, crítica, política e vida.

Finalizando com o início, o primeiro poema que citei nessa resenha fala de um sonho acordado acessível através da janela de ônibus da sua consciência. Na Nota final de Afastar-se para perto…, o poeta afirma que esse olhar, ou esse sonho acordado, já não é suficiente, o que é imperativo agora é criar nós de anacronismo, que possibilitariam a sobrevivência das redes de aberturas. E dessas redes, espalhar o pólen de “conhecimento amoroso do mundo”. A questão que persiste após essas leituras é não perdermos a alteridade (da literatura e da arte) de vista, uma questão de sobrevivência.

A água veio do sol, disse o breu
Marcelo Ariel
Círculo de Poemas
152 págs.
Afastar-se para perto: ficção–vida
Marcelo Ariel
Reformatório
200 págs.
Marcelo Ariel
É poeta, ensaísta e teatrólogo. Nasceu em 1968 em Santos (SP) e hoje mora em São Paulo. Entre seus diversos livros, destacam-se os recentes Ou o silêncio contínuo: poesia reunida 2007-2019 (2020), que conquistou o segundo lugar no prêmio Biblioteca Nacional, Nascer é um incêndio ao contrário (2020), Subir pelo inferno, descer pelo céu (2021), As três Marias no túmulo de Jan Van Eyck (2022), Escudos (2023), 22 clareiras e 1 abismo (2023).
Luciana Tiscoski

É jornalista e escritora. Mestre e doutora em Literatura pela UFSC. Com o coletivo de poetas mulheres Abrasabarca (Florianópolis) participa dos livros Abrasabarca (Medusa, 2018) e Revoluta (Caiaponte, 2019). É autora da coletânea de contos Área de broca (Nave, 2021)

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