A corrosão do caráter

A tragédia grega guia os passos do excêntrico traficante Walter White em "Breaking bad"
18/03/2016

Às vezes, a ideia para uma tragédia começa com uma piada. Foi assim com o roteirista Vince Gilligan quando ele reclamava com seu colega Thomas Schnauz sobre a dificuldade de emplacar projetos pessoais na tevê ou no cinema e se perguntou se não seria melhor trabalhar como vendedor na rede de lojas de conveniência Walmart. Ao ouvir isso, Schnauz apenas retrucou: “Talvez a gente pudesse comprar uma van grandona e montar um laboratório para comprar metanfetamina”.

E, voilá, desse modo surgiu Walter White, ou “W. W.” para os íntimos, personagem principal de Breaking bad, a série que conta a história de um professor de química derrotado pela vida ao experimentar uma existência miserável na cidadezinha de Albuquerque, Novo México. Abatido pelos sonhos não realizados de ser alguém bem-sucedido, com um filho deficiente, uma bela mulher, mas resmungona, ele descobre que tem um câncer inoperável no pulmão, e decide ir contra toda a normalidade que cortou suas asas: para pagar as despesas do tratamento e deixar algum dinheiro para a família após sua morte, transforma-se em um implacável traficante de drogas, sendo reconhecido no meio pelo índice elevado de pureza da metanfetamina que produz.

A premissa era insólita, mas comum no mundo dramático de Gilligan — um sujeito treinado na televisão por ninguém menos que Chris Carter, o criador da grande série conspiratória, Arquivo X. Contudo, se, nas histórias de Carter, o drama dos personagens como Fox Mulder e Dana Scully era encoberto por esquisitices que faziam o espectador desviar-se do problema moral que era ali retratado — o fato de que a humanidade inteira parecia estar sob o jugo de um governo que imitava o método de um “estado de exceção” —, agora, com Gilligan finalmente no comando do seu próprio produto, após anos à procura de uma emissora que bancasse a sua piada, o mesmo dilema era construído como uma tragédia grega.

Afinal, o drama de Walter White (interpretado con gusto por Bryan Cranston) podia acontecer com qualquer um de nós. Podemos escolher o fracasso como hábito em nossas vidas; podemos ter um bebê com paralisia cerebral; podemos ter dívidas; podemos nos sentir sufocados com um governo que nos achaca diariamente com exigências financeiras que poucos têm condições de pagar; e podemos ter uma doença incurável a qualquer momento e que cresce dentro de nós sem sabermos. W. W. tinha tudo isso e muito mais: no momento em que entra no mundo do crime, ele se afeiçoa por um aluno completamente viciado na droga que fabrica (Jesse), envolve-se com bandidos que são muito mais profissionais do que ele na arte de matar e, como se não bastasse, tem de se preocupar agora com o fato de que seu cunhado, Hank, é um agente federal do Departamento de Combate às Drogas e quer prender a qualquer custo este novo sujeito que entrou na área, conhecido por um nome extremamente misterioso: Heisenberg.

Império particular
Esta lista de infortúnios seria um perigo para um roteirista menos habilidoso, mas Gilligan conseguiu escapar da armadilha ao incluir, de maneira subversiva e cômica, um outro tema típico das tragédias: a revolta do herói (ou, no caso, do anti-herói) em que ele finalmente demole o sistema que o aprisiona. Neste ponto, Walter White está na mesma tradição daquilo que Brett Martin chamou de “homens difíceis”, como Tony Soprano, Al Sweargen, McNulty e Don Draper, os personagens criados respectivamente por David Chase, David Milch, David Simon e Matthew Weiner. São os “sujeitos que podem tudo”, que impõem suas próprias condições no “estado de exceção” que nos governa e que, no final, criam seu império particular, sem se importar com os resultados. E é aqui que Gilligan se mostra como um discípulo direto, mesmo com dois mil e quinhentos anos de distância, de Sófocles, Ésquilo e Eurípedes. Para ele, o verdadeiro drama de Walter White é que, ao se libertar dos grilhões que o aprisionam, ele faz a escolha deliberada de se tornar um homem mau (daí o título da série, também um trocadilho com a decomposição química das moléculas), mesmo com as melhores intenções, mas se esquece de algo fundamental, justamente o que motiva qualquer tragédia por excelência: o de que toda a ação tem uma consequência, geralmente carregada de desgraça.

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Assim, a série inteira se transforma na observação minuciosa e implacável em que o espectador se identifica com Walter White porque, ao assistir à decomposição moral dele, também vê a corrosão do seu próprio caráter, como se estivesse numa releitura pós-moderna de O estranho caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde, a fábula de terror criada por Robert Louis Stevenson. Afinal, quem não tomaria a mesma atitude se estivesse na situação limite daquele medíocre professor de química?

Esta é a pergunta perturbadora que Gilligan faz aos defensores dos “homens difíceis”. Porém, na hora de contar essa história, repleta de exageros dramáticos, mas crível no mundo real, ele também tem de fazer opções estéticas para torná-la mais palatável. Isso o leva a brincar com pastiches cinematográficos, com gags humorísticas que homenageiam os irmãos Coen ou então com malabarismos narrativos a lá Quentin Tarantino. Se, por um lado, com este artifício, Gilligan consegue fazer o espectador suportar até o fim da tragédia a ser narrada, por outro, ele o leva à identificação completa com ninguém menos que um criminoso, fazendo-o torcer por ele sem hesitar, algo que era tratado com extrema ambiguidade por Chase, Simon e Weiner em suas criações televisivas.

É neste momento que a literatura entra em cena para salvar Vince Gilligan do impasse criado por ele próprio. Em Breaking bad, a força da tragédia grega é tamanha na construção da sua narrativa que não há como escapar do grave problema moral imposto em sua trama, mesmo com fugas estéticas que brincam com o cinema e outras formas de se contar uma história. Por isso, passa a ser um alento quando percebemos, em episódios marcantes, como toda a resolução da história será feita se entendermos as referências que Gilligan e sua equipe fazem a dois grandes poetas da língua inglesa: Walt Whitman e Percy Shelley.

No primeiro caso, a conexão se dá com a semelhança das iniciais com os nomes do bardo americano e do traficante de drogas neófito: W. W. No decorrer da série, este paralelo não acontece por acaso. É justamente por causa dessas iniciais que Hank resolve a charada da identidade de Heisenberg, ao descobrir, enquanto folheava, no vaso sanitário da casa de Walter, um exemplar de Folhas da relva que pertencia ao alvo da sua caçada. O item fora um presente de Gale Boetticher, um químico fã de Ayn Rand e que passa a ajudar Walter no seu império de metanfetamina porque acredita na liberdade do ser humano de se auto-destruir. Gale faz a seguinte dedicatória ao entregar o livro a seu comparsa no crime: “Para o meu outro favorito W. W.” — e declama um poema de Whitman, sobre um astrônomo que consegue contar as estrelas e diagramar as distâncias, mas é incapaz de contemplar “o perfeito silêncio” do firmamento.

Em Breaking bad, a força da tragédia grega é tamanha na construção da sua narrativa que não há como escapar do grave problema moral imposto em sua trama, mesmo com fugas estéticas que brincam com o cinema e outras formas de se contar uma história.

Colossal destroço
Em paralelo, esta ineficácia de perceber que existem mais coisas do que sonha a nossa vã decomposição química também se encontra no grande soneto de Shelley, Ozymandias, título de um dos episódios mais importantes da série e que definirá de vez a trajetória trágica de Walter White. Os versos meditam sobre o relato de um viajante que ouviu a história de um rei poderoso cuja memória sobrou apenas numa inscrição feita na pedra de uma ruína e que percebeu, antes do seu fim, que nada adianta construir um império gigantesco se será somente testemunha do seu “colossal destroço”.

Walter sintetiza o drama dos poemas de Whitman e Shelley, além de, obviamente, acentuar a tragédia grega antecipada por Gilligan. Ele é um químico perfeccionista, um sujeito que, como bem observou James Bowman no artigo Criminal elements, faz de tudo para manter sua vida inteira sob controle, mesmo disfarçada numa aparente mediocridade. Sua crença maior é que a alma não faz parte de nenhum componente do nosso corpo justamente porque não é quantificada, segundo o próprio Walter diz em uma conversa que tem com uma antiga amante enquanto os dois decompõem as qualidades químicas do ser humano. A mulher sugere: “Onde está a alma?”. E Walter apenas responde: “Não há alma nenhuma aqui. Existe apenas a química”.

A obsessão pelo controle é o que ocorre quando alguém não consegue quantificar algo tão tênue como a alma humana — e eis aqui a raiz de todos os problemas de Walter White. Como um bom anti-herói grego, ele sofre da mais comum das doenças espirituais: a hubris, a revolta contra a própria criação que, seja divina ou meramente humana, é completamente imprevisível. Esta é a chave do verdadeiro significado de Breaking bad que Vince Gilligan quer nos ajudar a decifrar: ao fazer a ponte de Whitman com Shelley, o que está em jogo na história de Walter é que, na opacidade do mundo, ninguém tem certeza do que acontecerá nas nossas vidas e, por isso, na ilusão de que a controlamos, esquecemos ouvir o “perfeito silêncio” das estrelas.

Não à toa que, em um diálogo que W. W. tem com sua esposa, transformada também em cúmplice, ela lhe pergunta se já não tem dinheiro suficiente para voltar a ter uma vida normal e parar de ser um criminoso. “Você acha que entrei nesse mundo pelo dinheiro?”, argumenta Walter. “Não, eu não entrei nesse mundo pelo dinheiro. Ele significa nada para mim. Eu entrei pelo poder [for the empire, no original]”. A transformação de um homem comum em um grande canalha é a encruzilhada de qualquer um que não deseja ser contaminado pela “corrosão do caráter”. Talvez seja esta uma das razões do sucesso extraordinário de Breaking bad: ao subverter e atualizar alguns tópicos da tragédia grega, Gilligan captou com precisão cirúrgica o drama de cada espectador que se espelha em ser um Walter White em potencial, seja para decidir ser um sujeito boa-praça ou para ser um bandido consumado.

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Esta sensação de que todos estão contaminados por uma maldade inescapável acompanha também os outros personagens coadjuvantes, de Jesse Pinkerman a Skyler White, passando por Marie, a cunhada cleptomaníaca, até chegar ao inacreditável Saul Goodman, o advogado picareta que soluciona qualquer macete jurídico. Cada um desses sujeitos tem uma bondade oculta em seus corações, mas de algum modo eles fizeram uma escolha errada — e nos tornamos testemunhas do que acontecerá com suas vidas. Incomodados com isso, temos a impressão de que estamos em um experimento de laboratório que se transforma lentamente em uma piada de humor negro quando descobrimos que o apelido de Walter como chefão do tráfico — Heisenberg — é uma homenagem do químico ao maior físico quântico do século 20, o descobridor daquilo que seria conhecido depois como “o princípio da incerteza” — em que se torna impossível provar qualquer fato científico, pois, no momento em que este é observado, seu resultado foi alterado sem nenhum aviso (e, não por acaso, as descobertas científicas de Heisenberg levaram à criação de nada mais nada menos que a bomba atômica).

Dentro dessa tabela periódica do caos e da selvageria, o mundo de Breaking bad é o da incerteza absoluta, onde cada ação tem uma consequência imprevista porque nada está sob o nosso controle e qualquer tentativa de poder é mostra apenas a nossa precariedade diante do sol que queima a todos no deserto do Novo México.

Contudo, no dilema de querer levar a sua história a um final satisfatório para o público em geral, Vince Gilligan não conseguiu traduzir essa mesma incerteza em termos dramáticos — e passou a ser contaminado pela sua própria “corrosão do caráter”. Ao controlar a sua própria criação em todos os detalhes, levou-a a uma estrutura fechada, como se fosse uma engrenagem, incapaz de deixar a frágil realidade respirar nas brechas da trama e que os personagens encontrassem seus próprios destinos. No fim, o que poderia ser um passo a mais na reviravolta da fabulação que estava sendo feita por David Chase, David Milch, David Simon e Matthew Weiner na tevê americana, tornou-se um retrocesso e prejudicou a própria vocação do narrador como conhecemos.

Na feitura do seu império dramático e, ao mantê-lo sob seu estrito domínio, Gilligan não percebeu que a função do escritor é a mesma de que Walt Whitman fala em um dos poemas que, por uma estranha coincidência, é também o título de um dos episódios mais antológicos de Breaking bad: Gliding o’er all (Deslizando sobre tudo). Aquele que se propõe a contar uma história deve deslizar sobre tudo, sobre a natureza, o tempo e o espaço, como se fosse um navio que avança pelas águas, um navio que faz a viagem da alma, não apenas a da vida, porque o poeta (e o escritor e o roteirista e quem mais queira entrar no ofício da criação) deve cantar não só sobre uma única morte e sim sobre várias, sobre todas as mortes que precisamos experimentar para renascermos no dia seguinte. Somente assim conseguiremos transformar a piada em uma tragédia (e vice-versa), além de impedir que a corrosão de todos nós contamine a incerteza essencial de um mundo todo próprio na hora de contar a nossa história.

Nota
Este é o quarto texto de uma sequencia de seis ensaios que abordam como o sucesso das grandes séries da televisão americana está relacionado com o uso da literatura na criação dos seus enredos e de seus episódios. Em maio, texto sobre Game of thrones, de D. B. Weiss e David Benioff, baseado nos livros de George R. R. Martin.

Martim Vasques da Cunha

Martim Vasques da Cunha é escritor, jornalista, doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade de São Paulo, autor de Crise e utopia: O dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e de A poeira da glória – uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record).

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