Cerca de três anos antes do suicídio, Sylvia Plath nos legava uma relíquia de morte; a expressão “um coração extirpado como uma herança arruinada” assemelha-se a um item testamentário de mau agouro, que filhos e netos lamentam ter por sorte. Poderíamos pensar que a imagem (como tantas outras, de morte, na poesia de Plath) anuncia o suicídio. É talvez a ilusão que se tenha ao receber a pequena caixa, de autoria de Guilherme Gontijo Flores, intitulada Tróiades – remix para o próximo milênio.
A armação discreta, de papel kraft e plástico, emula um minúsculo tesouro; ao abri-lo, encontramos 25 cartões-postais e um folheto. Crianças enforcadas, arames farpados, cabeças degoladas, mortos de guerra, estátuas partidas, lamentações, trincheiras ocupadas por cadáveres, uma estátua que encara perplexa uma cidade arruinada, um corpo que arde na fogueira, índios acorrentados pelo pescoço, um negro escravizado com as costas marcadas por instrumentos de punição e tortura, uma mulher cujo rosto se converteu, ele mesmo, em desolação e terra arrasada; essas são algumas das aparições das fotografias que preenchem a frente dos postais. Foram coletadas e modificadas pelo poeta, que se converteu ele mesmo em montador, para apontar para a história da guerra e da dominação através dos séculos.
Essa acumulação imagética, algo tanatológica, promove uma familiarização. Quem abre o tesouro de Tróiades encontra, efetivamente, uma espécie de álbum de família. Trata-se de uma família desgraçada. As fotos, como costuma ocorrer com fotos antigas, não confortam e, diante delas, nos tornamos estranhos. Nós, que sobrevivemos. Walter Benjamin escrevera certa vez que, em todas as épocas, “os vivos descobrem-se no meio-dia da história”, tendo por tarefa preparar um banquete para o passado; Gontijo faz o papel do historiador materialista que Benjamin aguardava, ao convidar os defuntos à mesa.
Familiarização e estranhamento. “Todo luto chorado será meu luto”; o fragmento, das Troades de Sêneca, figura, sob o título de Cripta, no verso do postal que exibe a fotografia de uma mulher alemã diante de 800 escravos mortos pela SS, em 1945. Talvez não haja muito que se dizer sobre o horror — “o horror é indescritível”, como afirmou Lúcia Murat, na introdução de seu depoimento para a Comissão da Verdade a propósito das violências sofridas durante a ditadura militar. Para convocar os defuntos à mesa, Gontijo não descreve o horror — mas também não isola suas imagens em uma impenetrabilidade. Ele opera, como se disse, sob o princípio da montagem.
Todos os poemas que acompanham as fotografias são extraídos de três tragédias que dramatizam a Troia massacrada (Troades de Sêneca; Troiades e Hécuba de Eurípedes) e o nono fragmento das teses sobre o conceito de história, de Walter Benjamin. Foram traduzidos livremente pelo autor, que estilhaçou as obras, e, dos cacos, compôs a sua. Com isso, formulou poemas como A coisa mais bela:
Sequer nascer se iguala à morte
Ante a aflição da vida
melhor morrer
sem dor
ou estética dos males
Feliz de quem morre em guerra
e vê tudo consigo con
sumir-se
Assim como a herança arruinada de Sylvia Plath deve mais o seu teor a uma vida de humilhações e violência de gênero que ao planejamento da morte, o acúmulo de escombros das Tróiades de Gontijo não se liga tanto à desistência da vida, quanto a uma vida desgraçada. (Na sua tradução cibernética, com endereço troiades.com.br, Tróiades é acompanhada ainda pela música catastrófica Genocide — Symphonic Holocaust, de Maurizio Bianchi.) Walter Benjamin, que figura não apenas com seu fragmento, mas também como armadura teórico-formal da obra, fixou a imagem da tradição sem tradições dos desgraçados: a história dos vencedores faz com que as pessoas que sucumbem interrompam seu legado muito cedo, e é por isso que o filósofo alerta que o gesto revolucionário deve ser capaz de perseguir, na história do ocorrido, também os encontros que não puderam, mas que poderiam ter acontecido. Esta é a lei que dá a forma aos postais.
O sol breu sobre o céu gris
e a chama não impede
a cobiça nas mãos do vencedor
Vai pé caduco
como puder para saudar
tua cidade arruinada
Secreto trânsito
Os postais são encaminhamentos, endereçamentos, para ser mais preciso, em seu aspecto formal mais imediato. Não se deve pensar, no entanto, de que se trata de postais para o leitor. Eles são o secreto trânsito das gerações, um sigiloso, mas nada tímido, testemunho da história da guerra. Não descrevem essa história tanto quanto acumulam os lamentos. Em outras palavras, os postais são uma tentativa afetiva, um esboço do que Benjamin previra como o encontro marcado entre as gerações, da sua frágil força messiânica, que talvez um dia dê fim à história dos massacres e dos genocídios.
“Levanta desgraçado/ tira a cabeça/ o pescoço do chão/ Não há mais reino nem rainha/ Não tente opor a proa/ contra o acaso das ondas”, diz um dos muitos poemas intitulados Temor/Tremor. Este parônimo, que acompanha diversas das fotografias, anuncia a passagem do medo para a do afeto, da contemplação paralisante para a ação — num salto, da tragédia para o cinema; pois se trata, efetivamente, de um livro que consegue, com material trágico, efeitos semelhantes ao que consegue a imagem em movimento (deve-se ter em mente o segundo título da obra, remix para o próximo milênio). Em outras palavras, tal parônimo ensaia uma convocação. “Podem ameaçar com chamas chagas artes do suplício fome sede pestes várias ferro afundado nas vísceras queimadas flagelo cárcere sem luz e todo o mais que ousar o vencedor em fúria temeroso” — esta voz já não se ergue sozinha.
Troia, a cidade arrasada pelos aqueus, e uma das primeiras cidades arruinadas na história da poesia, é tomada, por Gontijo, como cidade modelo onde convivem e se correspondem os derrotados. Nas palavras do poeta, sua obra se ergue como um “monumento ao massacre interminado da história: de Troia, arquétipo dos derrotados, até Canudos, essa espécie de mãe das favelas contemporâneas, onde os derrotados permanecem ao longo dos seus dias; da escravidão imemorial e ubíqua ao índio ainda silenciado em nosso discurso”. Como a Roma e o inconsciente de Freud — um conglomerado anacrônico impossível, de muitas arquiteturas sobrepostas no mesmo espaço — o inconsciente histórico da desgraça é atiçado pelo livro de Gontijo de modo a fazer com que todos os oprimidos se superponham em uma única imagem. É isso que têm em comum: tudo lhes foi tirado. Não é estranho que um de seus postais pergunte: “Pra que chamar os deuses/ se nunca ouviram/ quando chamados”; mas de onde vem a força que ainda brada “Vamos correr ao fogo/ que hoje a coisa mais bela/ é morrer na pátria incendiada”?
Podemos refazer a pergunta — e, talvez, seja esta a pergunta que Gontijo tenha nos legado, neste segundo volume de sua tetralogia que se chama Todos os nomes que talvez tivéssemos — das seguintes formas: que afeto é possível entre aqueles que já não podem se afetar? existe afeto depois da impotência? que dizem os derrotados?